O livro “Apolinária”, da jornalista, professora e escritora Bianca Santana, pode ser descrito como uma ficção livremente inspirada na história de vida da família da autora, assim como pode ser tido como um retrato das vivências comuns às famílias negras brasileiras de modo geral.


A narrativa é construída a partir das histórias contadas a Bianca por sua avó, Apolinária, ou Vó Polu, e também pelo que ela vivenciou, tendo crescido na periferia de São Paulo nas décadas de 1990 e 2000, e inspirada pela literatura de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, entre outras. A escritora participa hoje em BH do projeto Sempre um Papo. A seguir, a entrevista de Bianca Santana ao EM sobre “Apolinária”.


“Apolinária” é quase uma autobiografia sua e também da sua família. Como foi o processo de escrever sobre assuntos sensíveis e vulnerabilidades suas e da sua família?
Comecei a escrever contando a história da minha avó em terceira pessoa, diferentemente do que se tornou a Apolinária, e, inicialmente, era um livro de não ficção. Sou jornalista, meus livros anteriores são de não ficção, mas no caminho achei que fazia mais sentido escrever um romance ficcional.

A personagem Apolinária é muito inspirada na minha avó, assim como a personagem Bianca, também narradora, é muito inspirada em mim, mas não somos nós duas. Isso é uma liberdade literária e, ao mesmo tempo, uma ousadia, por contar histórias que são minhas, da minha avó, da minha mãe, mas que também são das mulheres negras do Brasil. Cada uma de nós tem uma experiência individual, mas existe uma experiência também coletiva que não está suficientemente narrada na literatura brasileira. São duas mulheres negras que contam a história do Brasil a partir de suas gerações.


Como foi criar a personagem Apolinária, conciliando o lado ficcional da história, mas também sendo justa com a pessoa que sua avó foi?
Tive a alegria de ter morado com a minha avó dos 3 aos 19 anos, quando ela morreu. Cresci ouvindo as histórias do Rio São Francisco e outras da vida dela e que ela amava. Esse jeito de narrar, esse jeito de falar é algo que está muito impregnado em mim e nas minhas memórias. A primeira vez que estive na região onde ela nasceu, perto de Bom Jesus da Lapa (BA), ouvi as pessoas falando e aquilo era tão familiar.

Um cuidado que tive foi o de não escrever com erros ortográficos ou de concordância, o que é algo que às vezes as pessoas fazem, numa tentativa de manter o modo como pessoas, principalmente as das classes populares, falam. As pessoas acham que é mais verossímil se tiver erros, o que é muito complexo, porque tangencia um preconceito linguístico.

Ali em “Apolinária”, na voz dela, eu tinha o desafio de narrar com essas marcas de oralidade, mas sem colocar inadequações da língua, para não parecer que estou chamando a atenção para o erro ou reproduzindo esse preconceito linguístico. Fui cuidadosa ao escrever essa voz na tentativa de manter o jeito dela de falar.


Há coisas na fala de Vó Polu que hoje soam politicamente incorretas, o que é natural, pois se trata de uma pessoa de outro tempo que carregou ideias desse tempo. Passagens como a em que ela diz para a neta “prender o cabelo ruim”. Você questionou se deveria ou não reproduzir essas falas no livro?
Seres humanos são complexos e contraditórios, assim como são os bons personagens da literatura. Não gosto das personagens planas, que são só boazinhas ou só malvadas, porque isso não existe. Minha intenção é que, em alguns momentos, o leitor amasse a Vó Polu e se identificasse muito com ela, e, em outros momentos, dissesse “nossa, não aguento mais essa mulher, porque ela está dizendo isso?”.

Nós sentimos isso em relação à gente mesmo, em relação às pessoas que a gente ama. Não tem perfeição. Concordo com o que a escritora Amara Moira diz, que, às vezes, na nossa literatura contemporânea, tem algo de “chapar”, como se para reduzir estereótipos precisássemos contar apenas uma faceta das pessoas, principalmente das mulheres, das pessoas negras e das pessoas trans. Acho isso um grande problema, porque é um tipo de desumanização.

Se ser humano é ser complexo e contraditório, como é que eu espero que uma pessoa não seja contraditória? Estou tirando dela a possibilidade do erro, da contradição, da complexidade. Eu também desumanizo. Esse excesso de perfeição, de fazer tudo correto, essa impossibilidade do erro, porque senão essa pessoa não vai ser respeitada, é algo extremamente preconceituoso. O contraditório faz parte da experiência humana.


O livro retrata uma viagem de Bianca ao interior da Bahia em busca de mais informações sobre o passado da família. Nesta passagem, aborda-se a dificuldade de acesso a documentos antigos por conta de interpretações equivocadas da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) por cartórios, igrejas etc. De que modo isso atrapalhou a pesquisa?
A gente está acostumado a repetir no Brasil que o Rui Barbosa determinou que fossem queimados os documentos da escravidão. Esse decreto de 1889, um ano depois da abolição, diz que o Ministério da Fazenda e órgãos correlatos precisam queimar os documentos. O objetivo do Rui Barbosa era impedir que escravocratas pedissem indenização por terem perdido aquilo que consideravam ser seu patrimônio.

Mas o Brasil tem muito mais documentos do que aqueles que estavam no Ministério da Fazenda. Existiam registros nas igrejas, nos cartórios, nos hospitais. Muitas instituições brasileiras têm documentos guardados, e que estão esperando por nós. Fui para a região de Bom Jesus da Lapa em 2022, muito animada com a possibilidade de encontrar documentos. E foi uma dureza sem fim receber porta na cara. “Não pode porque se você for procurar esse documento, você vai ter acesso a dados sensíveis de outras pessoas e de outras famílias.”

Aí eu tinha que deixar um pedido e eles tinham até 15 dias para responder. Só que quando se está fazendo uma pesquisa desse tipo, não dá para fazer tantos pedidos assim com espera de 15 dias.


“Apolinária”
• De Bianca Santana
• Editora Fósforo
• 112 págs.
• R$ 69,90


• A escritora é a convidada desta terça (7/10) do Sempre um Papo e conversa com o público sobre seu livro, a partir das 19h30, no Teatro José Aparecido de Oliveira, na Biblioteca Pública de Minas Gerais (Praça da Liberdade, 21). Entrada franca.

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