Sai em disco ópera criada por André Mehmari como um ‘baile inclusivo’
Pianista e compositor partiu do texto ‘O machete’, de Machado de Assis, para compor obra com referência ao erudito e ao popular, com destaque para o choro
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Em 2020, durante a pandemia, André Mehmari encarou o desafio de compor sua primeira ópera, atendendo a uma encomenda do projeto Sistema Nacional de Orquestras Sociais (Sinos), do programa Arte de Toda Gente, parceria entre a Funarte e a UFRJ.
Após quatro meses de trabalho, ele entregou “O machete”, criada a partir do conto homônimo de Machado de Assis. A estreia ocorreu em 2023, no Teatro São Pedro, em São Paulo. A obra agora ganha registro num álbum recém-lançado nas principais plataformas musicais.
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Além de assinar a composição e o libreto do que o crítico Irineu Franco Perpétuo classifica, em um texto de apresentação, como “a primeira ópera-choro brasileira”, Mehmari toca cravo, rabeca e atua, também pela primeira vez, como regente do grupo de músicos e cantores arregimentados para a gravação.
Ele conta que a encomenda do Sinos pedia uma obra que pudesse ser tocada por orquestras jovens, ligadas a projetos sociais, e que, fora isso, lhe garantia total liberdade criativa.
Originalmente publicado em 1878, o conto de Machado de Assis (1839-1908) que inspirou a criação da ópera tem como ideia central a oposição entre a cultura popular e a erudita, expressa no conflito entre a execução sóbria do protagonista Inácio Ramos ao violoncelo e a divertida e descontraída maneira de tocar de Barbosa ao machete, instrumento de origem portuguesa que se assemelha ao cavaquinho ou à rabeca. Carlota, a jovem esposa de Inácio, o abandona e foge com Barbosa, após este alcançar popularidade em saraus domésticos.
Música e literatura
Mehmari destaca que sempre fez pontes entre música e literatura e que tem Machado de Assis como um visionário e referência. Ele conta que, quando veio o convite para a composição, não teve dúvidas quanto ao autor que seria sua fonte de inspiração.
“Eu já conhecia bem os contos de Machado que se conectam com músicas, mas não 'O machete'. Quem me atentou para ele foi José Miguel Wisnik. No momento que o li, achei perfeito para a ópera, comecei a vislumbrá-la durante a leitura”, diz.
Ele observa que, por sua natureza, produção e procura estética, sempre o fizeram comentar acerca das fronteiras entre o “erudito” e o “popular”, e que “O machete” é, até o momento, sua mais profunda e completa reflexão sobre o assunto.
“Me conecto com essas questões de alta e baixa cultura, erudito e popular, tudo sem qualquer viés moralista, em sintonia com as camadas sociais, com aquele Brasil urbano que surgia entre o final do século 19 e início do século 20, que Machado descreve com fina ironia”, diz.
A música afro-brasileira que começava naquele momento a conquistar o Brasil, expressa em gêneros como o maxixe e o choro, atravessa a ópera composta por Mehmari, que inclui citações ao “Corta-jaca”, de Chiquinha Gonzaga, bem como alusões mais ou menos explícitas que vão de Bach e Monteverdi a Brahms e Villa-Lobos, passando por Tom Jobim, Beethoven, Mozart e Ernesto Nazareth, que, no seu entendimento, é “a mais perfeita tradução dessa aurora da música brasileira mestiça”.
Inácios e Barbosas
Ele diz que, diante da incumbência de compor uma ópera, “O machete” de Machado de Assis encontrou seu destinatário. “De fato, aquele conto se conecta com minha poética musical em vários níveis, porque sou um músico que transita por diversos ambientes que, muitas vezes, não se alinham de forma natural, e esse trabalho permitiu que eu os alinhasse”, destaca, acrescentando que, ao longo de sua trajetória, construiu parcerias e amizades duradouras com uma infinidade de “Inácios e Barbosas” contemporâneos.
Mehmari não hesita em dizer que este foi o projeto mais ambicioso que já abraçou, tendo uma atuação que parte desde a escrita do libreto em 2020 até a masterização do álbum agora lançado, passando pela escolha e regência dos músicos que participaram da gravação.
Ele pontua que a arregimentação do elenco foi feita em parceria com o pianista ensaiador Leandro Roverso, preparador vocal da ópera, e com o violoncelista Rafael Cesário, que funciona como um alter ego musical de Inácio, interpretado pelo tenor William Manoel.
Essa empreitada cheia de primeiras vezes – compor uma ópera, empunhar uma batuta – impôs desafios, segundo Mehmari. O maior, ele diz, foi encontrar a estética musical para casar com o conto de Machado de Assis.
“Como conectar as suítes de Bach com o 'Corta-jaca' de Chiquinha Gonzaga? Essa obra lança mão de várias músicas, é um baile inclusivo. O ponto sensível da ópera brasileira é a questão da inteligibilidade do canto lírico no português falado aqui. Procurei revelar a transparência da canção brasileira na escrita lírica”, diz.
Trilogia machadiana
Depois de compor "O machete", André Mehmari se aventurou na criação de uma segunda ópera, "A procura da flor", também a partir da obra de Machado de Assis, com libreto de Geraldo Carneiro inspirado em "Esaú e Jacó", e que, curiosamente, estreou antes, em 2022, no Festival de Música Erudita do Espírito Santo.
Ele projeta fechar uma trilogia do Bruxo do Cosme Velho com a escrita de uma ópera sobre "O alienista". "Essa é minha ideia, estou conversando com possíveis parceiros, vislumbrando isso para um futuro não muito distante", diz.
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“O MACHETE”
• De André Mehmari
• Estúdio Monteverdi
• Disponível nas principais plataformas