“Garçom, aqui, nessa mesa de bar. Você já cansou de escutar centenas de casos de amor”. A canção de Reginaldo Rossi atravessa gerações e ilustra de maneira poética o papel de confiança que o cliente deposita no profissional. Mas ser garçom vai muito além da imagem do ombro amigo: é ele quem apresenta a casa, explica o cardápio, indica harmonizações e conduz a experiência, do início ao fim.
A função foi considerada, por muito tempo, como uma porta de entrada no setor de serviços. Quem começava servindo mesas muitas vezes crescia em hotelaria, bares, cafés e bufês, ganhando experiência em hospitalidade. Até hoje, em restaurantes e hotéis de alto nível, o garçom é a peça-chave para transformar uma refeição em lembrança.
A profissão, no entanto, enfrenta uma crise de atratividade. Salários fixos baixos, dependência de gorjetas, carga horária noturna e falta de perspectivas afastam novos talentos. Muitos jovens encaram o trabalho como “bico”, não como carreira. O impacto é visível: segundo a Abrasel, a rotatividade média em bares e restaurantes chega a 75% ao ano, uma das mais altas entre os setores de serviços.
E ainda que a gastronomia esteja em expansão, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que o setor de alimentação fora do lar movimenta mais de R$ 200 bilhões por ano no Brasil. Mas a valorização do garçom não acompanha o ritmo. Na prática, isso significa que a primeira e a última impressão do cliente, responsabilidade direta do atendente, muitas vezes é sustentada por profissionais que trabalham sob pressão, em jornadas que ultrapassam 10 horas diárias.
'A capacitação e o reconhecimento real são os caminhos para reposicionar o garçom como especialista em hospitalidade' - Edson Puiati, diretor de hospitalidade e gastronomia do Senac Minas
Para o consultor e professor Edson Puiati, diretor de hospitalidade e gastronomia do Senac Minas, o setor precisa encarar o problema de frente. “É fundamental criar planos de carreira claros, do cumim ao maître, e aproximar os estabelecimentos das instituições de ensino, como o Senac. Cursos rápidos, treinamentos contínuos e certificações reconhecidas no mercado podem transformar a profissão. A capacitação e o reconhecimento real são os caminhos para reposicionar o garçom como especialista em hospitalidade”, defende.
Realidade dura
Mas a realidade tem sido dura. A concorrência não vem apenas de outras áreas do setor de serviços, mas também da chamada economia de plataforma, ou seja, aplicativos de transporte, entregas e trabalhos informais que oferecem ganhos imediatos e horários mais flexíveis. Para muitos jovens, o garçom já não representa a chance de estabilidade ou de futuro: pesa a baixa remuneração, a falta de perspectiva de aposentadoria e a jornada desgastante.
Restaurantes de alto padrão ainda conseguem manter quadros estáveis, mas, no mercado em geral, a rotatividade é alta e o interesse em seguir carreira, baixo. O desafio, portanto, vai além de melhorar salários. É preciso oferecer condições de trabalho equilibradas, planos de evolução bem definidos e políticas que reconheçam o esforço e a importância de quem está no salão. Só assim será possível transformar o garçom de simples executor em protagonista da experiência gastronômica.
Nos restaurantes de prestígio, esse movimento já acontece. Lá, o garçom deixa de ser apenas executor de pedidos para se tornar um intérprete da experiência, com domínio de técnicas de serviço, carta de vinhos e até atendimento bilíngue.
Referência na área
Um exemplo que atravessou décadas é o de Olympio Perez Munhoz, o Seu Olympio, garçom da Cantina do Lucas, em Belo Horizonte, que trabalhou de 1962 até 2003, quando faleceu. Registrado no “Guinness Book" como o garçom com mais tempo de atividade no Brasil, ele virou lenda. O prato “Filé Olímpio” (filé fatiado ao molho roti e champignon, arroz com açafrão e tomate, batata-palha e brócolis) foi batizado em sua homenagem e continua no cardápio.
O prato 'Filé Olímpio' foi batizado em homenagem ao garçom da Cantina do Lucas Olympio Munhoz
“A Cantina tem 63 anos e, para manter essa tradição, você não pode ter rotatividade. Manter uma equipe significa conhecer a clientela. Então, a gente valoriza ao máximo nossos funcionários, para que ascendam aqui dentro. Temos casos de pessoas que começaram como copeiros e hoje são chefs de cozinha”, explica Antônio Mourão, gerente há 37 anos da Cantina e também da Casa dos Contos.
Observador atento
A fala reflete a experiência de Flaviano Nunes, de 60 anos, que veio do Norte de Minas e trabalha na área desde os 17. “Comecei pela renda, mas aprendi a gostar e não largo mais”, conta. Ele ressalta que o bom garçom também é um observador atento. “Às vezes, você percebe que o cliente brigou com a esposa ou se estressou no trânsito. Cabe a nós mudar o humor sem confundir amizade: existe uma distância entre consumidor e garçom que deve ser respeitada.”
