Sob medida
Profissionais que fazem sapatos sob encomenda sobrevivem em um comércio amplamente industrializado pela qualidade de seus serviços e produtos
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Siga noA crescente industrialização fez com que muitas profissões, antes comuns, fossem se extinguindo. Datilógrafos pararam de existir com o avançar da tecnologia, que trouxe o computador para ocupar o lugar das máquinas de escrever.
Há ofícios manuais, entretanto, que, apesar de terem sido afetados pela industrialização, ainda resistem pela alta qualidade dos produtos fabricados, principalmente se comparados aos vendidos em larga escala. Hoje, alfaiates, sapateiros, modelistas e costureiros são exemplos de profissionais que se destacam no mercado de luxo, com itens de alta qualidade e adequados para necessidades e gostos pessoais. Em Belo Horizonte, Wilton Oliveira e Ana Miranda trabalham com sapatos feitos sob medida e colecionam clientes fiéis que prezam pelo conforto e durabilidade, além, claro, da estética.
De pai para filho
Wilton Oliveira herdou, de seu pai, o nome e o ofício. O sapateiro é carinhosamente conhecido como Vivaldo (nome do pai) e, hoje, toca o negócio que um dia foi do patriarca: a loja Criações Vivaldo, localizada no Bairro Funcionários, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte.
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“Meu pai aprendeu com meu avô, que trabalhava na polícia e pegava os coturnos do pessoal de lá para reformar em casa”. Com isso, ele criou uma pequena oficina no quintal e colocou o Vivaldo para trabalhar. Ele foi pegando gosto, e abriu a própria reformadora e fabricação de sapatos, na Rua dos Tamoios.
Com o crescimento da clientela, que era basicamente composta por trabalhadores de escritórios da região, ele optou por mudar de lugar e foi para a Avenida Afonso Pena, na loja onde hoje fica Wilton, seu filho. “Este ano fez 50 anos que estamos aqui”, destaca o sapateiro, que tinha apenas cinco anos quando a loja mudou de endereço.
Por um período, no entanto, Vivaldo decidiu mudar os rumos de sua vida profissional e foi trabalhar em um escritório de exportação, como office-boy. Depois, passou por outras experiências como vendedor no comércio, mas, em 1991, quando seu pai faleceu, voltou e assumiu a loja.
Ele já tinha experiência no ramo, afinal, com 12 anos, começou a trabalhar na área e, aos 15 anos, já era responsável por cortar tecidos. Após o falecimento do pai aprendeu muito com os funcionários que já trabalhavam lá e foi se aperfeiçoando cada vez mais, fazendo cursos direcionados à ortopedia.
Evolução
Wilton Vivaldo conta que, por observar que o mercado demandava menos sapatos sob medida, decidiu diversificar seus produtos. “Pensando nisso eu comecei a fazer calçados femininos – que meu pai não fazia –, ortopédicos e conserto de peças de couro em geral”, conta
Para clientes que chegam com orientações médicas, Wilton Vivaldo faz uma palmilha ortopédica personalizada. Inicialmente, faz um molde em gesso do pé da pessoa e depois molda essa palmilha dentro do próprio molde.
“Existem pessoas que calçam 40 (no comprimento), mas tem a largura de um pé 42”, explica ele, que destaca a dificuldade de muitos de seus clientes em encontrar um sapato confortável no mercado. Além de gerar mais conforto, por fazer um molde personalizado, Wilton Vivaldo permite que os clientes busquem referências na internet e levem para que ele reproduza.
Nas artes
Há mais de dez anos, Wilton Vivaldo trabalha com o Grupo Corpo, de Belo Horizonte. “Para eles, fazemos sapatos que vestem como uma meia, que permitem o movimento perfeito dos bailarinos, como se a pessoa estivesse descalça, mas protegida”, explica. A cada ano, Wilton faz, em média, calçados para 30 bailarinos do grupo.
