Júlio Moreira

Todo rio precisa de quem o defenda. O das Velhas encontrou em Apolo Heringer Lisboa não apenas um protetor, mas um intérprete de sua agonia e de sua esperança. Médico e professor da UFMG, ele fez da luta pela recuperação das águas um projeto de vida e de futuro. Em 2004, Apolo lançou um gesto ousado que parecia utopia: a Meta 2010, um compromisso simbólico de devolver ao rio a capacidade de ser navegável, pescável e nadável. Três verbos simples, mas carregados de sentido para um curso d’água que já parecia condenado. A meta não curou todas as feridas, mas abriu caminhos.

Hoje, Apolo, fundador do Projeto Manuelzão, ergue os olhos para um desafio ainda maior: a Meta 2034. Se antes o sonho era ver o Velhas de volta à vida, agora, a ambição é devolvê-lo em abundância, do nascimento até a foz no São Francisco, com peixes percorrendo não apenas a calha principal, mas cada afluente, cada recanto. O coração da batalha está na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde se concentram 85% dos problemas da bacia. Ali, no epicentro da degradação, Apolo deseja erguer um modelo de recuperação ambiental, social e econômica capaz de inspirar todo o país. Mas a Meta 2034 vai além do saneamento. Ela significa restaurar dignidade às populações ribeirinhas: alimento garantido, renda sustentável, lazer possível, saúde preservada. Porque, como afirma Apolo, o abandono histórico das águas é, na verdade, uma guerra travada contra os pobres. Confira a entrevista abaixo.

Apolo com Manuelzão: o homem que Guimarães Rosa transformou em personagem dá nome ao projeto que luta pela vida e pela salvação do Rio das Velhas

arquivo pessoal

Como começou sua trajetória em defesa do Rio das Velhas?

Foi a minha busca de inserção em um novo espaço da vida social e política, sem priorizar partidos, onde para mim, grandes problemas reais da sociedade não são prioridades, como exemplo os rios, o desmatamento, a corrupção, a violência, a força do exemplo. Essa decisão ocorreu na segunda metade da década de 1980. E foquei na questão ambiental, a fonte dos nossos meios de vida, tomando a bacia hidrográfica do Rio das Velhas como uma referência de território replicável em termos planetários. Inspirei-me no território hidrográfico, pois o espelho d’água mostra a nossa cara!

Por que o senhor escolheu o nome “Manuelzão” para o projeto?

Eu convivia com o Manuel Nardi, personagem vivo de Guimarães Rosa, que conheci no distrito de Andrequicé, em Três Marias (MG), quando fui supervisor de estagiários do Internato Rural da Faculdade de Medicina da UFMG, que faziam as refeições em sua casa. Tornamo-nos amigos e admiradores mútuos. Inclusive, ele foi o padrinho do meu primeiro filho e, em BH, se hospedava comigo. Aprendi muito com ele, um sábio sobrevivente no sertão violento e crítico das transformações do sertão de Minas do século 20 – como a poluição chegando aos rios e o desmatamento. Manuelzão viveu às margens do Rio São Francisco e do Rio das Velhas durante muitos anos, desde que saiu de Saúde, hoje Dom Silvério, município da Zona da Mata mineira. Era tão notável e de rara inteligência, inspirando Guimarães Rosa, não é pouca coisa! Manuelzão não gostava de ver a destruição das veredas e o eucalipto tomando conta do sertão. Era rebelde por natureza e não respeitava nenhum tipo de hipocrisia no trato social. Vivia na dele! Tudo de que precisamos. Então fiz-lhe uma sondagem: “Manuelzão, você é a cara do sertão do São Francisco e da saga roseana; estamos criando um projeto chamado Rio das Velhas para trazer o peixe de volta, despoluindo as águas e protegendo a natureza. Você aceitaria nossa homenagem batizando-o de Projeto Manuelzão?”. Ele ficou emocionado e logo emendou, sem vacilo: “Olha, não mereço tanto. Eu conheci o Rio das Velhas com muito peixe e muita água, ainda na época do presidente Artur Bernardes, mas se vocês querem dar ao projeto o nome de um simples vaqueiro, eu fico muito satisfeito”.

