Lô Borges: Celso Adolfo conta como conheceu o álbum 'Clube da Esquina'
Em texto para o EM, artista de São Domingos do Prata detalha quando ouviu o icônico disco pela primeira vez, além de falar sobre seu encontro com Lô neste ano
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1972. Na esquina da Rua Rio Negro com Rua Brumadinho, no bairro Prado, o ambiente de supervisora de escola pública da casa de Dona Célia deixava no ar a vontade de que o ensino fosse levado a sério. Leila, filha dela, adorava a expressão cultura axilar, ironia que me pôs em alerta máximo para não ser atingido por aquilo que visava quem exibisse livros debaixo do braço sem jamais lê-los. Emílio Baptista, irmão de Leila, virou meu amigo-parceiro de composições naquela década cercada pelo baixo-astral da ditadura militar. A música brasileira também pagava caro, caríssimo, porque se manifestava contra tamanho atraso e variada covardia.
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Os festivais de música dos anos 1960 – e o que o antecedia e o que surgiria deles – davam os rumos naquela Rua Rio Negro, onde viviam Noel Rosa, Cartola, Chico Buarque, Milton Nascimento, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Caetano-Gil-Gal-Bethânia, Tom Zé, Os Mutantes, Roberto-Erasmo-Wanderléa, Elis Regina, Elizeth Cardoso, Edu Lobo-Capinam-Maria Medalha. Estavam diluídos aí outro tanto de artistas. E a indústria fonográfica pôs a mão na música daqueles festivais.
Mas aquela indústria e a imprensa hegemônica de então tiveram grande dificuldade para prestigiar um tal Clube da Esquina, estranho movimento que vinha do bairro de Santa Tereza, na capital mineira.
Morte e vida Severina
Ainda em 1972. Em vez de ter entrado num curso de teoria musical, eu terminava o curso de estradas na ETFMG – hoje Cefet. Dona Yolanda, professora de português naquela escola federal, aparece com uma ideia incomum naquele ambiente amedrontado pela sangrenta ditadura de 1964: convidou Walmir José para dirigir e remontar a já conhecida “Morte e vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto.
Como eu vivia com a cabeça no mundo da composição própria, Dona Yolanda achou que poderia me convidar para ser o jovem aluno que faria outra trilha sonora para a nova montagem. Do que eu fiz, as únicas coisas que se salvaram foram não fazer nada mais e manter “Funeral de um lavrador”, de Chico Buarque, autor da trilha da montagem original.
Montada a peça de teatro com os meninos-alunos de Belo Horizonte, ela foi levada aos meninos-alunos da Escola Técnica Federal de Sergipe. Que ninguém mais assistiria.
Feita a apresentação, alguns de nós fomos à casa de um professor local. E lá, a 1.600 e tantos quilômetros de Santa Tereza, de Belo Horizonte, eu me encontro novamente com o disco “Clube da Esquina”. Como foi dificílimo o início das carreiras de Milton, Lô, Beto Guedes e os mais, era sim uma grande vitória topar com aquelas músicas tão longe de onde elas vieram. Era uma prova de que não haveria força capaz de segurar a força daquele Clube da Esquina, que, afinal, implodiu as resistências e foi adiante.
No habitat
2025. Fazendo o que sempre faço, saí de casa sozinho para fazer turismo onde sempre morei: Belo Horizonte. Sozinho, fui mais uma vez à esquina da Rua Paraisópolis com a Rua Divinópolis, querendo ficar ali sem ninguém por perto. Mas foi ótimo ter sido recebido por Gabriel Guedes, também excelente músico, filho de Beto Guedes e de Silvana.
Os abraços de animação do fiador daquele lugar me fizeram um bem enorme. E Gabriel chama o Lô Borges. Chega o Lô, de boa, manso, conversado, conversando, abraços pra cá e pra lá e tal. E me deu enorme vontade de ser íntimo daquela esquina. Mas a esquina e eu sabíamos que, entre o desejo e a intimidade, havia muitas coisas não vividas por nós ali.
Debaixo da placa Clube da Esquina, Lô me surpreendeu mais uma vez quando foi logo comentando as nossas maneiras de tocar e de compor ao violão. Embora fosse aquela uma ótima chance, de tão inquietantes e ricas as melodias e harmonizações daquele Salomão Borges Filho, faltou muito a destrinchar das maravilhas da autêntica cria daquele habitat.
Céu do Cruzeiro
Pois é. Os dias gloriosos são mesmo inesperados. Num deles, saio de casa apenas para rever uma esquina e comparar lembranças entre o turismo daquele dia e a viagem de 1972, quando vi o disco “Clube da Esquina”, novinho, tão longe de BH, quando isso era, sim, um fato incrível. Contei o caso para o Lô (como já contara para Milton Nascimento) e ficamos em torno da força daquelas músicas contra as quais, um dia, fora destinada certa e injusta indiferença.
Lô se encarregou de deixar o céu azul e branco, como o Cruzeiro dele, para que eu, nascido Celso Adolfo Marques, com a sigla CAM do Galo Doido, ficasse à vontade na rua dele, na presença dele.
Passado um tempo, mal amanhecia o 2 de novembro de 2025 e tudo era apreensão. Entrada a noite daquele dia, “a hora”, inapelável e rente, deixava claro que, senão pela memória, que liga e desliga e liga infinitamente os acontecimentos ao sabor de cada chispa dos filamentos dela, nada daquele meu turismo se repetiria, revelando a verdadeira face da desolação.