O pessoal da dança de salão e do soul também aposta nos calçados de Wilton Vivaldo. Nesse caso, entretanto, a estrutura do sapato muda completamente. “O material precisa ser mais firme, assim como a sola. Há também um saltinho, maior e mais fino para mulheres, e mais baixo e quadrado para homens”, explica.
Alexandre Vasconcelos, contrarregra do Grupo Corpo, trabalha há um bom tempo com Wilton Vivaldo, e destaca a qualidade dos produtos artísticos, que nada se parecem com sapatos sociais.
“Eu conheço o Wilton Vivaldo há pelo menos 17 anos. Quando estávamos precisando de um sapato no Corpo, em um momento em que a pessoa que fazia botas para a gente ia parar, encontrei o Wilton. Fui nele umas 17 vezes até chegarmos no modelo ideal, no formato que eu queria. Hoje, ele tem uma bota para dança com extrema qualidade, com excelência indiscutível”.
As especificidades desse calçado, que parece uma botinha, para os bailarinos são muitas. “É como se fosse uma luva. Tem um calcanhar chanfrado, um salto que não pode ser alto, precisa ser só um detalhe de couro, a frente precisa ter uma textura, são muitos detalhes”, ressalta Alexandre.
Qualidade sem igual
Outro cliente fiel de Wilton Vivaldo, que opta pelos sapatos sociais e casuais, é José Eduardo de Lima Pereira, ex-presidente da Casa Fiat de Cultura. Ele destaca a durabilidade dos calçados. “Tenho um sapato há cerca de dez anos e levo ele para todas as minhas viagens. De tempos em tempos, apenas peço ao Vivaldo para dar um trato nele, mas nunca o perdi”, comenta.
José Eduardo também destaca a praticidade em ser cliente de Wilton. “Quando preciso de um sapato, apenas ligo, peço um modelo e ele faz, afinal, já tem todas as minhas medidas guardadas”, explica.
Paixão está no sangue
O avô de Ana Miranda era sapateiro. Quando jovem, ela, que morava em Ipatinga, município na Região do Vale do Rio Doce, vinha visitar o avô em BH e ficava dias observando seu trabalho na fábrica de sapatos. Quando cresceu, Ana veio para a capital para cursar odontologia. “Apesar de fazer esse curso, me lembro de uma tia que forrava sapatos falando que eu deveria trabalhar com isso, que eu era muito habilidosa”, explica a proprietária da Ana Miranda Sapatos Sob Medida.
Por isso, ainda na faculdade, ela começou a forrar sapatos para um ateliê de calçados perto de sua casa. Não demorou muito para que essa atividade ocupasse boa parte de seu tempo, e para tantas outras produções a procurarem para esse processo tão delicado na fabricação de um sapato.
Ana foi se encantando aos poucos pelos sapatos e, chegou a fazer um curso de modelagem de calçados sem contar para ninguém. “Naquele momento isso ainda era um hobby”, comenta.
O primeiro sapato que ela fez foi para uma grande amiga que ia casar. “Ela me perguntou se eu conhecia alguém que poderia fazer um sapato estilo espanhola, como ela queria. Eu falei que eu mesma faria”.
Gênese de uma nova profissão
A partir desse momento, Ana passou a conciliar a profissão de dentista com o ofício de sapateira. “Depois de fazer meu primeiro sapato, em 1992, abri meu ateliê de fato e fiquei com as duas profissões por quatro anos”. Depois desse período, precisou escolher apenas um caminho para seguir, e optou pelos calçados.
Foi para Milão, na Itália, em 1998, para fazer um curso de estilismo e modelagem de calçados e, depois de voltar ao Brasil, nunca mais abriu seu consultório. Passou a ficar só no ateliê, no Bairro Funcionários, onde cria e constrói, exclusivamente, modelos femininos.
Dificuldades e diferenciais
Ana conta que hoje tem problemas em relação a mão de obra, assim como ocorre com tantas outras profissões e áreas, a exemplo da gastronomia. “Ninguém quer ser sapateiro mais, e quase ninguém quer ser treinado para fazer sapato”, explica.