A Meta 2010 foi um marco. O que ela representou em termos de conquistas?


A Meta 2010 foi inédita: uma proposta da sociedade civil que se transformou em programa de governo. Uma mudança de paradigma. O objetivo era devolver o peixe à Região Metropolitana de Belo Horizonte como indicador visível da qualidade ambiental da bacia, local onde a destruição do rio começou. Houve avanços expressivos: a inauguração das duas grandes estações de tratamento, campanhas de mobilização contra a canalização de córregos, ecologizar a gestão das águas, criação de um jornal com tiragem de 100 mil exemplares e, em 2010, nadamos e presenciamos a volta dos dourados em Santo Hipólito. Não alcançamos tudo, mas chegamos a cerca de 60% das metas previstas, segundo pesquisas da UFMG, da Copasa e da Semad (Secretaria de Estado de Meio Ambiente).

E quais foram os impactos reais na qualidade da água e na fauna do rio?


Lançado publicamente em 7 de janeiro de 1997, na presença do Manuel Nardi, em frente à Faculdade de Medicina, o Projeto Manuelzão propôs a Meta 2004-2010. Tivemos protagonismo autoral na inauguração das duas grandes Estações de Tratamento de Esgotos em BH: a do Arrudas (2001) e a do Onça (2010). Até 2001, a capital do estado não tratava esgotos Era uma vergonha absurda.

Apesar dos avanços, por que os trechos entre os ribeirões Arrudas, Onça e da Mata continuam tão degradados?


Excelente pergunta. Esse trecho é o epicentro da degradação. A empresa estatal Copasa é responsável pela coleta e tratamento dos esgotos de BH e Contagem, mas vem protelando essas obras por décadas. Vejam o exemplo da Pampulha! O governo estadual, responsável pela empresa, também não assumiu o enfrentamento como deveria. Se tivessem agido com firmeza, teríamos alcançado a Meta 2010, atingindo o previsto na Resolução Conama 351 de 2005, que era a Classe 2 de qualidade da água, para, então, dar o passo seguinte, atingir a Classe 1 na calha principal da bacia. O resultado é que Santa Luzia e Sabará recebem em primeira mão esse castigo imerecido. Essas cidades são tratadas como fossa da capital, embora sejam cidades históricas que deveriam ser respeitadas.A coleta de esgotos porta a porta ficou muito aquém, e continuam chegando grandes volumes aos rios sem tratamento. O que é tratado nas ETEs deixa a desejar, tanto em volume quanto em qualidade de depuração. O problema não é falta de dinheiro nem de tecnologia. O ser humano já foi à Lua, já pousou em Marte, já filmou o Sol de perto, mas ainda não conseguiu tirar o xixi e o cocô dos rios!

Você disse que Santa Luzia e Sabará estão no epicentro da degradação. Qual o motivo?


Santa Luzia e Sabará recebem em primeira mão os esgotos lançados por Belo Horizonte e Contagem, de mais de 3 milhões de pessoas. Por isso, essas cidades estão no epicentro da Meta 2034. Aqui é o ponto de maior degradação, mas também de maior possibilidade de mudança. Se recuperarmos esste trecho, toda a bacia do Rio das Velhas será beneficiada. E Santa Luzia será a primeira cidade a ser beneficiada.


O que é a Meta 2034 e qual a sua principal diferença em relação à Meta 2010?

