Caso Thainara: o que dizem os profissionais da saúde que atenderam a jovem
Cinco meses depois da conclusão do inquérito, denúncia do MPMG foi contra conclusão da PCMG, que indicou possível culpa de militares envolvidos na operação
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Os cinco profissionais da saúde que foram denunciados pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) pela morte da jovem Thainara Vitória Francisco Santos, de 18 anos - em novembro de 2024 -, chegaram a prestar depoimento para a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) durante as investigações. Nos documentos, a que o Estado de Minas teve acesso, o médico, as duas enfermeiras e as duas técnicas de enfermagem que teriam atendido a jovem na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Vila Isa, em Governador Valadares (MG), no Vale do Rio Doce, afirmaram que ela chegou ao local sem sinais vitais. Além disso, o órgão pediu o arquivamento das denúncias contra os militares que atuaram na ocorrência.
O documento com a denúncia contra os profissionais da saúde foi enviado à Justiça em 3 de outubro. Para o MPMG, o grupo é responsável pela morte de Thainara por omissão de socorro. De acordo com o promotor Guilherme Heringer de Carvalho Rocha, os laudos complementares apresentados por representantes do militares e verificados pela Central de Apoio Técnico do Ministério Público indicam que Thainara teve uma parada cardiorrespiratória e não foi socorrida pelos profissionais ao chegar à unidade médica. No entanto, o laudo de necropsia do Instituto Médico Legal (IML) atestou que a causa da morte foi por constrição extrínseca do pescoço por objeto contundente.
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Ainda segundo a denúncia, a jovem deu entrada na UPA por volta de 21h, mas os profissionais não tentaram reanimá-la. “Apenas foi administrado eletrocardiograma, às 22h14, mais de 1h depois de sua chegada, limitando-se os acusados a "declarar o óbito" por meio de tal exame, omitindo-se, portanto, de prestar socorro que podia ter salvado a vida da jovem. Em síntese, os denunciados não fizeram absolutamente nada”, afirmou Rocha.
A denúncia do promotor foi na contramão do entendimento do delegado responsável pelas investigações, que apontou que a jovem chegou à unidade já sem vida e indicou que o local do óbito foi a viatura da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG). Durante os depoimento ao longo das investigações as versões dadas pelos profissionais de saúde foram semelhantes.
Técnica de enfermagem verificou o pulso
Ao delegado da Delegacia Adjunta de Crimes Contra a Vida de Governador Valadares, a técnica de enfermagem que primeiro atendeu a jovem informou que encontrou um policial militar do lado de fora da UPA tirando Thainara de dentro da viatura e a colocando em uma maca. Ao analisar a jovem, a profissional abriu seu olho e viu que sua pupila estava dilatada. Na sequência, a técnica verificou seu pulso e constatou que não havia sinal vital.
Assustada, a depoente afirmou que procurou uma enfermeira e a informou que se tratava de um óbito. Além disso, a técnica de enfermagem disse aos policiais civis que percebeu que a jovem já estava com a boca cianótica, ou seja, roxa, e com a língua presa. “Que 'correram' com Thainara para a sala de emergência, acionando toda a equipe médica. Que colocaram eletrodos em Thainara e foi constatado o óbito da mesma, visto que não apresentava nenhum sinal vital”, consta no depoimento da profissional.
Já a primeira enfermeira que atendeu a jovem informou que, quando a técnica a alertou que a pupila de Thainara não estava “reagente”, a encaminharam para a sala de emergência. A profissional ainda informou que “tudo ocorreu dentro de um minuto aproximadamente”. Ela afirmou que chegou a questionar o militar que entrou com a jovem na unidade de saúde qual era o nome da paciente o que teria acontecido com ela. Em resposta, o policial afirmou que não sabia o nome da jovem e que “assumiu a ocorrência com ela daquela forma”.
"Todos os exames foram feitos"
Aos investigadores, o médico que estava de plantão na UPA afirmou que Thainara chegou ao local já sem vida. Ele explicou que estava dentro da sala de emergência quando a equipe entrou com a jovem em uma maca e “logo foi feito o atendimento”. Ainda segundo o médico, todos os exames necessários foram feitos e não foi possível verificar nenhum sinal vital.
