A apresentação do cantor Toni Garrido em um programa de televisão acendeu um pavio em um debate antigo: é válido alterar uma obra de arte para que ela se encaixe nos valores atuais? Ao mudar um trecho da música “Girassol”, que considerou machista, o artista dividiu opiniões e trouxe à tona uma discussão que vai muito além da música, envolvendo literatura, cinema e outras formas de expressão.

O episódio não é um caso isolado. Nos últimos anos, a revisão de obras clássicas se tornou um tema recorrente em todo o mundo. Livros de autores consagrados tiveram edições revistas para remover termos considerados ofensivos, enquanto filmes e séries antigas recebem avisos de conteúdo por representarem estereótipos datados. A polêmica levanta questões complexas sobre os limites entre atualização e censura, e sobre como devemos lidar com o legado cultural do passado.

Por que algumas obras são revistas?

A principal motivação por trás da revisão de obras artísticas é a evolução da sociedade. Valores, linguagem e a compreensão sobre temas como racismo, machismo e diversidade mudaram drasticamente ao longo do tempo. O que era aceitável ou passava despercebido décadas atrás, hoje pode ser visto como inadequado ou ofensivo por grande parte do público.

Quem defende as alterações argumenta que elas são necessárias para que as obras continuem relevantes e acessíveis para novas gerações. A ideia não é apagar o trabalho original, mas sim oferecer uma versão que possa ser apreciada sem o peso de preconceitos ultrapassados. Para esse grupo, a arte deve ser um organismo vivo, capaz de se adaptar e dialogar com o presente.

A remoção ou substituição de termos problemáticos é vista como um ato de responsabilidade social. O objetivo é evitar a perpetuação de estereótipos nocivos e garantir que o conteúdo cultural seja mais inclusivo. Em vez de afastar o público, a adaptação permitiria que a essência da obra chegasse a mais pessoas, despida de suas camadas mais controversas.

Qual o argumento de quem é contra as mudanças?

Do outro lado da discussão, estão aqueles que veem qualquer alteração como uma forma de censura e revisionismo histórico. Para esse grupo, uma obra de arte é um retrato fiel da época em que foi criada, com todas as suas virtudes e defeitos. Mudar seu conteúdo seria como tentar reescrever o passado para torná-lo mais palatável aos olhos do presente.

O principal argumento é a preservação da integridade artística e da intenção original do autor. Alterar palavras, cenas ou trechos seria desrespeitar a visão de quem criou a obra. Acredita-se que, em vez de modificar o trabalho, o ideal seria contextualizá-lo. Notas de rodapé, prefácios ou avisos poderiam explicar que a obra reflete valores de outro tempo, educando o público em vez de simplesmente esconder o problema.

Além disso, há o temor de que essas revisões abram um precedente perigoso. Quem decide o que é ofensivo? Quais serão os critérios para as próximas mudanças? A crítica é que esse movimento pode levar a um ciclo interminável de adaptações, empobrecendo o patrimônio cultural e limitando a liberdade de expressão artística.

Como analisar uma obra artística em meio a polêmicas?

A discussão sobre a validade de alterar obras de arte é complexa e não tem respostas fáceis. Para formar uma opinião informada, é útil analisar a situação sob diferentes perspectivas. O guia a seguir pode ajudar a refletir sobre o tema de forma mais estruturada.

  1. Entenda o contexto original: Antes de tudo, pesquise sobre o período em que a obra foi criada. Quais eram as normas sociais, os debates e os valores daquela época? Compreender o mundo do autor ajuda a decifrar as intenções por trás do texto, da música ou do filme.

  2. Analise a obra em si: Separe a mensagem central do trabalho dos elementos que hoje são considerados problemáticos. A obra depende desses trechos para fazer sentido ou eles são apenas detalhes que podem ser removidos sem grande prejuízo à sua estrutura?

  3. Considere o impacto atual: Pense em como a obra é recebida pelo público hoje. Para quais grupos ela pode ser ofensiva ou prejudicial? O impacto de uma peça artística não é estático; ele se transforma de acordo com a audiência e o tempo.

  4. Diferencie adaptação de apagamento: Uma nova versão, um remix ou uma adaptação para o teatro são diferentes de uma tentativa de substituir completamente o original. Verifique se a versão original continua acessível para quem deseja conhecê-la. O acesso à fonte primária é fundamental.

  5. Avalie a intenção da mudança: Tente entender por que a alteração foi feita. Foi uma decisão comercial para ampliar o público, uma tentativa genuína de atualizar a mensagem ou uma forma de evitar debates difíceis? A motivação por trás da mudança diz muito sobre sua validade.

  6. Forme sua própria visão: Com base nesses pontos, é possível construir um argumento mais sólido. Você pode concluir que a preservação integral é o mais importante ou que a ressignificação é um caminho válido para manter a arte viva e relevante.

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Mudar a letra de uma música é o mesmo que censurar um livro?

