“Por isso, eu te digo: tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja...” A frase dita por Jesus ao apóstolo Pedro (Mateus 16:18) paira no ar por alguns segundos. Há um silêncio, e, em seguida, uma caixa branca é aberta. Dentro, há um estojo com a relíquia do primeiro papa, São Pedro, minúsculo pedaço de osso protegido por moldura de metal. Na frente do estojo, se vê o brasão do Vaticano, as duas chaves em ouro e prata.
“Foi uma doação do cardeal Motta, que tinha coleção de relíquias. Todas as vezes em que abro a caixa, penso na frase bíblica. É um trabalho de preservação envolvendo fé e emoção”, diz a coordenadora do Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte, Goretti Gabrich. Mineiro de Bom Jesus do Amparo, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta (1890-1982), o cardeal Motta, foi arcebispo de Aparecida (SP), de São Paulo e do Maranhão, e pioneiro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Cálice utilizado pelo papa João Paulo II durante a missa realizada em BH, em 1980
No Memorial Arquidiocesano, que completa 10 anos, há 54 relicários especificamente de santos. Do interior de outras caixas, a museóloga Rayane Rosário retira relíquias de São Vicente de Paula, São Francisco Xavier e Santa Catarina Labouré. “Temos aqui em torno de 6 mil itens, incluindo também imagens, documentos, quadros, paramentos litúrgicos, móveis e outros objetos pertencentes ao nosso acervo ou resultantes de apreensão pelas autoridades, aguardando, portanto, identificação para retorno aos locais de origem”, afirma Rayane.
Nesta última reportagem da série “Relíquias da fé”, são apresentados tesouros guardados no Memorial localizado no Bairro Santa Tereza, na Região Leste da capital. A missão principal do setor, presidido por um conselho-diretor nomeado pelo arcebispo, está em desenvolver dinâmicas de proteção, pesquisa, promoção e divulgação dos bens culturais arquidiocesanos.
“A importância do Memorial Arquidiocesano reside na promoção dos esforços de preservação dos bens culturais da nossa arquidiocese, reunindo agentes e competências técnicas consolidadas em suas quatro unidades: Arquivo Arquidiocesano, Inventário do Patrimônio Cultural, Centro de Promoção e Divulgação Religiosa e Museu Arquidiocesano de Arte Sacra”, informa Goretti. As diversas frentes de trabalho se referem a ações de gestão da memória cultural católica nos aspectos de preservação, conservação e recuperação de bens.
Dom Angelo Giuseppe Roncalli, o Papa João Paulo XXIII, foi canonizado em 2014
Dois papas
Na manhã de quinta-feira (14/8), a equipe do EM esteve no Memorial, que fica ao lado da igreja da padroeira do bairro. No local, há relíquias de primeiro e segundo graus, com boas surpresas. Se ali está guardada uma relíquia do primeiro papa, São Pedro, a quem Jesus confiou sua Igreja, há também peças que pertenceram a dois pontífices canonizados: São João XXIII (1881-1963) e São João Paulo II (1920-2005).
De João XXIII, há um solidéu, pequeno protetor de tecido, para a cabeça, que varia de cor conforme a hierarquia do clero. “No caso dos papas, o solidéu é sempre branco”, afirma a coordenadora, mostrando a peça que pertenceu a São João XXIII, chefe dos católicos do mundo de 1958 a 1963 e responsável por anunciar a convocação para o Concílio Vaticano II, responsável por profundas modificações na Igreja Católica. O concílio (de 1962 a 1965), foi concluído pelo papa Paulo VI (1897-1978). Importante lembrar que, em 31 de julho de 1960, o estado de Minas Gerais foi consagrado a Nossa Senhora da Piedade, após decreto de João XXIII, por meio das Letras Apostólicas "Haeret animia".
Medalhinha de São Vicente de Paula
O solidéu de São João XXIII – relíquia de segundo grau, por ser um bem pertencente ao sumo pontífice – foi doado ao Memorial, no ano passado, pelo padre Luiz Eustáquio Santos Nogueira. Olhando a peça acondicionada em caixa de vidro, Rayane observa que a parte superior se encontra um pouco desgastada. “O objetivo é mostrar também a ação do tempo sobre um bem.” Batizado Angelo Giuseppe Roncalli, o chefe da Igreja Católica chamado “o papa bom” foi canonizado em 2014 pelo papa Francisco (1936-2025).
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Único papa que esteve em Minas, São João Paulo II, o “peregrino da paz”, tem sua memória eternizada no Memorial. Dele, estão guardadas cuidadosamente em caixas a casula e a estola usadas na histórica missa celebrada, na manhã de 1º de julho de 1980, para mais de 1 milhão de pessoas, em Belo Horizonte. O espaço público aos pés da Serra do Curral, denominado Praça Governador Israel Pinheiro), foi “batizado” pelo povo: Praça do Papa. O sumo pontífice marcou a história de Minas e o coração dos belo-horizontinos.
Estola que o papa João Paulo II usou durante uma missa que celebrou em Belo Horizonte, em julho de 1980
Nascido Karol Jósef Wojtyla, na Polônia, João Paulo II foi canonizado também por Francisco na mesma cerimônia que tornou santo João XXIII, na Praça de São Pedro, no Vaticano. Diante das relíquias, todas catalogadas, Rayane ressalta que o Memorial não guarda apenas a “história” da Arquidiocese de BH, formada por 28 municípios, mas também o “histórico” de personalidades, comunidades e demais pessoas que contribuíram para a criação do setor e colaboram com o bom andamento do trabalho.
Visitas agendadas
Futuramente, o acervo do Memorial Arquidiocesano estará aberto a moradores e visitantes na Catedral Cristo Rei, em construção no Bairro Juliana, na Região Norte BH. Funcionando como grande reserva técnica, se encontra disponível a pesquisadores, recebendo visitas agendadas (enviar email para memorialarquivo@arquidiocesebh.org.br).
De acordo com a Arquidiocese de BH, o primeiro passo para a preservação da história foi dado em agosto de 2005 pelo arcebispo metropolitano dom Walmor Oliveira de Azevedo. Dez anos depois, ele se tornaria realidade. Ampliando mais a sua ação, o Memorial Arquidiocesano foi vinculado, em 2016, ao Vicariato Episcopal para Ação Missionária.
“Esse importante gesto de dom Walmor expandiu as ações do Memorial sob o ponto de vista missionário, na realização de assessorias às paróquias dos 28 municípios ligados à Arquidiocese de BH, principalmente na identificação, preservação e conservação dos bens culturais de caráter material e imaterial”, explica a coordenadora.
Assim, são desenvolvidos projetos de recuperação e restauração dos bens culturais – móveis e imóveis –, “conseguindo devolver às comunidades parte de sua composição identitária”. São dezenas de bens restaurados e entregues às comunidades.
Em âmbito educacional, uma ação importante está ligada ao Santuário Arquidiocesano São Francisco de Assis, conhecida popularmente por “Igrejinha da Pampulha”, ícone do complexo arquitetônico da Pampulha que, em 2016, recebeu o título de Patrimônio Mundial. “Buscamos integrar a percepção religiosa que o santuário apresenta por meio de arte, religiosidade e fé. Ações educativas proporcionam melhor experiência e fruição artística aos fiéis e visitantes, além de ampliar diálogos entre a comunidade e o patrimônio cultural.”
A equipe técnica do Memorial Arquidiocesano é multidisciplinar, reunindo profissionais da arquitetura, historiadores e museólogos.