Como é tirar uma ideia do papel e dar vida a negócios gastronômicos
Chefs e proprietários de espaços gastronômicos abertos este ano em Belo Horizonte compartilham as dores e delícias desde a concepção do projeto até a operação
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Cardápio, fornecedores, localização, obras, logística, presença digital… São diversos os fatores a se pensar ao desenvolver um restaurante, apesar de o cliente, muitas vezes, não enxergar além do que lhe é servido. Os desafios são diários na vida de chefs e proprietários de espaços gastronômicos, afinal, em um negócio, especialmente em uma cozinha, o imprevisível já é previsto.
Sócios de novas casas de Belo Horizonte (algumas com nem mesmo um ano de abertura) contam um pouco do processo de pré-abertura, das batalhas diárias e, claro, da identidade de seus restaurantes, que são criados e “gestados” tal como filhos.
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De repente, um café
A pandemia foi uma virada de chave na vida de Maria Luiza Alves (mais conhecida como Malu), sócia-proprietária e fundadora da cafeteria e confeitaria Afeto. Até aquele momento, ela nunca tinha trabalhado com cozinha, era estudante de administração.
“Acreditava que seguiria carreira executiva, mas fui demitida da empresa onde fazia estágio com a chegada da pandemia e daí veio a ideia de fazer caixas de café da manhã para vender no Dia das Mães, já que sempre soube fazer bem bolos”, conta.
O que ela não imaginava é que a invenção seria um grande sucesso, tão grande que, no ano seguinte, em 2021, ela e seu sócio e companheiro, Pedro Cunha, precisaram procurar um espaço maior para morar e acomodar a produção. Escolheram uma casa no Bairro Santo Antônio, Região Centro-Sul de BH, onde funciona até hoje a Afeto e onde o casal vive (no andar de cima).
A obra só foi finalizada em 2022, já que eles fizeram de pouco em pouco, até pelo orçamento. Logo que começaram a atender os clientes, tiveram de enfrentar desafios. O primeiro deles era que, como só funcionam com reservas, se alguém faltasse sem avisar, a produção era desperdiçada e as vendas, perdidas. Para resolver a questão, eles optaram por atender por ordem de chegada.
Com a mudança, veio outra questão: a fila de espera era grande e recorrente e a casa não conseguia comportar toda a demanda. No último ano, eles chegaram a buscar um novo espaço para outra unidade, mas não encontraram nada que atendesse às necessidades da cafeteria.
Nova casa
Em 2025, entretanto, chegou a hora de os sócios serem procurados. A Afeto foi convidada pelo Minas Tênis Clube para abrir uma filial na Casa Rosada, que fica no Bairro Lourdes, Região Centro-Sul de BH. O espaço é como um centro cultural do clube e, desde agosto deste ano, conta com as delícias preparadas por Malu e Pedro.
Uma das especialidades dela são os bolos – há opções que mudam a cada semana, como chocolate com creme de doce de leite e chocolate e crocante de mel (R$ 22), além do clássico de fubá (R$ 16), servido todo dia – e dele os pratos salgados, a exemplo do Kimcheese (R$ 38), sanduíche de queijo e kimchi (acelga fermentada e apimentada). Para acompanhar, bebidas quentes (café, cappuccino e chá) e frias (sucos).
A nova operação trouxe novos desafios. “O início é muito complexo, mesmo a gente já dominando o que faz. Até colocar tudo no eixo parece que está uma grande bagunça”, conta Malu, que se frustra um pouco quando algo simples ou banal falta na produção, apesar de saber que isso é natural e precisa de tempo. “Às vezes, quando estamos fazendo algum produto, vemos que falta uma forminha, por exemplo”, explica.
Ambiente colorido
Inaugurado em junho, o Tom, localizado no Centro da capital, é o filho mais novo – e que mais demorou a “nascer” – da chef Ana Clara Valadares. Até sair do papel, o projeto levou cerca de três anos. “Em 2022, abrimos (ela e o marido e sócio Túlio D’angelo) o Palito, um bar de drinques, mas já nos encantamos com a loja onde hoje é o Tom”, conta.
O bar e o restaurante ficam na Galeria São Vicente, que vêm sendo ocupada por operações gastronômicas nos últimos anos, muito graças a Túlio, que faz um trabalho de curadoria por lá. Foi ele, inclusive, que combinou com os proprietários que o ponto onde fica o Tom fosse reservado para eles.