“Que o depoente teve contato com outros policiais militares, visto que tinham vários dentro da UPA e alguns chegaram a questionar ‘se Thainara poderia ter tido um infarto’, mas o depoente esclareceu que ele não teria como afirmar, somente um laudo de necropsia e deixou ‘bem claro para os policiais que a paciente deu entrada na UPA já em óbito’”, informou o médico.
Relembre a ocorrência
O caso ocorreu no Residencial Ibituruna II, no Bairro Vila dos Montes, em Governador Valadares, na Região do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Na época, Vitória foi presa por supostamente agredir policiais ao tentar proteger o irmão, diagnosticado com retardo mental moderado. Uma gravação, feita por vizinhos da família, registrou a jovem do lado de fora do apartamento sendo contida pelos militares enquanto populares alertam que "o menino é doente da cabeça" e que ele "não é envolvido [com o crime]".
Nas imagens, ao menos oito agentes seguem usando a força para imobilizar os irmãos. "É só ele parar de resistir", diz um dos oficiais. Thainara foi presa, mas, por ter se sentido mal, foi levada, de viatura, a um hospital. Ao chegar à porta da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Vila Isa, a menos de 10 minutos da casa, foi encontrada inconsciente. Um médico constatou o óbito no local.
O exame de corpo de delito de Thainara, feito no Instituto Médico Legal (IML) de Governador Valadares, apontou que a jovem morreu devido a uma asfixia por constrição extrínseca do pescoço por objeto contundente. O documento aponta que a jovem tinha vários hematomas e escoriações pelo corpo, incluindo na região do pescoço. Entre os ferimentos descritos pelo laudo pericial, a que o Estado de Minas teve acesso, estão: edemas na parte inferior e lateral do olho direito; escoriações abaixo da mandíbula; hematomas na região do colo, pescoço e queixo.
Além disso, o legista que assina o documento aponta que os “achados necroscópicos” apontados pelo exame são compatíveis com estrangulamento. Outro ponto apresentado no laudo final é que os edemas encontrados no corpo de Thainara não indicam que a possibilidade de esganadura, ou seja, enforcamento com as mãos, mas sim com “estrangulamento antebraquial”, quando a laringe é comprimida pelo braço e antebraço, popularmente conhecido como “mata-leão”.
“Não há evidências, no exame necroscópico descrito no laudo referência, de que tenha havido constrição cervical pelas mãos (esganadura). A análise dos achados necroscópicos permite a conclusão de que o meio utilizado na constrição cervical foi contundente, devendo ser considerada a possibilidade de estrangulamento antibraquial como principal hipótese, sem prejuízo à eventual utilização de outro objeto”, indica o legista.
O que apontaram as investigações?
No relatório de conclusão do inquérito, assinado em 29 de maio, o delegado Cleriston Lopes de Amorim, da Delegacia de Crimes Contra a Vida e Pessoas Desaparecidas de Governador Valadares, apontou que Thainara foi vítima de homicídio culposo por parte dos militares que atuaram na operação. De acordo com o responsável pelas investigações, as declarações prestadas por testemunhas do fato foram controversas e, por isso, não foi possível afirmar com clareza qual policial teria agredido a vítima a ponto de “ceifar sua vida”.
Além disso, Amorim aponta que, mesmo se houvesse uma autoria determinada e sem “qualquer tipo de dúvida”, ainda não seria possível assumir que a conduta do militar foi dolosa, ou seja, com intenção de ser causada. Para o delegado, os militares não tinham o objetivo de matar a jovem, e sim conter a briga generalizada resultado da intenção de prender um suspeito de homicídio.
“Não se está aqui excluindo a relação direta da conduta dos militares (não precisamente identificados) com a morte da vítima Thainara Vitória Francisco Santos, mas sim excluindo o fator ‘dolo’”, afirmou o delegado no relatório final do inquérito policial.
Além disso, uma qualificadora para o crime de homicídio culposo, apresentada pelo delegado, foi a omissão de socorro. Para ele, apesar de não haver intenção de matar a vítima, os policiais demoraram para prestar socorro a Thainara e “foram despendidos preciosos minutos entre a saída do condomínio e a chegada no hospital”.
Nesse sentido, Amorim aponta que imagens feitas no dia dos fatos mostram que, antes mesmo de entrar na viatura policial, a jovem já estava desmaiada e “dando nítidos sinais que exigiram a prestação de socorro imediato”. Em seguida, o delegado afirma que, no caso da omissão de socorro, os militares envolvidos “podem ser perfeitamente identificados”, no entanto, só na “seara militar”.
Fraude processual
Além do homicídio culposo e a omissão de socorro, Amorim concluiu que houve fraude processual ao longo da ocorrência. Isso porque, conforme as investigações, o local do crime, ou seja, onde o corpo da jovem foi encontrado, seria a viatura. E, ao chegarem à Unidade de Pronto Atendimento, os policiais moveram seu corpo e o veículo oficial não foi periciado. No entanto, o delegado não apontou autoria a nenhum dos crimes, referindo-se aos autores apenas como “os militares”.
“Nesse passo, ao ter sido constatado o óbito de Thainara decorrente de violência, era obrigação dos militares envolvidos o acionamento da Perícia Técnica para elaboração de laudo de local, com a devida preservação do corpo e demais vestígios relacionados, especialmente pela perícia técnica a ser realizada na viatura (provável local onde a vítima faleceu)”, aponta.
Corporativismo
Na época da conclusão do inquérito, Márcio Santos e Matheus Lopes, advogados da família de Thainara, afirmam ao Estado de Minas que, além da demora, o resultado do inquérito não foi satisfatório por não apontar, de fato, os culpados por sua morte. Para Lopes, o delegado responsável pelas investigações agiu com corporativismo.
“Demorou-se mais de seis meses e o inquérito foi concluído. Teve um relatório final, para o pai dela principalmente, totalmente vergonhoso [...] O delegado não atribui a ninguém a autoria de crime. Ele simplesmente disse que eles cometeram fraude processual, mas não fala qual o militar, não atribui autoria de ninguém. O que deixa o trabalho dele incompleto. O outro resultado dessa investigação ele concluiu que houve um crime militar de homicídio culposo, qualificado em omissão de socorro. E aí ele faz a mesma coisa. Simplesmente deixa em branco. E aí como é que você vai processar? A operação teve 23 militares. O Ministério Público vai processar os 23 militares por omissão de socorro? Não vai”, critica Márcio.
Além disso, o advogado afirma que o delegado não levou em conta o laudo de necropsia que apontou que o corpo da jovem tinha diversos hematomas. “A causa morte do laudo pericial do IML é asfixia por constrição extrínseca do pescoço, que por si só é um crime doloso. Ninguém asfixia uma pessoa com um mata leão sem a intenção de matar. Ele [o delegado] não indiciou os militares nem por lesão corporal. Nem por uma tortura seguida de morte. Ele simplesmente fala que teve um homicídio culposo. E aí, fala que como foi um homicídio culposo, os autos têm que ser remetidos para a Justiça Militar apurar”, afirma Santos.
Após o encaminhamento do pedido de arquivamento das acusações contra os militares que atuaram na operação que resultou na morte da jovem, a defesa afirmou que não foi pega de surpresa. De acordo com o advogado da família de Thainara, no início do ano, foi informado pelo promotor, antes da conclusão do inquérito, da entrega do parecer pelos militares envolvidos no caso que contestava a causa morte. Agora, a família da jovem pretende entrar com um pedido de revisão do pedido de arquivamento.
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“O pedido de revisão é feito para o juiz do caso e analisado pela Procuradoria Geral. O procurador geral de justiça vai reanalisar o processo e verificar se é questão de arquivamento ou não. Se o procurador mantiver a decisão de arquivamento, a única alternativa que teremos é levar o caso para o Tribunal Internacional”, afirmou Márcio Santos.