Embora partam do mesmo debate, os casos têm pesos diferentes. Uma performance ao vivo, como a de um cantor, é efêmera e representa a interpretação do artista naquele momento específico.

A mudança em um livro publicado, por outro lado, pode efetivamente substituir a versão original nas prateleiras, tornando-a inacessível. O ponto central é a preservação do acesso à obra como ela foi concebida.

A arte deve ser sempre um reflexo do seu tempo?

Sim, a arte é, inevitavelmente, um produto de seu tempo. Ela espelha os valores, as tensões, os preconceitos e a linguagem da época em que foi criada.

É justamente por isso que obras antigas podem conter visões hoje consideradas ultrapassadas. Tentar apagar esses traços pode ser interpretado como uma forma de higienizar a história.

Treyce - Em maio de 2023, o hit "Lovezinho", da Treyce, foi retirado do ar após uma acusação de plágio feito pela cantora e compositora Nelly Furtado, alegando ser a mesma melodia de "Say It Right". Reprodução Instagram
Nirvana - Os riffs de "Come As You Are", do Nirvana, se assemelham aos de "Eighties", da banda Killing Joke. Kurt Cobain reconheceu o plágio e o caso foi parar na justiça. Mas, Cobain morreu em 1994 e a banda retirou o processo. Reprodução de vídeo YouTube/Nirvana
Demi Lovato - A cantora foi acusada de copiar a música "Infinity Guitars", do grupo Sleigh Bells. A banda disse que a música "Stars" tem a combinação de bumbo e palmas e o tempo idênticos ao do hit de sua autoria. Justin Higuchi wikimedia commons
One Direction - A banda foi acusada de plágio no refrão de "Drag Me Down" pelo compositor Anir Shaheed-Edwards, o Bravo. Ele afirmou que o single é idêntico a "All My Life", de sua autoria. Mary Moline wikimedia commons
Justin Timberlake - O cantor pop foi acusado pela trupe do Cirque du Soleil de imitar a canção "Quidam", usada em espetáculo, na música "Don't Hold The Wall", do álbum "The 20/20 Experience". Gage Skidmore wikimedia commons
Ed Sheeran - O ruivinho britânico fez acordo com Martin Harrington e Thomas Leonard, autores de "Amazing", após acusação de copiar 39 notas na música "Photograph". Harald Krichel - wikimedia commons
George Harrison - O maior sucesso solo de George Harrison, "My Sweet Lord", é igual a "He's so Fine", do grupo The Chiffons. Harrison alegou não ter sido intencional, mas pagou indenização pelo plágio. @georgeharrisonofficial
The Beatles - A música “Come Together”, de John Lennon, se inspirou em "You can't catch me", de Chuck Berry. Paul McCartney admitiu que ele e Lennon gostaram da canção e tentaram mudar o ritmo. O caso foi para a justiça e houve acordo entre as partes. Vern Barchard - domínio público
O guitarrista Tony lommi admitiu que à época sofreu com "bloqueios criativos" pelo uso de drogas e entrou em pânico sem compor, mas não fez nenhuma referência à música da brasileira. wikimedia commons The wizard95
Roberto Carlos - O "Rei" perdeu uma ação de plágio movida por Sebastião Braga. "O Careta", gravado pelo cantor em 1987, parecia a canção "Loucuras de Amor". A música precisou foi retirada do catálogo. reprodução/instagram @robertocarlosoficial
Radiohead - A banda britânica de rock alternativo viveu os dois lados da moeda. Acusou Lana Del Rey de plagiar "Creep" na canção "Get Free". As partes fizeram acordo. Mas "Creep" era plágio de "The Air I Breathe", dos Hollies. O Radiohead teve que incluir os autores originais nos créditos. @radiohead
Rod Stewart - O britânico foi condenado a pagar indenização a Jorge Benjor por plagiar "Taj Mahal" na faixa "Da Ya Think I'm Sexy?". O dinheiro foi para o Unicef. Anos mais tarde, Rod confessou o plágio, mas disse que foi "inconsciente". Jakub Janecki wikimedia commons
Wesley Safadão - O cantor foi acusado de plágio por Jonas Alves pela música "Vaqueirinha Maltrata", mas ganhou a causa em abril de 2024. Jonas alegava ser autor da música, sem ter recebido pela composição. @safadoesdorj
O Led Zeppelin também já foi acusado de plagiar "Taurus", da banda Spirit, na clássica "Stairway to Heaven", do disco "Led Zeppelin IV" (1971). Paul Hudson wikimedia commons
Led Zeppelin - A Banda britânica assumiu dois plágios, passando a incluir os nomes dos compositores originais nas músicas. "Whole lotta love" derivou de "You need love", de Willie Dixon; e "The Lemon Song" inspirou-se em "Killing Floor", de Howling Wolf. reprodução/@ledzeppelin
Taylor Swift - Em outro caso, a cantora norte-americana, autora de "Shake It Off" (ao lado de Max Martin e Shellback), foi acusada de copiar trechos de “Playas Gon’ Play”, de Sean Hall e Nathan Butler, lançada pelo grupo 3LW em 2001. Reprodução/@taylorswift