Os sapatos nunca foram devidamente valorizados, como destaca Ana. “Os calçados costumam ser coadjuvantes, por aparecerem pouco em uma produção. Costumo dizer que a sua importância é sutil e que o valor maior está no conforto”.
Por isso mesmo, ela diz que, em seu ateliê, vende conforto, não sapatos. Quando recebe uma cliente, Ana inicialmente pergunta o que ela precisa, se é um calçado para alguma ocasião especial, e também se há alguma necessidade especial que ela precisa atender (como joanetes, por exemplo).
Depois, faz a medição do pé da cliente e monta a sandália. Antes da finalização é realizada uma prova e ajustes no pé. Esse processo parece com a prova de uma roupa sob medida. Depois desse momento, Ana finaliza as peças.
Ela recebe muitas clientes com orientação médica. Além dos joanetes, outras questões recorrentes que aparecem por lá são fascite plantar, lipedema (que gera inchaço nos pés), ou mesmo clientes com pés muito finos ou uma perna ou pé maior que o outro. Em todos esses casos, o sapato sob medida é um aliado e tanto, mas, até mesmo para quem não tem nenhuma questão aparente, ele é muito importante. “Não são todos os pés 36 que têm dedos do mesmo tamanho ou comprimento. Cada pé é um, por isso que o sob medida é bom para todos”, explica.
Quem usa, não vive sem
Hoje, Ana possui clientes fiéis que não trocam por nada o conforto e a qualidade dos sapatos feitos por ela. A empresária Adriana Vasconcelos conheceu a designer de sapatos há 10 anos, quando procurava alguém para fazer um salto para ela usar no casamento da filha. “Faz três meses que eu voltei na Ana e pedi um sapato exatamente igual ao que fiz para o casamento e que está comigo até hoje”, destaca Adriana.
Além dos sapatos serem muito elegantes, eles proporcionam um conforto sem igual, e depois te fazem nunca mais querer usar outro salto, conforme conta a empresária. “O cuidado dela com nosso bem-estar é tão grande que se preocupa em subir ou descer milímetros de alguma parte do calçado para não incomodar algum osso, por menor que seja, do nosso pé. É como se eu estivesse descalça na festa, nunca tirei uma sandália feita pela Ana para calçar um chinelo em uma festa, sempre danço a noite toda sem precisar descer do salto”, explica.
Quem concorda com Adriana é Elvina Maria Tostes, que é aposentada. Ela também conheceu o trabalho de Ana quando precisou de um sapato para o casamento do filho, há cerca de 20 anos. “Desde então sou cliente fiel. Além de ser uma excelente profissional, é muito carismática”, conta.
Elvina também pensa no conforto acima de tudo, por isso opta pelos sapatos sob medida. “O grande diferencial é que o sapato é exclusivo, único, feito para você. Sempre que opto por fazer um sapato, é pensando no meu conforto, para eu não sentir dor nos pés”.
Objeto que acompanha a humanidade
Os sapatos, assim como o homem, estão em constante evolução. Se antes existiam apenas para a proteção dos pés, hoje assumem formas, cores e alturas diversas. Segundo pesquisa de Natalie Rodrigues Alves Ferreira, o surgimento dos calçados se deu entre os anos 12.000 a.C. e 15.000 a.C., e materiais como o couro cru, a madeira, a palha e o tecido eram utilizados em sua fabricação.
“Cada civilização antiga criou a sua versão (da sandália) que tinha como base uma sola rija presa ao pé com tiras, que poderiam ser de fibras como o papiro, de couro ou tecidos. Nos países mais quentes como o antigo Egito, as sandálias eram feitas de palha, tramas de papiro ou fibra de palmeira, com a ponta do solado voltada para cima para evitar a entrada de areia nos pés”, conforme consta no artigo “O calçado como artefato de proteção à diferenciação social: A história do calçado da Antiguidade ao século XVI”, de Ferreira.
* Estagiária sob supervisão de Isabela Teixeira da Costa