Ana Clara conta que o Tom passou por um primeiro projeto antes de chegar à proposta ideal. “Nossa ideia inicialmente era trabalhar só com cozinha fria e, inclusive, tinha um projeto arquitetônico para esse restaurante, mas percebi que ele não traduziria quem eu sou como cozinheira. Mesmo participando, não consegui me encaixar nele”, conta, destacando a importância de ter paciência no processo de criação de uma casa.
Em 2023, eles começaram um novo projeto, algo que fizesse sentido para a chef, afinal de contas, seria o seu restaurante, onde o Túlio seria um apoio nos bastidores. “Queríamos um ambiente colorido, com referências arquitetônicas modernistas, ligadas aos anos 1940, 1950”, diz. A referência é a estética proposta pelo cineasta estadunidense Wes Anderson, famoso pela paleta de cores alegre e ambientação vintage.
Cozinha de herança
Assim como o projeto, o cardápio do Tom passou por mudanças, que, de certa forma, eram previstas. Vale ressaltar que a casa, que carrega o lema “cozinha de herança”, aposta em lembranças e momentos da vida da chef.
Um dos destaques do menu é o “Ahimi” (R$ 59), brioche frito com maionese da casa, tomate curado e ovas de salmão. Nele, o tomate se torna protagonista e chega a aparentar ser uma fatia de atum. “Fiquei anos no Florestal, restaurante de protagonismo vegetal da chef Bruna Martins, e queria trabalhar com vegetais (nesse caso, uma fruta).”
Imprevistos
Surpresas – desagradáveis – são o grande desafio ao comandar um restaurante, na opinião de Iolanda Silva, sócia-proprietária do Casa Azeite, no Bairro Floresta, Região Leste. Também inaugurada neste ano, em janeiro, a casa tem cardápio diverso e segue o gosto pessoal de Iolanda e de seu companheiro e sócio, Philippe Borges.
“O inesperado é o maior desafio para mim. Sempre acontece algo, seja uma pessoa que não pôde vir trabalhar, uma máquina que parou de funcionar, a luz que caiu, a água que não chega…”, comenta a proprietária, que diz saber que esses fatores não vão necessariamente parar com o tempo, mas que seu jeito de lidar com eles provavelmente vai.
Iolanda, que é engenheira ambiental de formação e trabalhava com marketing, também diz ser difícil manter um restaurante por si só. “As contas precisam fechar e vejo que muitos clientes não entendem que o preço final tem muita coisa por trás, tudo o que é preciso para que um restaurante funcione.”
Postou, vendeu
Um ponto sempre forte de Iolanda e Philippe é a presença digital. Ele é engenheiro de produção e trabalha até hoje com marketing. “Antes de abrirmos o restaurante, já tínhamos o Instagram. Lá, mostramos os projetos, a obra e hoje o que servimos.”
Isso, inclusive, molda bastante a experiência do cliente, afinal, os pratos mais “vistosos” são os que mais saem: a guioza de pato (R$ 65) ou cogumelo (R$ 55) e a acelga na brasa com creme de castanha de caju e queijo maturado mineiro (R$ 32).
O cardápio é, assim como o espaço, descolado. “Garimpamos muito, desde copos e cadeiras até janelas”, conta Iolanda, que preza muito pela sustentabilidade e reaproveitamento. Além desses atributos, o uso desse acervo vintage e diverso é o que leva tanta personalidade para o salão.
A carta de drinques é composta por cinco clássicos – a exemplo do Cosmopolitan (R$ 39), com suco de cranberry, limão, vodca e licor de laranja, e do Aperol Spritz (R$ 35), com espumante, aperol e água com gás – cinco autorais.
A responsável pelas criações é a própria Iolanda, que diz ser uma amante da coquetelaria. O grande destaque e campeão de vendas é o Guimarães Rosa (R$ 33), uma releitura do Fitzgerald com limão capeta, angostura, gim e torrão de açúcar. Para quem preferir degustar todos, o restaurante serve um menu degustação com versões em miniatura de todos os cinco drinques autorais por R$ 71.
Eu sou da América do Sul
“Para Lennon e Mccartney”, canção de Fernando Brant, Márcio e Lô Borges, eternizada na voz de Milton Nascimento, já dizia: “Eu sou da América do Sul, eu sei vocês não vão saber, mas agora eu sou cowboy, sou do ouro, eu sou vocês, sou do mundo, sou Minas Gerais.”
