Essenciais para a cidade, garis vivem rotina de riscos em BH
Buzinas e insultos elevam a pressão sobre equipes já expostas a atropelamentos e a cortes na coleta de lixo, tarefa que Laudemir cumpria ao ser assassinado
compartilhe
Siga noO grande volume de sacos de lixo acumulados na calçada não permitia que o caminhão compactador se movesse, provocando um longo engarrafamento na Avenida dos Engenheiros, no Bairro Castelo, Região da Pampulha. Dos carros, buzinas constantes e insultos elevavam a pressão sobre a equipe de garis da coleta doméstica de Belo Horizonte. Uma das situações de maior risco para os garis, como mostra a reportagem do Estado de Minas ao acompanhar as equipes de coleta.
“Um motorista desceu querendo brigar. Bateu (com os punhos) na nossa porta (do caminhão compactador) xingando. Queria brigar de qualquer jeito. A gente pediu paciência, tentou liberar logo a situação. Temos trabalho com psicólogo para tolerar melhor isso, senão pode ocorrer uma desgraça como a que matou nosso amigo”, lembra o gari Robson Fabiano da Mata Correia, de 35 anos, mencionando o homicídio de Laudemir de Souza Fernandes, de 44, na segunda-feira passada (11/8).
De acordo com a Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) de BH, a rotina de riscos fez muitas vítimas entre os garis. De janeiro de 2022 a julho deste ano, foi registrada média de quase um (0,86) acidente de trânsito ou atropelamento de garis por mês, num total de 37 ocorrências. No mesmo período, a média mensal foi de quase cinco (4,72) acidentes com objetos mal-acondicionados no lixo e que cortaram ou perfuraram os garis – total de 203 ocorrências. Não há registros de brigas ou agressões como a que vitimou Laudemir.
O crime ocorreu na última segunda-feira, 11 de agosto, quando a equipe de coleta doméstica em que estava Laudemir trabalhava no Bairro Vista Alegre, Região Oeste de BH, dificultando o tráfego na via. Após ameaçar verbalmente a condutora do caminhão de lixo e apontar uma arma ela, o motorista de um SUV , ainda inconformado com a situação mesmo depois de ter passado pelo veículo da coleta, desembarcou armado do carro e disparou com uma pistola matando o trabalhador.
Leia Mais
Suspeito de ser o autor do disparo, o empresário Renê da Silva Nogueira Júnior, de 47, foi preso horas depois, em uma academia de Belo Horizonte, e está sendo investigado pelos crimes de ameaça e homicídio qualificado, com agravantes de motivo fútil e de uso de recurso que dificultou a defesa da vítima. A prisão em flagrante foi convertida em preventiva a pedido do Ministério Público de Minas Gerais. Exames periciais confirmaram a compatibilidade de munições recolhidas no local do crime com uma pistola de uso pessoal da mulher dele, a delegada Ana Paula Balbino Nogueira. A Corregedoria-Geral da Polícia Civil apura como a arma da servidora foi parar na mão do marido.
A morte do gari chocou a opinião pública. Mas expôs os conflitos e a impaciência que fazem parte da rotina de riscos dos coletores. “A gente atura muita coisa. Tem trabalho para saber como tratar os munícipes. Mas um dia pode acontecer uma tragédia. Já ouvi coisas que são muito doídas. Ofensas como as de um motorista que nos deixou muito tristes. Ele falou: ‘Vocês trabalham com lixo, porque são lixo e vão morrer no lixo’. Quando esse motorista disse isso, só porque o caminhão estava atrasando a passagem dele, eu me senti humilhado”, conta o gari Leandro Rosa, de 41.
A dupla de garis atua ao lado de Welbert Ferreira, de 30, e Robert de Moura, de 32, em um dos trechos de maior conflito da coleta de Belo Horizonte, na Avenida dos Engenheiros. A reportagem do EM acompanhou a coleta no ponto crítico com a equipe da empresa Viga. No local chegou a se formar um engarrafamento de cerca de 600 metros de comprimento.
Ao longo do percurso, os carros estacionados à direita impediam que o caminhão ocupasse uma vaga e liberasse o tráfego, tornando-se um obstáculo de retenção do fluxo em pelo menos nove trechos de recolhimento de lixo naquele dia.
Vez ou outra se ouviu buzinas mais insistentes contra a demora da coleta, o que pode ser ainda reflexo da consternação pela morte do gari, disseram acreditar os coletores. De dentro dos carros, muitos motoristas estavam inquietos. Gesticulavam nervosos, apontando para os garis, mas nenhum deles chegou a baixar os vidros e a insultar os trabalhadores ou a reclamar com eles.
As atitudes mais agressivas foram de motociclistas que circulavam por entre os carros parados e aceleravam para passar pelo estreito espaço à esquerda do caminhão, entre o veículo de compactação e o canteiro central, ameaçando os garis que se movimentavam naqueles locais.
“Uma vez tive de fechar uma motorista para ela não atropelar meu companheiro que estava de costas coletando lixo. Mesmo dentro do caminhão, a gente precisa cuidar uns dos outros”, disse Neusmar José de Souza, de 47, motorista do caminhão compactador.
Esforço contínuo
Os garis correm o tempo todo enquanto descem a avenida coletando os montes de sacos de lixo deixados escorados em postes, dentro de carrinhos e cestas de lixo ou simplesmente amontoados no passeio. Circulam de um lado ao outro da via e arremessam os sacos dentro da caçamba coletora. Quando acionam a alavanca do dispositivo, uma placa desliza pela caçamba, esmaga o lixo e o “varre” para dentro do compartimento principal.
