Ele já tinha visto a morte de perto algumas vezes, a mais recente delas em 2018. Deu a volta por cima, depois de um mês de internação. Descobriu ali, dizia, “a arte de não morrer”.
Tanto que agora, quando ela realmente chegou, veio de forma tranquila. "Jards Macalé nos deixou hoje", anunciou na tarde desta segunda (17/11) sua equipe nas redes sociais. "Chegou a acordar de uma cirurgia cantando 'Meu nome é Gal', com toda a energia e bom humor que sempre teve."
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Jards Macalé, na verdade Jards Anet da Silva, cantor, compositor, ator, tijucano nascido às 3h de uma terça-feira gorda, 3/3/1943, morreu nesta segunda (17/11), aos 82 anos, no Rio de Janeiro. Estava internado no hospital da Unimed da Barra da Tijuca, após passar por procedimento cirúrgico na semana passada.
“Olhando para trás, foi bom à beça, com várias coisas boas e várias péssimas. Meu sentimento, agora que tudo passou, e não sei quantos anos tenho pela frente, é que vim ao mundo, na realidade, para fazer música”, disse Macalé ao Estado de Minas em 2023, quando atingiu os 80 anos. Na época, lançava aquele que se tornou seu derradeiro álbum de estúdio, “Coração bifurcado”, uma carta de amor à própria trajetória, aos amigos e parceiros, velhos e novos.
A música veio de casa, da mãe pianista e do pai acordeonista. Na juventude, estudou orquestração com Guerra-Peixe, violão com Turíbio Santos, violoncelo com Peter Dauelsberg. Mas logo caiu na música popular.
Primeira composição
Sua primeira composição, “Meu mundo é seu”, nasceu da parceria com Roberto Nascimento. Gravada por Elizeth Cardoso em 1964, foi também a porta de entrada para que Macalé substituísse, ao violão, Nascimento na montagem paulistana do show “Opinião”. Caiu nas graças de Maria Bethânia e Nara Leão (que gravou “Amo tanto”, sua segunda composição na vida).
Não demorou a se aproximar dos tropicalistas, atuando como compositor, instrumentista e produtor. “Sem Macalé não haveria ‘Transa’”, declarou Caetano Veloso a respeito de seu “primeiro amigo carioca na música”, que fez a direção musical, arranjos, guitarras e violões do antológico álbum gravado no exílio em Londres, em 1971.
Antes, já havia trabalhado com Gal Costa. Produziu o álbum “Legal” (1970) e compôs, com Waly Salomão, duas canções que se tornaram emblemáticas não só do repertório dele, mas da música brasileira: “Mal secreto” e “Vapor barato”. Tais canções também estariam em sua estreia solo, o álbum “Jards Macalé” (1972), lançado em seu retorno ao Brasil, ao lado de Lanny Gordin na guitarra e Tutty Moreno na bateria.
"Maldito"
Mesmo próximo dos tropicalistas, Macalé nunca se considerou como tal. Sem nunca se enquadrar, ou fazer concessões ao mercado, carregou, durante muito tempo, a pecha de maldito. Fez trilha para clássicos do cinema nacional: “Macunaíma” (1968), de Joaquim Pedro de Andrade; “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969), de Glauber Rocha; e “Amuleto de Ogum” (1973), de Nelson Pereira dos Santos.
Ainda em 1973, comandou o show-protesto “Banquete dos mendigos”, no Museu de Arte Moderna (MAM-Rio). O evento, que comemorava os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, reuniu meio mundo da música da época – a repressão também marcou presença, com tanques cercando a área do show. Nas artes visuais, sua relação mais próxima foi com Hélio Oiticica, que para ele criou a instalação “Macaléia”.
Macalé continuou na ativa até muito recentemente. Há menos de um mês, recorda Joyce Moreno, os dois estiveram juntos em show no Sesc, em São Paulo. “Foi meu primeiro parceiro, o primeiro colega que me convidou para compor junto com ele”, afirmou a cantora e compositora nas redes sociais.
Na maturidade, feliz da vida com o casamento com a cineasta Rosane Zilles – “Ela salvou a minha vida” – Macalé fez grandes obras. Antes de “Coração bifurcado”, lançou “Besta fera” (2019), disco de samba gravado com Kiko Dinucci, Thomas Harres e Rômulo Fróes que marcou sua volta aos inéditos. O álbum foi uma resposta ao período tenebroso que se anunciava com a chegada do governo Bolsonaro.
"Momento feliz"
Dois anos depois, se juntou a João Donato em “Síntese do lance” (2021). “É um momento muito feliz para mim. Como eu amo João Donato, que ouço desde que o descobri, em 1958, 1959. Diria que finalmente encontrei meu ídolo. E como o João é um grande criador, nas horas em que ele fica improvisando, eu fico mais olhando para ele do que tocando”, disse ele ao EM em 2022, quando veio a BH fazer o show de Donato na Autêntica.
O João do Acre poderia ser um ídolo, mas foi outro João, o baiano, que ele carregou por toda a vida. Macalé tinha adoração por João Gilberto, que o salvou da morte certa vez. Na década de 1980, em crise psicológica e financeira, ele tentou o suicídio por duas vezes. Na primeira, cansado de viver, despediu-se dos amigos, um a um.
Deixou João Gilberto, que o chamava Macala, por último. Ao receber o telefonema do adeus, o gênio o convidou para ir à sua casa. Quando chegou, encontrou a porta aberta. “Entra, Macala, vem pro quarto.” Encontrou João Gilberto na penumbra, pedindo que ele se deitasse no sofá. Ao violão, o baiano tocou “No rancho fundo” (Ary Barroso e Lamartine Babo). Tocou por horas e Macalé, como que hipnotizado, relaxou e dormiu. No dia seguinte, quando acordou, João Gilberto o esperava com o café em mãos.
Em julho de 1997, Macalé foi a Ouro Preto participar do Festival de Inverno da UFMG. Na época, recebeu esta repórter, então recém-saída da faculdade, para uma entrevista antes do show. Na varanda do quarto da pousada, sob o frio do inverno, comentou que estava adorando os Titãs – o “Acústico MTV” acabara de ser lançado.
Para Macalé, os Titãs haviam aprendido a tocar baixinho – deveriam ter aprendido os silêncios com João Gilberto. A conversa seguiu, até que ele tirou um baseado da roupa – a maconha era outra herança do baiano de Juazeiro. “Você se importa?”, perguntou-me Macalé. Quem era eu para me importar que fumasse?
