“As ruas não tinham calçamento; os portões eram baixos, de ferro; e os adultos sentavam-se à varanda, ou nos passeios, em cadeiras de palhinha ao entardecer. Os meninos mais endiabrados aproveitavam a hora mais tranquila para aprontar alguma no fundo dos quintais”.

Parece a descrição de alguma cidadezinha no interior brasileiro. Mas trata-se da Belo Horizonte do início do século 20. Mais especificamente, o Bairro Santa Efigênia, que acabou rebatizado não oficialmente como Área Hospitalar devido à grande concentração de hospitais, clínicas e consultórios médicos.


A descrição do Santa Efigênia antigo, no entanto, é verdadeira e vem de quem viveu aquela realidade. Dona Elza de Moura, que morreu aos 108 anos em 2024, foi uma das primeiras moradoras do bairro. Suas memórias sobre as mudanças pelas quais a região passou foram fundamentais – embora não as únicas – para que a bibliotecária, radialista e escritora Rosaly Senra pudesse escrever “Santa Efigênia”, que será lançado neste sábado (8/11), na loja Made in Beagá. O livro é o 41º volume da coleção “BH. A cidade de cada um”. 

É por meio da relação pessoal com o bairro que Rosaly reconstrói a história do local. Natural de Congonhas, ela se mudou para a capital mineira na década de 1970 para estudar. Foi morar com os tios em Santa Efigênia e por ali conheceu personagens e casos curiosos.

Um deles dá conta de uma surra que Agnaldo Timóteo (1936-2021) levou de dois rapazes na adolescência. Nascido em Caratinga, Agnaldo passou parte da juventude em BH, morando no Bairro Novo São Lucas. Trabalhava em uma oficina mecânica que havia nos arredores e mexia com os “filhinhos de papai” que passavam. Dois desses meninos eram o atual coronel do Corpo de Bombeiros, Décio Pereira, e o irmão Hélcio.


Colégio Arnaldo

Certo dia, eles voltavam do Colégio Arnaldo, quando passaram por Agnaldo. O futuro cantor parou os dois, pegou a pasta da mão de Décio e falou: “Esses filhos de coronel aí, ó… Um dia vou meter a mão na cara de vocês”. Décio e Hélcio partiram pra cima e deram uma sova em Agnaldo. Muitos anos mais tarde, Décio reencontrou o músico em Cabo Frio. Eles lembraram do caso e tiveram uma longa e boa conversa, “de gente civilizada”, conforme lembrou o coronel do Corpo dos Bombeiros. 

Nessa época em que Agnaldo Timóteo era uma pessoa anônima em BH, a maior personalidade de Santa Efigênia era Conde Belamorte, apelido de Joviano Martins Soares Filho (1929-2013). Dono de um salão de beleza no bairro, ele só andava de roupas e capa pretas – o interior da capa era roxo. Mantinha as unhas grandes à lá Zé do Caixão e alimentava o mito de que ele e a esposa dormiam em caixões.

Conde Belamorte também era poeta. Certa vez, estando em São João del-Rei para um evento promovido por Tancredo Neves (1910-1985), Belamorte foi desafiado pelos músicos que se apresentaram a fazer versos dedicados a uma mulher que estava no local e chamava a atenção pela beleza e por carregar um cravo no decote do vestido. Belamorte aceitou o desafio, foi até a moça, pediu licença e declamou: “Ó cravo, como és de sorte / Morrendo entre os seios dela / Quem dera que o Belamorte / Tivesse a mesma morte tão bela”. 

“Só depois que eu já estava com o livro pronto, descobri que o Belamorte era primo de Ricardo Aleixo”, revela Rosaly, referindo-se a outro poeta belo-horizontino, autor de “Campo Alegre”, que também integra a coleção “BH. A cidade de cada um”.


Três bairros

A autora ressalta que Santa Efigênia é um dos bairros mais antigos da cidade. Quando a capital mineira foi transferida de Ouro Preto para Belo Horizonte, havia somente três bairros: Funcionários, concentrando os primeiros funcionários do Estado; Lourdes, onde moravam os ricos; e Santa Efigênia, que na época se chamava Quartel, por causa da proximidade com o 1º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais, na Praça Floriano Peixoto. Os primeiros moradores do Quartel eram majoritariamente militares e familiares.

Com o tempo, outras famílias chegaram e foram se estabelecendo por ali. É o caso do avô do ex-prefeito Alexandre Kalil, Moisés Kalil, que deixou a Síria com a esposa e se instalou em Santa Efigênia, trabalhando como dono de armazém entre as ruas Tenente Garro e Tenente Anastácio. E a família Balona, do acordeonista Célio Balona, morto neste ano. 

Outra curiosidade que a autora conta no livro é a visita que a Nobel de Física Marie Curie fez ao Instituto do Radium em agosto de 1926. O local, que hoje faz parte do Hospital das Clínicas, foi o primeiro hospital do país focado no tratamento de câncer por meio da radioterapia.

Marie Curie chegou à capital mineira acompanhada da filha Irène Curie e, além da visita ao instituto, ministrou palestra na Faculdade de Medicina da UFMG. A visita foi importante para a popularização da radioterapia no Brasil e para impulsionar o desenvolvimento da área no país. 

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“SANTA EFIGÊNIA”
• De Rosaly Senra
• Conceito Editorial
• 160 páginas
• Lançamento neste sábado (8/11), de 10h às 14h, na loja Made in Beagá (Av. Brasil, 305, Santa Efigênia). Entrada franca. Exemplares à venda por R$ 50 no local ou pelo site da coleção

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