“Um motorista desceu querendo brigar. Bateu na nossa porta xingando. Queria brigar de qualquer jeito (...). Temos trabalho com psicólogo para tolerar melhor isso, senão pode ocorrer uma desgraça como a que matou nosso amigo”
Robson Fabiano da Mata Correia
Gari, de 35 anos
Pendurados na traseira do veículo, eles identificam os pontos de descarte e após breves olhadas para o fluxo de veículos desembarcam velozes para pegar os sacos. Essa mesma breve olhada se repete em vários momentos de travessia, antes de jogar o lixo na caçamba ao retornar para a parte traseira onde se deslocam dependurados.
Exigir mais velocidade no processo não é possível, uma vez que a velocidade máxima segundo a concessão é de 10km/h. Ir mais rápido do que isso poderia expôr os garis coletores a acidentes, quedas da plataforma traseira onde ficam agarrados e ainda exigir que corram distâncias maiores.
A todo momento, nos passeios e no pavimento, os garis se deparam e desviam de buracos e de obstáculos deixados no caminho, como mesas e cadeiras, caixas de entregas, engradados empilhados, entre outros. Os riscos de torção dos pés ou de tropeços que gerem acidentes também exige atenção.
Mas nem todos os motoristas ficam impacientes. Muitos aproveitam as paradas para resolver questões nos telefones celulares. O uso de celular ao volante é regulamentado pelo Artigo 252 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), especialmente pelo seu parágrafo único, que foi incluído para endurecer as punições, se tratando de infração gravíssima punida com sete pontos na carteira e multa de R$ 293,47.
"Todo o meu respeito"
Calmo e sem esboçar aborrecimento, o paisagista Frederico Pugliese, de 42, destaca apreço pelos garis. “Maravilhoso o trabalho deles (dos garis). (Eles têm) Todo o meu respeito. A gente precisa é melhorar as condições e a logística deles, para não atrapalhar a gente que está trabalhando também. Além de não reclamar, a gente tinha de cuidar deles. Teria de oferecer uma água, um lanche para esse pessoal. Eles estão trabalhando em uma limpeza muito especial para a gente”, considera.
A avenida é um dos pontos mais críticos da coleta, segundo a empresa Vina, que presta serviço para a SLU. São três coletas por semana. O maior volume às terças-feiras, quando os reflexos no trânsito são maiores e por isso aumentam os conflitos. O menor volume ocorre às quintas-feiras. Outro dia de recolhimento que apresenta situações de atritos é o sábado, devido à circulação de pessoas vindas da boemia, segundo o encarregado da coleta pela empresa Vina, Luciano Soares Pascoal.
“A Avenida dos Engenheiros é uma das que mais sofrem impacto com relação à coleta de lixo, porque não tem estacionamento para os caminhões e ao mesmo tempo há um volume de lixo muito grande. Eu peço às pessoas para ter um pouco mais de paciência com a coleta, porque o serviço é arriscado. Os garis ficam atentos o tempo todo. Já aconteceram ameaças, quase brigas e até atropelamentos”, disse Pascoal.
Perigo oculto nos sacos de lixo
As cicatrizes largas, profundas, transversais, verticais e até em cruz marcam todos os membros do gari Kirk Douglas Pereira de Oliveira, de 40 anos. Todas contam histórias de desleixo com a forma de descartar resíduos perfurantes ou cortantes, que acabaram ferindo gravemente o coletor de lixo doméstico durante seu trabalho.
No braço esquerdo, um corte profundo chegou a atingir o seu tendão. Marca que ele tenta apagar com uma tatuagem. “Foram 14 pontos e 12 dias de atestado. Tinha uma tigela de vidro mal-acondicionada no lixo. Na hora em que eu fui arremessar (o saco de lixo), ela rodou e me cortou o braço. Cortou até o tendão”.
Ele mostra várias cicatrizes nos dedos, mãos, braços, canela e coxa. “As pontas dos dedos já cortamos várias vezes. A canela, a perna toda. Quase tudo é caco de vidro dentro da sacola de plástico, quando a gente vai pegar ou quando vai arremessar. É complicado, porque a gente tem de ter muito cuidado no meio da correria da coleta. Então, queria pedir que as pessoas fossem mais cuidadosas e olhassem pelos amigões da coleta”, pede Kirk Douglas.
É tão comum encontrar lixos perigosos sem embalagem correta em meio à coleta doméstica que os garis da equipe de Kirk Douglas conseguiram mostrar garrafas quebradas, latas abertas com rebarbas e vidros espatifados em um de cada três sacos que abriram em cinco minutos de demonstração para a reportagem do EM, na Rua Castelo de Abrantes, no Bairro Castelo, Região da Pampulha.
De acordo com a Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) de BH, objetos pontiagudos ou cortantes devem ser colocados em caixas de papelão, em recipientes do tipo longa vida ou mesmo dentro de garrafas PET. É recomendado que se identifique o lixo perigoso com mensagem nítida na parte externa da caixa ou da sacola com a caixa. Agulhas, seringas, produtos médicos ou contaminados devem ser encaminhados a uma Unidade de Saúde da Prefeitura (UPAs e Centros de Saúde) embaladas da mesma forma.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
Vários tipos de lixo aparentemente inofensivos para pessoas que não conhecem seu potencial de perigo se tornam risco de ferimentos para os garis quando são coletados. O gari da coleta domiciliar Eduardo Neves, de 40 anos, conta que , em 2024, depois de arremessar um saco colhido na Avenida Fleming para a caçamba coletora do caminhão sentiu uma forte explosão o empurrar para trás, atirando vários detritos de lixo nele. “Foi um estouro tão forte que fez até o caminhão balançar. Um pistão estava dentro do lixo e explodiu machucando muito a minha mão. Foram muitos cortes nos dedos. Fiquei dez dias sem trabalhar. Acontece muito também de gente jogar peças de chopeira e outros sob pressão que estouram e nos ferem”, relata.