“É inegável, com base na combinação e no número de semelhanças entre as duas gravações, que ‘Flowers’ não existiria sem ‘When I Was Your Man’”, diz o texto do processo. Reprodução/Instagram @mileycyrus
Detentora de parte dos direitos autorais sobre a obra de Bruno Mars, a Tempo Music Investments sustenta que “Flowers” contém trechos e elementos da música “When I Was Your Man”, gravada em 2013 pelo cantor. Reprodução/Youtube
Miley Cyrus - Em setembro de 2024, a cantora foi processada por supostamente plagiar Bruno Mars na canção “Flowers”, música que rendeu dois prêmios Grammy à norte-americana em 2023. Reprodução/Youtube
Acusações de plágio são relativamente comuns no universo musical. Veja outros casos que tiveram grande repercussão na mídia! Ylanite Koppens - pixabay
Apesar do litígio, o compositor disse estar aberto ao diálogo para um possível acordo com a diva britânica. divulgação
"Começo a sentir o gosto de Justiça. Porque fica parecendo que o nosso país, nossos músicos, nossas obras estão a mercê de qualquer um pra chegar e fazer bagunça, fazer o que quiser, usar a abusar", afirmou Toninho. reprodução/facebook
A ausência de resposta às notificações extrajudiciais enviadas por Toninho também foi apontada. A medida vale internacionalmente, baseada na Convenção de Berna, que protege obras artísticas. Raven B. Varona/Divulgação
A sentença destacou provas técnicas, como análises sonoras e pareceres de especialistas, além da similaridade reconhecida pelo próprio juiz ao ouvir as músicas. reprodução instagram @adele
Toninho pede indenização de R$ 1 milhão por danos morais, além de direitos autorais retroativos desde o lançamento da música, em 2015. freepik jcomp
A decisão, emitida pela 6ª Vara Empresarial, ordenou a retirada da faixa de plataformas como Spotify e YouTube, com multa diária de R$ 50 mil em caso de descumprimento. Reet Talreja Unsplash
No fim de 2024, outra popstar foi alvo de processo por plágio no Brasil. A Justiça do Rio determinou a suspensão da música "Million Years Ago", da britânica Adele, por considerar que ela plagiou a canção "Mulheres", de Toninho Geraes, popularizada por Martinho da Vila nos anos 1990. reprodução/instagram
Três outros artistas que criaram a música com Shakira também foram citados na notícia-crime. Fredímio Biasotto Trotta, advogado dos compositores brasileiros, tentou acordo extrajudicial antes de iniciar a ação. De acordo com o portal do Léo Dias, a equipe jurídica dos compositores cita 12 pontos similares entre as canções, como o refrão, e incluem detalhes do clipe de “Brzp Music Sessions vol. 53”. Reprodução Instagram
Lançada em janeiro de 2023, “Brzp Music Sessions vol. 53” conquistou o Grammy Latino de “Canção do Ano”. Com indiretas e provocações de Shakira ao ex-marido Gerard Piqué, o hit está no álbum “La Mujeres ya no Lloran”, que também foi laureado na cerimônia do “Oscar da música”. Divulgação/The Recording Academy
A defesa dos compositores Ruan Prado, Luana Matos, Patrick Graue e Calixto Afiune argumenta que a canção é cópia “categórica, cabal, evidente e impressionante” de “Tu, Tu, Tu”, música gravada por Mariana Fagundes e Leo Santana em 2020 e, mais tarde, pela dupla May e Karen. Reprodução/Youtube
Quatro compositores brasileiros acusam a cantora Shakira de plágio no sucesso “Brzp Music Sessions vol. 53”. A colombiana é uma das citadas em notícia-crime enviada ao Ministério Público do Rio de Janeiro. A expectativa é que seja aberto um inquérito polícial para apurar a denúncia. Reprodução/Instagram

O que significa o conceito de "morte do autor"?

É uma ideia da teoria literária que ganhou força na década de 1960. Ela sugere que, uma vez que a obra é lançada ao público, a intenção original do autor deixa de ser o fator mais importante.

A obra ganha vida própria, e a interpretação do leitor ou espectador se torna tão válida quanto. Esse argumento é frequentemente usado para justificar novas leituras e adaptações de clássicos.

Por que esse debate se tornou mais comum hoje?

A ascensão das redes sociais deu um alcance inédito a essas discussões. Além disso, há uma maior conscientização sobre o impacto que representações na mídia e na arte têm sobre grupos minorizados.

Essa combinação gera uma pressão social para que o legado cultural seja revisto. O debate reflete uma sociedade que está mais atenta e disposta a questionar o que antes era aceito sem críticas.

Uma ferramenta de IA foi usada para auxiliar na produção desta reportagem, sob supervisão editorial humana.

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