A Rússia criminaliza e hostiliza movimentos e pessoas LGBTQIA+, persegue ativistas e há décadas torna quase clandestina qualquer expressão de afeto que escape da norma cis e heterossexual. É nesse contexto que surge "Ferida", livro de estreia em prosa da escritora russa Oksana Vassiákina, publicado pela primeira vez em 2021, e que chegou ao Brasil em setembro, pela editora Fósforo. O romance parte da morte da mãe para tocar em lesões coletivas: luto, herança do autoritarismo e violência contra corpos dissidentes.
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"A tarefa principal de qualquer pessoa que escreve é, antes de tudo, estética", diz a autora à reportagem. "Depois vem essa borda entre a autoterapia e a arte." Escrito entre o impulso da perda e a tentativa de compreendê-la, "Ferida" se constrói na contradição entre o pessoal e o político, o corpo e a palavra, a dor e o gesto de transformá-la em literatura. Para Oksana, escrever foi não só um modo de se curar, mas de criar uma moldura possível para a dor. "A literatura não é feita para deixar as coisas mais leves. Ela cria um espaço onde a tristeza pode existir."
A relação com a mãe, que atravessa o romance, é marcada por uma espécie de amor que só é compreendido quando não há mais tempo para dizê-lo. Oksana descreve a figura materna como uma ferida inseparável. Não por não ter sobrevivido, mas por ter existido. "As relações são, antes de tudo, a separação e a impossibilidade de se separar", afirma. Em "Ferida", o corpo da mãe é um entrelaçado de lembrança, espelho e prisão. É uma presença física que continua a habitar a narradora mesmo depois da morte. Uma narradora-personagem que, mesmo ao final do livro, se confunde com a própria autora.
No centro desse flerte entre autobiografia e autoficção, há uma imagem que se repete: o umbigo. Oksana o descreve como uma marca do que nunca se rompe. "O umbigo é o lugar onde algo foi cortado, mas a ferida permanece." No texto, diz Oksana, o umbigo é também uma tentativa de dar forma ao indizível, um ponto em que a biologia se confunde com a lembrança e o afeto se transforma em matéria.
Cura
Em meio à hostilidade crescente no país, Oksana decidiu permanecer. "Eu escolhi ficar. Muitos emigraram, mas para mim essa decisão foi consciente e de grande valor", afirmou. Hoje, mesmo depois de muitos amigos se exilarem após a guerra da Ucrânia, vive de forma quase isolada no extremo oeste do país, e diz se tratar também de uma questão de segurança. Após ser lançado, em 2021, a obra foi recolhida de livrarias porque, junto de tantas outras, foi tachada de feminista e instigadora do movimento LGBTQIA+.
Mais do que um romance sobre luto, "Ferida", diz Oksana, versa ao redor de uma pragmática que une um âmbito de cura – pessoal, familiar e coletiva –, um ato de resistência do existir, e um espaço de visibilidade feminista e lésbica. É um registro de memória sobre a mãe de Oksana e, no cenário expandido que a autora descreve, um lugar em que é possível lembrar, refletir e escrever sobre o próprio corpo como território de censura. (Gabriel Barnabé)
“FERIDA”
• De Oksana Vassiákina
• Editora Fósforo
• Tradução: Diego Moschkovich
• 248 páginas
• Preço: R$ 89,90
