Na entrevista a seguir ao Estado de Minas, Kleber Mendonça Filho, diretor de "O agente secreto", que terá sua primeira sessão em Belo Horizonte nesta terça-feira (23/9), na abertura da CineBH, comenta as semelhanças e as distinções entre seu filme e "Ainda estou aqui", de Walter Salles, na abordagem do tema da ditadura.

"Ainda estou aqui" venceu neste ano o Oscar de Melhor Filme Internacional. "O agente secreto", premiado com as Palmas de direção e ator (Wagner Moura) no Festival de Cannes, em maio passado, é o representante do Brasil na disputa da próxima estatueta.

A mistura de referências regionais, nacionais e universais torna “O agente secreto” um filme impuro, certo?
Sim. E eu adoro essa impureza. Fico pasmo que ainda existem colegas que defendem a pureza no cinema. What the fuck? Pureza é um assunto, para mim, totalmente falido.

“O agente secreto” é Kafka escrito no papel e “O processo” de (Orson) Welles adaptado de Kafka. Mas é também desenho animado de Popeye e “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia”, de Hector Babenco; é “Tubarão” de Spielberg e o programa “Caso especial” que a Rede Globo exibia nos anos 70.

É cinema tcheco da new wave com Robert Altman e Brian DePalma. Eu gosto dessa mistura porque nós somos essa mistura.


Essa mistura inclui referências familiares?
Sim. Minha mãe trabalhava com história oral e chegava em casa à noite, cansada, com um gravador e uma caixa de fitas (cassetes). Acompanhei várias entrevistas dela com trabalhadores, foi incrível. Acho que isso faz parte do filme, como o amor do meu pai pelo carnaval.

Ele não só gostava, ele se emocionava com o carnaval. E ele tinha um fascínio sem fim pelo Centro do Recife que passou para mim. Ele dizia: “Hoje eu vou lá dentro do Recife”. E a gente filmou uma das sequências mais importantes no lugar (uma perseguição que termina de forma sangrenta) que o meu pai considerava o miolo do centro do Recife.


Os seus filmes também preservam lembranças, memórias coletivas? É um cinema de arquivo?
Sim. Muitos anos atrás entendi que, toda vez que se faz um filme, você está contribuindo para o arquivo da cultura e esse novo filme vai ser também material de arquivo. Quando fiz “Retratos fantasmas”, eu disse: “Trabalhei com material de arquivo para fazer um novo arquivo”.


Quais semelhanças consegue enxergar entre “O agente secreto”, escolhido pelo Brasil para tentar uma indicação no Oscar 2026, e “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, o vencedor do Oscar de Filme Internacional deste ano?
Vi o filme de Walter um ano atrás, em Veneza, e mandei uma mensagem para ele. Disse que existem dois irmãos que não se conhecem e nunca se falaram, mas que iriam se conhecer em breve. Acho que os dois evitam os protocolos dos filmes sobre ditadura, muito comuns no Chile, Argentina e Brasil.

São filmes sobre esquecimento. E, talvez, “Ainda estou aqui” tenha uma visão um pouco mais otimista do que “O agente secreto”. Não que “O agente” seja pessimista, mas talvez um pouco mais cético. A história de Eunice (Paiva) é muito linda e acho que “O agente secreto” é a constatação de um estado de amnésia. Acho muito importante que esses filmes se somem.

Wagner Moura interpreta o professor Marcelo no novo filme de Kleber Mendonça Filho, "O agente secreto" (2025). Ele venceu o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes Reprodução redes sociais Kleber Mendonça Filho
No longa hollywoodiano "Guerra civil" (2024), de Alex Garland, o ator é Joel, jornalista que atravessa o país ao lado da fotógrafa Lee (Kirsten Dunst), para cobrir a conflagração que tomou conta do país Diamond Films/Divulgação
Wagner Moura estreou na direção de longas com "Marighella", biografia do guerrilheiro Carlos Marighella, interpretado por Seu Jorge. O filme está disponível no Prime Video O2 Filmes/Divulgação
No drama biográfico "Sérgio" (2020), de Greg Barker, o ator interoreta o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, morto num atentado no Iraque, em 2003 Netflix/Divulgação
Na série "Narcos" (2015-2017), da Netflix, Wagner Moura vive o megatraficante colombiano "Pablo Escobar". Papel o tornou mundialmente conhecido Juan Pablo Gutierrez/Netflix
Na comédia musical, "Ó paí,ó" (2007), de Monique Gardenberg, Wagner Moura voltou a contracenar com Lázaro Ramos, retomando a parceria de sucesso do teatro, quando os dois atores baianos interpretaram o mesmo personagem na montagem "A máquina" Europa Filmes/Divulgação
Em "Tropa de elite" (2007), de José Padilha, Wagner Moura vive o Capitão Nascimento, um policial do Bope. O sucesso do filme fez com que expressões como "pede pra sair", ditas pelo Capitão, fossem incorporadas ao vocabulário do dia a dia David Prichard/Divulgação
Wagner Moura como Zico no longa-metragem "Carandiru" (2003), superprodução de Hector Babenco adaptada do livro homônimo de Drauzio Varella Marlene Bergamo/Divulgação

E fico me perguntando se aquele desrespeito com a Cinemateca Brasileira (que teve um dos galpões incendiados em 2021) não impactou em mim e em Walter. Nunca conversei com ele sobre isso, mas foi um momento de aflição, estresse e tristeza gigantes e fico pensando se (os dois filmes) não foram uma maneira de nos manifestar (contra o esquecimento). Eu não lidei nada bem com aquele momento estendido de tensão.


Você acha que o Brasil tem trauma de memória?
O Brasil tem um problema crônico de manutenção e de preservação da memória. Mas eu acho que o trauma de memória vem da oficialização de não respeitar o passado. A anistia, em 1979, é um enorme desrespeito ao que aconteceu.

E está se repetindo agora, com uma tentativa incansável deles se perdoarem e tocar a bola para frente, só porque são privilegiados como homens públicos. “Vamos deixar para lá, anistia e vamos começar do zero de novo”.

Não é assim que funciona. “Poxa, mas a prisão é tão desagradável e a comida é tão ruim”. Sim, mas o senhor precisa estar preso na prisão. Precisa pagar por isso. Está na lei. Não se pode conspirar contra o próprio país. Tem países que executam com tiro, injeção letal. Aqui a gente está dando 27 anos. Acho que a amnésia foi normalizada no Brasil e isso é um trauma para o país.


É o país do deixa-pra-lá?
Exatamente. E por isso acho que é um trauma. Porque os arquivos revelam também coisas muito desagradáveis. E a percepção de história é seletiva, com a proteção de certos nomes. Sem falar do descaso com a memória, com fitas sendo apagadas para serem reutilizadas, como aconteceu em muitas televisões nos anos 1970.

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