A Meta 2034 tem semelhanças e diferenças com a Meta 2010. Uma semelhança é ter foco na Grande BH, que concentra 85% dos problemas da bacia toda. Agindo aqui com eficácia, resolveremos 85% dos problemas de toda a bacia e os peixes retornarão desde o baixo e o médio curso do Rio das Velhas e do São Francisco, entrando pelos muitos afluentes grandes, médios e pequenos, que, somados, são milhares de quilômetros da Rota dos Peixes, chegando às cidades menores, povoados e ao povo da zona rural. Isso significa ter foco no epicentro do problema, que se tornaria assim o foco da solução, tratando seriamente os esgotos domésticos, comerciais e industriais urbanos da região metropolitana que chegam ao Velhas, sobretudo pelos ribeirões Arrudas, Onça e da Mata.

Há uma diferença muito grande entre a proposta de 2004-2010 e agora a de 2025-2034 em relação à questão econômica. Quem são os maiores prejudicados com a doença e morte dos rios?

São os mais pobres, da população rural e urbana. Quem não tem comida poderia estar comendo sua proteína, pescando, vendendo algum pescado, criando um comércio, uma venda ou um restaurante, produzindo renda, usando água limpa no seu roçado e dando de beber aos animais e vendo a fauna sobreviver. Quem não pode pagar clubes poderia estar nadando nos rios, praticando esporte e lazer. Assim, trata-se não apenas de questão ecológica e de saúde, mas esse desleixo irresponsável é um tipo de “guerra” contra os mais pobres, de quem privatiza lucros e socializa prejuízos. Nós pensamos em tudo, inclusive que a Meta 2034 cabe em programas do governo federal, que não pode se omitir e já tem programas aprovados para a segurança alimentar e renda, com verbas nem sempre utilizadas.

O senhor acredita que a sociedade e os governos estão preparados para esse novo desafio?


Deveriam estar desde 1897, quando BH foi inaugurada. Pelo menos desde meados do século 20. Desde essas datas estamos vendo os rios se transformarem em esgotos e acontecerem grandes mortandades de peixes como surubins, dourados e outros na RMBH, prejudicando a alimentação e a renda dos mais pobres. A boa notícia é que esses peixes podem voltar. É isso que podemos garantir se todos nos derem apoio político e tiverem a firmeza de se manifestar onde puderem. Impressionante observar que essas questões não entram nas agendas das câmaras e assembleias nem de governos e partidos. Nós não somos ricos nem governo, somos a sociedade consciente que age propondo uma meta estudada e não custeada por dinheiro público. Se a sociedade se mover com vigor, os políticos terão que escutar, pois precisam de votos.

Como o senhor avalia o papel dos governantes ao longo das décadas no cuidado com o rio?
Foi de abandono, por não compreenderem o que é uma gestão ecológica de bacia hidrográfica, apenas preocupados em ganhar dinheiro explorando os recursos fornecidos pelos rios, como se meio ambiente fosse apenas fonte de insumos. Os grandes nem pagam o valor de mercado da água bruta que utilizam.

Como sensibilizar a população urbana sobre a importância dos rios?

O que precisamos é sensibilizar as autoridades. Não é a população que deve ser responsabilizada pela catástrofe ambiental que aconteceu com o Rio das Velhas. Esse problema começou com a transferência da capital para BH em 1897, fruto de uma administração pública imprevidente que desdenha a consciência ecológica. A população é a vítima: ela ficou mais pobre com a poluição e a escassez hídrica promovida pelos bombeamentos de água sem controle de outorgas de algumas atividades econômicas insustentáveis.

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Que mensagem o senhor deixaria para a nova geração que vive às margens do Rio das Velhas?

Nossa população, hoje com mais de 5 milhões de pessoas, se estabeleceu ao longo do Rio das Velhas por sua riqueza hídrica, clima saudável, abundância de peixes, terras boas e recursos minerais. Tudo o que permitiria uma sociedade desenvolvida e bem feliz. Mas isto depende de nossa mentalidade, não apenas das riquezas naturais. O que temos feito é um uso predatório. O planeta Terra é um ecossistema maravilhoso, uma ordem inteligente. Precisamos estar à altura do que recebemos como casa para vivermos. 

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