E Minas, por mais que esteja na América, parece se deslocar um pouco do que conhecemos por latino ou sul-americano, em termos de cultura e culinária. É exatamente o contrário disso que os sócios do Casa Gabo, bar de gastronomia latino-americana, inaugurado em outubro de 2024, tentam mostrar aos mineiros: também temos sangue latino.
Esse processo, além de ser o cerne do bar, é o grande desafio que diariamente precisa ser enfrentado. “Queremos falar que a gastronomia latino-americana, com suas nuances, tem muitas semelhanças com a mineira. Quando os clientes provam pratos aqui pela primeira vez, pode haver um estranhamento no momento inicial, mas logo sentem como o sabor é familiar”, destaca um dos sócios, Augusto Franco.
Ambas são cozinhas de escassez, de quintal, que usam muito frango, porco e vegetais. No cardápio, por exemplo, há apenas um prato de carne vermelha, o cupim desfiado servido com iguarias típicas do México, como o guacamole (R$ 89).
Outras referências que sequer imaginamos da gastronomia estrangeira é traduzida por funcionários da casa. Um dos garçons, que é venezuelano, apresentou o Pan de Jamón (R$ 45), pão recheado com presunto, uva passa, azeitonas e especiarias. Segundo Augusto, a comida é associada ao Natal na Venezuela.
União de forças
A casa nasceu da união de Augusto, Daniel Ballesteros, Pedro Pereira (os três também são sócios da cervejaria São Sebastião); Gabriel Motta e Bárbara Bulis (da cervejaria Inspetor Sands); Thales Campomizzi e Guilherme Costa (da Cachaçaria Lamparina); e Ornela Mattos, que está à frente da cozinha do Casa Gabo.
Antes de eles saberem o que seria o negócio, já haviam batido o martelo quanto ao ponto, um casarão de 1897 localizado na Região da Savassi. “Ele foi construído para abrigar a comissão construtora de Belo Horizonte. Tem base europeia, mas foi feito por gente daqui”, destaca Augusto.
O espaço, aliás, foi outro grande desafio. Como é tombado, eles, evidentemente, tiveram que cumprir várias exigências da Prefeitura de Belo Horizonte e isso atrasou um pouco a abertura da área interna do bar, inaugurada em junho. Nos meses anteriores, apenas a parte externa funcionou.
“Precisamos de um especialista que fez a ponte entre os sócios, o nosso projeto e a prefeitura. Esse processo foi um dos mais demorados”, conta.
À flor da pele
Além de serem donas do próprio negócio e de trabalharem com gastronomia, Maria Luiza Alves e Ana Clara Valadares compartilham uma vivência complexa: conciliar a gestação e a maternidade com a abertura de uma nova casa.
No caso de Ana, chef e proprietária do Tom, restaurante no Centro de BH, o nascimento do segundo filho, José Francisco, que hoje tem 11 meses, foi o que lhe fez bater o martelo quanto ao fato de comandar sua própria casa.
Ela tinha passagens por diferentes cozinhas, mas, ao dar à luz aos dois filhos, descobriu que tinha forças para seguir com um projeto próprio. “Vi que era capaz de ter algo meu”, conta, destacando que teve muito suporte de seu marido, Túlio D’angelo, para entender isso.
O Tom, aliás, diz muito sobre a maternidade de Ana. Seu primeiro filho, Antônio Bento, de 4 anos, foi quem batizou o restaurante recém-inaugurado. Tom é o seu apelido.
Ano de novidades
2025 está sendo desafiador, mas muito especial para Maria Luiza Alves. Além da abertura da nova unidade da Afeto, sua confeitaria e cafeteria, a Afeto, o ano marca o início do novo bar e restaurante de Pedro Cunha, companheiro de Malu, que deve abrir no próximo mês. Como se não bastassem tantas novidades, os dois ainda estão esperando o primeiro filho. Ela está grávida de seis meses do Marcelo. “O neném veio para arrematar esse ano”, brinca.
Apesar das dificuldades em conciliar tudo isso, as notícias são positivas e fazem com que o casal viva um passo de cada vez, permitindo-se fazer aquilo que dão conta no momento. “Às vezes, ficamos pensando se vamos dar conta de tudo, mas temos em mente que, se não dermos, a gente pode dar um passo atrás.”
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*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino