NÃO É SÓ UMA RECEITA

Projeto registra em fotos e áudios o cotidiano de seis cozinheiras de BH

Por trás do preparo de pratos comuns nas mesas mineiras, estão histórias de lutas e conquistas de quem aprendeu cedo a cozinhar

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Receitas e memórias permeadas pelas histórias de seis mulheres de Belo Horizonte. Áudios, fotografias e intervenções visuais perpassam o cotidiano nas cozinhas de Belinha, Sílvia, Ruth, Rose, Lena e Vera. É o projeto Lambida, das pesquisadoras, artistas e cozinheiras Laís Velloso e Luisa Macedo. Elas capturaram o preparo de pratos marcados pela memória afetiva, adentrando em um universo tão próprio de cada uma dessas mestras dos sabores que, em um ato tão corriqueiro – o de fazer comida – se tornam singulares. O que vai à mesa é somente o ponto de partida: o convite mais profundo é imaginar, escutar e se demorar nas vidas narradas ao pé do fogão.


O projeto tem sua origem em 2022, como uma materialização dos questionamentos, inquietações, curiosidades e, antes de tudo, da amizade entre Laís e Luisa. “Tínhamos o desejo de realizar um projeto em parceria e aos poucos amadurecemos a ideia do que seria 'um caderno de receitas a céu aberto', que poderia ser acessado por transeuntes e daria protagonismo às receitas e histórias de mulheres que tantas vezes são invisibilizadas”, contam.


Para selecionar as participantes, elas pediram indicações de “mulheres que tivessem uma memória narrativa de alguma receita” de regiões diversificadas da cidade. Cada uma delas escolheu uma comida que considerava simbólica. São pratos de um imaginário coletivo ou que fazem parte do cotidiano de muitos, o que por si só abre um campo de subjetividades.


“São comidas que costumam estar, frequentemente, à mesa mineira, mas que, na voz de cada cozinheira, revelam histórias de luta, perdas, resistências e também alegrias e celebrações”, dizem Laís e Luisa.


A opção pela linguagem da fotografia de grande formato faz com que essas referências alcancem as pessoas. Com áudios captados por Laís e fotografias feitas por Luisa, a partir da visita a essas mulheres, de diversos bairros da cidade, ao longo do segundo semestre de 2024, os registros se transformaram em lambe-lambes espalhados por Belo Horizonte, cada um com um QR Code que leva a vozes, sons das cozinhas e relatos das protagonistas.


Alegria de cozinhar

Rosilene Albano, a Rose, de 55 anos
Rosilene Albano, a Rose, de 55 anos Luisa Macedo/Divulgação


O pernil com lobrobrô (outro nome para ora-pro-nóbis) e angu é o prato com que Rosilene das Dores de Oliveira Albano, a Rose, de 55 anos, participa do Lambida. É uma receita feita pela avó, Leonídia, ensinada para sua mãe, Lara, e agora preparada por ela. Na casa da avó, em João Monlevade, o lobrobrô era colhido no quintal, onde a senhora também criava galinha e porco, ali mesmo abatidos para compor a comida. “Chegava na casa da minha avó no domingo e lá estava ela cozinhando para a gente”, recorda-se.


O início da empreitada na cozinha leva Rose de volta à infância. Após o divórcio, sua mãe precisou começar a trabalhar fora e ela ficou com a missão de cuidar da casa e dos cinco irmãos. “Fazia de tudo, cozinhava, mesmo sem experiência, e fui aprendendo aos poucos.”


Há sete anos, Rose mantém com o filho, Stanley, o restaurante Mandaknega, em BH. O espaço no quintal pode ser reservado para eventos, ao gosto do cliente, que pode escolher para o cardápio salgados ou mesa mineira, por exemplo. Entre sexta-feira e domingo, funciona como restaurante.

Pernil com lobrobrô e angu
Pernil com lobrobrô e angu Luisa Macedo/Divulgação


Para Rose, cozinhar e estar na cozinha é o que dá sentido à vida. “Amo cozinhar, na cozinha estou feliz. Machuquei o joelho, estou afastada e me faz muita falta. As pessoas ficam satisfeitas, vão na cozinha agradecer, perguntar quem eu sou. Fico muito feliz com isso, em agradar as pessoas, ver que gostam do que eu estou fazendo”, conta Rose, mãe de seis filhos, cinco netos e à espera de um bisneto.


Lanche dos filhos

Ruth Velloso, de 85 anos
Ruth Velloso, de 85 anos Luisa Macedo/Divulgação


Um punhado de polvilho, um ovo, um pouco de óleo e sal. O biscoito frito de Ruth Mendes Velloso, de 85 anos, é uma das receitas mais simples recuperada no Lambida. Era a merenda mais barata da família de 13 irmãos de Ruth, no Norte de Minas. Estão nas memórias de infância dela os gestos da mãe, que passava dia e noite modelando biscoitos para vender e acabou usando os ingredientes mais em conta que tinha para fazer o lanche dos próprios filhos.


“Tinha nove anos quando ajudava minha mãe preenchendo tantos tabuleiros. Ajudava a enrolar os biscoitos. Hoje eu faço questão de fazer para meus filhos e netos”, diz a mãe de cinco e avó de sete.


De Capitão Enéas, Ruth se mudou para BH aos 19 anos, primeiro com a intenção de estudar, mas a necessidade de trabalhar para cooperar com a casa foi mais urgente. Ela conta que é apaixonada por doces. Faz broa, pé de moleque, cocadinha, palha italiana, cajuzinho e muitos outros quitutes. Inclusive, numa época, uma sobrinha levava para o trabalho para vender.

Biscoito de polvilho frito
Biscoito de polvilho frito Luisa Macedo/Divulgação


“Estou agora mesmo comendo um doce de casca de laranja da terra, colhida no quintal da minha filha. Um doce antigo”, conta ela, que na cozinha se sente feliz. “Gosto de estar ao pé do fogão, com as pessoas, conversando.”


Paladar apurado

Isabel Gasparino, a Belinha, de 62 anos
Isabel Gasparino, a Belinha, de 62 anos Luisa Macedo/Divulgação


Isabel Casimira Gasparino, de 62 anos, a Belinha, é mestre de cultura popular, cozinheira e artesã. Começou a cozinhar cedo em casa, vendo a avó e a mãe na beira do fogão. “Vai ensinando a picar uma verdura, refogar e ver o ponto do arroz, como fazer arroz pra muita gente.”


A avó, parteira, benzedeira e cozinheira, lavava roupa para fora, cuidava das crianças (Isabel é uma de seis irmãos) e mantinha uma casa de umbanda . “Todo mundo que precisava de comida ia na casa dela”, conta. O terreiro da família, no Bairro Concórdia, é onde Isabel vive hoje com o filho biológico e os filhos da casa, como se refere. É cambona, como se chama a auxiliar do guia espiritual.


Já trabalhou como doméstica, em restaurantes e como copeira. Agora, ministra palestras em universidades, para mestrado e doutorado, e escolas primárias sobre assuntos relacionados à identidade afro, como reinado, racismo estrutural e democracia literária, ensinando a professores e funcionários conceitos importantes para serem repassados aos alunos.

Feijão-tropeiro
Feijão-tropeiro Luisa Macedo/Divulgação


Para Isabel, comida é saúde e amor, seja para os humanos ou para os santos. “Tem que ter atenção, paladar apurado, visão boa, instinto, mandinga, jogo de corpo. Se a comida queimar, é preciso saber fazer se transformar em outra coisa, porque a comida tem que sair”, diz ela, que participa do Lambida com um feijão-tropeiro.


Lugar de amizades

Sílvia dos Santos, de 72 anos
Sílvia dos Santos, de 72 anos Luisa Macedo/Divulgação


Sílvia Maria Braz dos Santos, de 72 anos, trabalhou por mais de 40 como manicure, atendendo a domicílio. Muitas vezes, na casa da cliente, observava a preparação de alguma coisa na cozinha e acabava entendendo como fazer – aprendeu a fazer bolo formigueiro, broa e pão de queijo, por exemplo.

Mais tarde, em 2007, ingressou em um curso de auxiliar de cozinha no Senac, como bolsista, e depois fez aulas sobre saladas e massas. Agora, Sílvia atua fornecendo comida para eventos.


De família numerosa (são 12 irmãos) e curiosa para aprender, sempre gostou de cozinhar. Tomava a frente nos encontros com a família – não é uma herança da mãe, que só “fazia o básico”, conta. Sílvia tem três filhos adultos e diz que gosta do ambiente da cozinha em si.

Nhoque de mandioca
Nhoque de mandioca Luisa Macedo/Divulgação


Para o Lambida, apresentou o nhoque de mandioca. Por volta dos 15 anos, no colégio onde estudava em BH, encontrou a receita em um livro – o primeiro prato que fez. Aos poucos foi inventando – além da mandioca, já usou abóbora e batata-baroa. Para Sílvia, a cozinha é lugar de amizades. “Com os eventos, conheço muitas pessoas bacanas. Minha mão é abençoada, faço tudo com amor.”


Sonhos possíveis

Marlene Martins, a Lena, de 68 anos
Marlene Martins, a Lena, de 68 anos Luisa Macedo/Divulgação


Com o Quitandas da Bia, a cozinheira Marlene Raimunda Martins, a Lena, de 68 anos, faz comida pesada para todos os tipos de evento. Desde 2012, participa do Circuito Gastronômico de Favelas e é uma das coordenadoras da associação de cozinheiros ABC Favelas, que promove feiras itinerantes. Estudante e adepta das plantas não convencionais, comestíveis, como umbigo de banana e broto de samambaia, tem ascendência afro e indígena.


A bisavó paterna era uma índia que foi pegada no laço pelo bisavô, tropeiro. Fugiu, foi ter os filhos no mato e, em uma certa época, voltou para casa, quando ensinou Lena a fazer o cubu, bolinho assado na folha de bananeira. “Por parte de mãe, meu avô veio da África em navio e minha avó era de família tradicional italiana. Enquanto minha avó fazia macarrão e massas, meu avô só queria comer mato, raízes, plantas nativas. O resultado somos nós. Fui juntando tudo isso e fazendo minhas receitas”, diz.


Ela criou o Embolado Berrante, almôndega de carne com recheio de ora-pro-nóbis e queijo ao molho de tomates e ora-pro-nóbis, seu prato no Lambida. Tem o sonho de ter uma cozinha e uma horta comunitárias para transmitir esses conhecimentos e também atuar pela educação ambiental.

Almôndega de carne com ora-pro-nóbis, queijo e molho de tomate
Almôndega de carne com ora-pro-nóbis, queijo e molho de tomate Luisa Macedo/Divulgação


“É preciso preservar para ter o que comer e respirar”, diz ela, que tem quatro filhos, oito netos e dois bisnetos, e encontra no marido o companheiro para suas empreitadas pelo universo das panelas – planeja para o futuro abrir um espaço gastronômico para receber as pessoas. “Cozinha é amor, carinho. É a vontade de realizar o desejo de cada um em comer uma comida boa, saudável, além de ser renda para o sustento. Quero deixar um legado, mas ainda tenho muito a aprender.”


Frango no fim de semana

Vera Barbosa, de 44 anos
Vera Barbosa, de 44 anos Luisa Macedo/Divulgação


O primeiro emprego de Vera Lúcia Barbosa, aos 21 anos, foi em um bar no Mercado Novo, em BH, onde ficou seis anos fazendo feijão-tropeiro. Depois, passou por dois restaurantes japoneses. Mãe solteira, precisando cuidar dos filhos, percebeu que a situação não era tão rentável. Hoje com 44 anos, trabalha três dias da semana em casa de família e em outros dois vai a residências para fazer marmita para congelar, na maioria dos casos, para quem mora sozinho e não tem familiaridade com a culinária.


Na família, de três irmãs e um irmão (é a caçula), todos cozinham. Vera é mãe de três filhos adultos, avó de três netas e vive no mesmo lote que as irmãs, no Bairro Piratininga, na Região Norte da capital. Um de seus pratos mais famosos é o nhoque de abóbora com camarão ou de banana-da-terra. Para o Lambida, apresenta o frango com quiabo, uma volta aos tempos de criança.

Frango com quiabo
Frango com quiabo Luisa Macedo/Divulgação


Depois que o pai faleceu, a mãe precisou trabalhar para dar conta de tudo. Durante a semana não tinha muita carne e no fim de semana era o frango, com quiabo, maionese ou macarrão. “Minha mãe comprava o frango vivo numa granja perto de casa e matava pra fazer. Ela morreu quando eu tinha 13 anos e com 12 me ensinou a cortar frango”, lembra.Vera diz que, se pudesse, viveria só de comida. “É o que eu gosto de fazer, me relaxa, distrai. Passaria o dia todo cozinhando.”


Legado de amor



Para as idealizadoras, o Lambida é, antes de tudo, um trabalho sobre memória e escuta. “O que nos moveu não foi o prato em si, mas a pergunta: por que essa receita, e não outra, atravessa uma vida inteira? O que significa repetir o mesmo gesto milhares de vezes, cozinhar o mesmo feijão para filhos, netos, vizinhos? As receitas contam sobre trajetórias de vida, aprendizados com mães e avós, segredos nos preparos, mas também são pontos de partida para reflexões mais profundas sobre machismo e o apagamento do trabalho feminino”, relatam as idealizadoras Laís Velloso e Luisa Macedo.


O projeto coloca em diálogo feminismo, artes visuais e cultura alimentar. Luisa menciona a cozinha como lugar historicamente associado à presença da mulher, que ali deveria se dedicar e trabalhar incansavelmente sem reconhecimento ou remuneração. “Mesmo nas cozinhas profissionais ou prêmios de gastronomia, o que vemos são homens chefs brancos terem protagonismo, quando sabemos que a maior parte das brigadas dos restaurantes é feminina. Temos, então, essa contradição escancarada: o destaque é masculino, ainda que o alicerce seja feminino.”

Com o projeto Lambida, Laís Velloso e Luisa Macedo colocam em diálogo feminismo, artes visuais e cultura alimentar
Com o projeto Lambida, Laís Velloso e Luisa Macedo colocam em diálogo feminismo, artes visuais e cultura alimentar Luiza Palhares/Divulgação


Ao escolher olhar para as cozinhas do cotidiano, de mulheres que alimentam suas famílias, a dupla aponta para esse apagamento e essa desvalorização que se repete em cada uma das histórias dessas seis mulheres e nas de tantas outras. “A maioria das mulheres relatou que aprendeu tudo ou quase tudo com suas mães e avós e isso diz muito sobre um legado do gesto, do silêncio que ensina, das repetições que estão nos corpos de cada uma delas, como algo que fica e se transforma ao longo dos anos”, diz Luisa.


O Lambida acompanha uma trajetória de apagamento, mas também de solitude. Às vezes, aponta Laís, as mulheres podem encontrar nisso um espaço sagrado que revele um encontro consigo, um momento de prece, de liberdade e possível de ser considerado e legitimado. Outras vezes, o que se repete é a ideia de “cozinhar para o outro”, então, quem nutre nem sempre é nutrido, percebido, acolhido, escutado…


“O trabalho instiga essa tomada reflexiva também. Quando escolhemos trabalhar com as narrativas femininas de mulheres que já são mães, avós, ou mesmo bisavós, estamos falando de trajetórias longas, quando o tempo revela maturidade e, principalmente, estratégias de sobrevivência e resistência.”

Sons e relatos


Na opinião de Luisa, o ato de cozinhar já é uma forma de se relacionar com um tempo mais dilatado, se considerado que cada ingrediente e cada preparo têm suas especificidades temporais para se transformarem em um prato, e é preciso escutar e respeitar isso. Ao propor entrar em cozinhas alheias para ouvir relatos sobre o comer, o Lambida é também um convite a parar um pouco, escutar os sons de panelas, gargalhadas, histórias cheias de detalhes.


Laís diz que todos os áudios que contemplam as narrativas contadas pelas mulheres foram feitos durante o preparo das receitas que elas resolveram contar no espaço de suas cozinhas. Para ela, há nisso um jogo de temporalidades muito forte: seja diante da espera para cada ingrediente ser cortado, refogado, frito, cozido, estufado, seja na maneira como o silêncio atravessa a fala de cada uma, seja como a ausência da necessidade de dizer se faz presente, seja pela sensação expressa pela voz que desenha um corpo cansado, afobado, alegre, tímido, feliz, inquieto, acuado, esquecido, velho.


“Talvez esses receituários sejam secundários diante do convite à imaginação dessas cozinhas, dessas vozes, do modo como cortam, da orquestra que se forma com vozes, vapores, vasilhas, batuques, risadas e saudades.”


Para Luisa, o aprendizado é sobre a capacidade de reinvenção de cada uma delas, de maneiras totalmente distintas, e como o fazer e o saber relacionados à comida as atravessa de forma tão bonita. “Mesmo com histórias muito duras, relatos de escassez e dificuldades que marcaram suas trajetórias, todas compartilharam sutilezas ligadas à cozinha, pequenos grandes segredos que transformam os preparos e eu nem imaginava: a couve temperada antes de ser refogada ou o vinagre no quiabo para diminuir a baba. Há muita sabedoria nesse acúmulo cotidiano de camadas de sabor.”

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São mulheres, segundo Laís, que ensinam sobre o silêncio, o luto, o amor, o cuidado e a necessidade de “não precisar de”. Aceitaram o convite com o que tinham e o que são, se mostraram com a medida do olhar e das mãos. “Não negaram duas desconhecidas em suas casas gravando suas vozes, fotografando seus fogões e criando retratos de um mundo tão íntimo que agora participa das ruas da cidade, de alguma maneira.”

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