Flaviano Nunes trabalha desde os 17 anos na área e destaca que um bom garçom deve saber mudar o humor dos clientes
Com quase 25 anos na Cantina do Lucas, Flaviano admite estar preocupado com a baixa procura. “Está faltando muito funcionário nessa área. A carga horária é pesada, a gente trabalha até duas da manhã, uma da manhã… e não tem transporte. O ônibus roda até meia-noite só no Centro.”
Orgulho da trajetória
Essa dedicação também cria vínculos que extrapolam o trabalho. Esley Diniz, de 46, também começou como copeiro e hoje carrega orgulho da trajetória. “Tudo que eu tenho foi através da bandeja, como a gente fala. Minha gravata e minha bandeja”, destaca.
Para ele, a profissão vai além de servir. “Passo mais tempo com meus colegas do que com a minha família. Aqui a gente cria amizade, confiança. Quando um erra, o outro ajuda a consertar. É assim que a engrenagem funciona.”
'Tudo que eu tenho foi através da bandeja, como a gente fala. Minha gravata e minha bandeja' - Esley Diniz, garçom da Cantina do Lucas
O cotidiano, porém, é desafiador. Esley conta que o garçom muitas vezes precisa “virar o jogo” do cliente. “Tem gente que chega mal-humorada, com problema de casa, do trabalho. O papel do garçom é tentar reverter isso, fazer com que ele se sinta bem aqui dentro. O salão não é lugar de aumentar a dor de ninguém, é lugar de aliviar.”
Ele também lembra que, apesar dos avanços, ainda há ambientes hostis. “Tem lugar em que o cliente é péssimo e o patrão pior ainda. Muita gente acha que não mudou nada, que o garçom continua sem voz. Mas, em algumas casas, como aqui, a gente percebe melhorias, seja em benefícios, seja em qualidade de vida.”
Ainda assim, Esley frisa sobre o que move quem segue no ofício: a tradição. “Garçom que é garçom gosta de casa tradicional, de prato bem feito, de cliente que respeita. Isso é o que nos dá sentido. No fim, é o cliente satisfeito que mostra que valeu a pena.”
Atendimento personalizado
Do outro lado do balcão, empresários reconhecem o peso do atendimento. Marcelo Santini, sócio do Bar do Véio, no Bairro Caiçara, Região Noroeste, usa uma metáfora caseira: “Se a mulher do seu irmão tratar mal seus filhos, você pensa duas vezes antes de voltar para casa dele. No bar é igual. O cliente não volta se não for bem-tratado.”
Por isso, ele orienta sua equipe a personalizar cada atendimento: uma brincadeira leve, um gesto carinhoso com as crianças, um pirulito ao final. “Toda criança que vem aqui ganha um pirulito. Depois cresce, vira adolescente, adulto… e continua lembrando disso.”
No mesmo bar, Gilberto Junior de Melo Rocha, de 38 anos, garçom desde os 13, confirma que são esses detalhes que fidelizam o público. “Comida e bebida você encontra em qualquer lugar. O que faz o cliente voltar é ser bem-tratado. Às vezes ele chega de mau humor, mas se sai sorrindo, a missão foi cumprida.”
Gilberto Rocha aprendeu desde cedo que atender é uma arte que exige técnica e sensibilidade
Há 14 anos no bar, Gilberto aprendeu desde cedo que o atendimento é uma arte que exige técnica e sensibilidade. “Tive bons professores, bons instrutores. Fiz curso de atendimento, carta de vinhos… mas o dia a dia também é um curso. Você vai errando, acertando, aprendendo com quem já está na frente.”
Ele acredita que a paciência é o maior diferencial. “O cliente acha que é dono do bar, que pode mandar em tudo. Nosso papel é entender, mas também impor limites. A casa tem regras.”
Sempre agradecido
Na prática, ele transforma essa filosofia em gestos simples: uma brincadeira leve, um sorriso, um agradecimento sincero. “Não é ultrapassar o limite, é transformar a noite dele em algo melhor. Eu até agradeço quando eles vão embora: obrigado por você existir, obrigado por ter vindo.”
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O garçom também reconhece os sacrifícios da profissão: trabalhar fins de semana e feriados, abrir mão de momentos com a família e lidar com situações de estresse. “É uma escolha. Você sacrifica muita coisa da vida para viver essa profissão. Por isso a gente não vê tantos jovens entrando. Mas quem fica, fica porque ama, porque acredita.”
E é justamente esse amor pelo ofício que o mantém motivado. “Se não tiver carinho com o cliente, não tem diferença. Comer bem você come em qualquer lugar, mas ser tratado com cuidado… isso é raro. É isso que faz o cliente voltar, e é isso que faz a gente aguentar as noites longas.”
Escola de vida
O trabalho de garçom pode ser símbolo de transformação pessoal e social. O baiano Lucas Ribeiro Navarro de Araújo, de 23 anos, entrou para o setor aos 17, como complemento de renda, em Belo Horizonte. “Fui gostando da área, me interessando e hoje busco experiência para abrir meu próprio negócio.”
Além do aprendizado prático, Lucas Araújo destaca a oportunidade de crescimento pessoal ao se relacionar com pessoas diferentes
Ele ressalta que comunicação, agilidade e até o aprendizado de línguas são diferenciais importantes para quem deseja crescer nesse mercado. “Saber lidar com diferentes públicos, entender demandas e se adaptar rapidamente faz toda a diferença”, afirma.
Mas Lucas, há três meses no Moema Bar e Cozinha, na Savassi, Região Centro-Sul da capital, alerta para uma dimensão que vem ganhando cada vez mais destaque: a saúde mental. “É um trabalho exaustivo, tanto na cozinha quanto no salão. Muitos desenvolvem burnout. A pressão é constante: você precisa estar sorrindo, mesmo cansado, mesmo quando o cliente não é fácil.”
Ele conta que noites mal dormidas, ritmo intenso e pouco tempo livre são comuns e é necessário buscar estratégias para manter o equilíbrio. “Muitos colegas aprendem a se desligar mentalmente depois do expediente, praticar esportes ou meditação. É essencial para não se perder no estresse.”
Essa rotina marcada por estresse, turnos longos e jornadas irregulares já foi apontada em pesquisas acadêmicas como fator de vulnerabilidade, associada a problemas de ansiedade, depressão e insônia entre profissionais da gastronomia e serviços de hospitalidade. A pressão por performance constante, aliada à expectativa de cordialidade, torna o trabalho emocionalmente desafiador.
Crescimento pessoal
A visão de Lucas dialoga com a experiência de Weslander Gomes Dias, de 31, que começou como lavador de copos em eventos e hoje é um garçom experiente, também no Moema Bar e Cozinha. Inspirado por familiares, ele descobriu paixão pelo contato com o público.“
Inspirado pela família, também de garçons, Weslander Dias não pretende abandonar a área, mas, sim, abrir um bar ou restaurante
A gente convive em ambientes de festa, de alegria. Mas ser garçom exige mais que servir: é ser um pouco psicólogo, entender sentimentos e gerir relações.” Para ele, a capacidade de percepção emocional e a empatia são tão importantes quanto saber servir uma mesa ou anotar pedidos corretamente.
Weslander não pretende abandonar a área. “Talvez eu não seja garçom a vida toda, mas quero continuar servindo, seja no meu próprio restaurante ou bar.” Para ele, a profissão ensina valores como paciência, cordialidade e reciprocidade. “É uma escola de vida. Aprendi a lidar com pessoas, a respeitar diferenças, a encontrar equilíbrio.” Ele acrescenta que a profissão também contribuiu para seu crescimento financeiro e social, permitindo criar oportunidades que não teria de outra forma.
Mais informalidade
Essa dimensão revela mudanças no perfil do atendimento. Se antes o garçom era símbolo de formalidade e etiqueta rígida, hoje os clientes buscam uma relação mais descontraída, especialmente em bares. “O mineiro gosta de um atendimento mais solto, de conversa leve, quase como entre amigos”, comenta Lucas. Ainda assim, a informalidade não elimina a técnica. Saber preparar coquetéis, combinar sabores, organizar mesas e manter o controle sobre o serviço são habilidades essenciais.
Weslander defende que “o bom garçom é vendedor, comunicador, mas também alguém que sabe os limites. Um profissional que entende que atender não é se submeter, e sim mediar experiências.” Ele observa que clientes percebem e valorizam profissionais que combinam simpatia com competência técnica. “Quando você consegue criar uma experiência agradável, a pessoa volta não só pelo cardápio, mas pelo tratamento recebido.”
Além do aprendizado prático, muitos profissionais destacam a oportunidade de crescimento pessoal que a função proporciona. “Você desenvolve disciplina, resiliência e inteligência emocional”, resume Lucas. Para jovens que entram na profissão buscando renda extra, há ainda o potencial de descobrir vocações e caminhos inesperados — seja gerenciando equipes, empreendendo ou investindo em capacitação na gastronomia.
Profissional decisivo
Levantamento do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) com mais de seis mil participantes revelou que cordialidade, educação e conhecimento dos atendentes é o segundo fator mais importante na escolha de um restaurante, atrás apenas da qualidade da comida. Ou seja, o atendimento é decisivo.
Serviço
Cantina do Lucas (@cantinadolucas)
Avenida Augusto de Lima, 233, Centro
(31) 2522-1433
De domingo a quinta, das 11h30 à 0h; sexta e sábado, das 11h30 às 2h
Bar do Véio (@bardoveio)
Rua Itaguaí, 406, Caiçara
(31) 3415-8455
De segunda a quarta, das 11h às 15h; quinta, das 11h às 15h e das 17h às 23h; sexta e sábado, das 11h às 23h; domingo, das 11h às 17h
Moema Bar e Cozinha (@moema.bar)
Rua Sergipe, 1370, Savassi
(31) 3568-3555
De segunda a domingo, das 11h à 00h