Dia do Professor: mestras de 3 gerações contam sua trajetória na docência
Numa homenagem a todos os docentes brasileiros, elas mostram que é possível educar sem perder a ternura
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Centenas de crianças aprenderam as primeiras letras com Vera, que foi aluna de Mariza, que estudou com dona Áurea, que agora completa 100 anos, dos quais quase quatro décadas dedicadas à educação. Nesse ciclo da vida e do ensino, que se assemelha ao verso de um poema do mineiro Carlos Drummond de Andrade – “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria...” –, o amor pela profissão se soma à paciência com os alunos, o tempo se divide em mil e uma atividades, o respeito pelo ofício se multiplica indo além da sala de aula.
Neste Dia dos Professores (15/10), numa homenagem a todos os docentes brasileiros, representantes de três gerações de mestras, que um dia foram aprendizes, se encontram, se abraçam, contam histórias e estão certas de que fariam tudo de novo, afinal, lecionar é iluminar caminhos, semear palavras, colher os saborosos frutos do conhecimento. “Nem tudo é um mar de rosas, tem os dois lados, mas vale a pena. Desejo a todos, professores e professoras, muita saúde para trabalhar”, ressalta dona Áurea.
O encontro poderia durar horas, pois assunto não falta quando educadores se encontram. E lá estavam na casa de Áurea Marques dos Reis, aniversariante centenária deste mês, as professoras Mariza José Moreira Dalla Venezia, de 84, sua aluna no antigo curso primário (segundo ao quinto ano do ensino fundamental), e Vera Lúcia Nascimento, de 73, então “bem pequenininha”, conforme diz, quando se sentou diante do quadro para aprender o “beabá”, no Grupo Escolar Modestino Gonçalves, atual escola municipal, no Centro de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). À frente, com o giz na mão, estava Mariza, recém-formada no magistério. “As crianças aprendiam com cartilhas, e as primeiras letras com ‘a história de Lili’”, recorda-se Mariza.
MISSÃO: ENSINAR
O fundamental no ofício de ensinar está em ter, acima de tudo, paciência, concordam plenamente as professoras já aposentadas da sala de aula. “Mas devemos acrescentar o amor...é essencial”, afirma dona Áurea, a lucidez em pessoa, com memória prodigiosa e boas lembranças na cabeça e no coração. “Nasci em Jaboticatubas (RMBH), fiz o curso normal, e depois vim trabalhar em Santa Luzia”, conta a simpática senhora que chegou ao mundo em 1º de outubro de 1925, filha de Luísa Marques Araújo e Leônidas Marques Afonso, importante líder local e historiador (na época, Jaboticatubas era distrito de Santa Luzia).
Dona Áurea lecionou por um tempo, em 1948, no Grupo Escolar Modestino Gonçalves, depois assumiu um cargo na Secretaria de Estado de Educação, na Praça da Liberdade, na capital. No retorno a Santa Luzia, foi designada para a vice-direção, na qual ficou de 1955 a 1985, do Grupo Escolar Santa Luzia, no Bairro da Ponte. Com o marido Mauro Reis (falecido), teve seis filhos e se mostra orgulhosa dos 12 netos e cinco bisnetos. Além da educação, sempre se manteve ativa na comunidade, conciliando trabalho, participação na Paróquia São João Batista e promoção de atividades sociais e culturais. Feliz com a trajetória, foi homenageada em 1º de outubro pelo Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de Santa Luzia e Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia.
Ciente da presença de dona Áurea na vida comunitária, Mariza abraça a mestra e revela ter aprendido muito com ela – ensinamentos que a ajudaram em 27 anos dedicados à educação e o mesmo tanto como servidora da Prefeitura de Santa Luzia, onde foi secretária de Turismo e chefe de Supervisão Pedagógica na Secretaria de Educação.
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“Dona Áurea era uma bondade sem fim. Vivíamos outros tempos, havia muito respeito pelos professores. Não pode haver alegria maior, para um mestre, do que ver a criança escrevendo as primeiras palavras. Começávamos do “beabá” mesmo, pegando na mão de cada um, de cada uma, para fazer as letras com o lápis. Naquela época, ainda não havia o pré-escolar”, diz Mariza, que complementou seus estudos em BH nos colégios Monte Calvário e Nossa Senhora da Piedade.
Depois de iniciar a carreira profissional no centenário Modestino Gonçalves, Mariza foi trabalhar na Escola Estadual José Maria Bicalho, no Bairro Carreira Comprida, também conhecido por Frimisa por sediar o desativado Frigorífico Minas Gerais, cujas instalações abrigam a prefeitura local. Trabalhou ainda nas escolas estaduais Rose Haas Klabin e Geraldo Teixeira da Costa.
Vida de professor era também carregar pilhas de cadernos para corrigir em casa, preparar as aulas do dia seguinte, fazer as provas no mimeógrafo e conciliar tudo com as atividades domésticas. “Bisavô” das impressoras modernas, o mimeógrafo, com seu forte cheiro de álcool, foi um dos primeiros sistemas de cópias usados. “Tinha uma matriz chamada estêncil e fazia reprodução de documentos em larga escala”, conta Mariza, fazendo, com a mão direita, o movimento de rodar a manivela para imprimir prova por prova. Antes, as provas e cartazes eram feito à mão.
Os tempos realmente eram outros, observa Mariza, com larga experiência em vários setores do ensino. “Os pais tinham mais compreensão do papel dos professores... agora tudo é bem diferente. O mundo mudou demais. Conheço bem a estrutura das escolas. Além de ter dado aulas particulares e atuado em sala de aula, fui supervisora e vice-diretora. Fiz curso de Orientação Pedagógica no Instituto de Educação, em BH”. Viúva do italiano Silvano Dalla Venezia, com quem foi casada durante 57 anos, Mariza é mãe de Liliana, Cláudia e Giovanni, tem nove netos e duas bisnetas.
Em época de mínima oferta de transporte público, o deslocamento entre Santa Luzia e BH, para estudos ou trabalho, se tornava um permanente gargalo. “Quando fui trabalhar na Secretaria de Estado da Educação, na Praça da Liberdade, em BH (atual Museu das Minas e do Metal), só havia dois ônibus – “um de manhã para ir, outro à noite para voltar. Era uma jardineira, e a estrada, pura poeira”, recorda-se dona Áurea. Mariza explica que era preciso colocar uma roupa por cima, tipo guarda-pó, para chegar “bem-arrumado” ao trabalho ou à escola. Mais tarde, Mariza fez o curso de especialização em arte, trabalho e vida, e, com talento para artesanato, faz bordados e delicadas flores de biscuit para bolos.
LEMBRANÇAS
Ofício majoritariamente feminino no século passado, o magistério (no ensino fundamental) era oportunidade de conhecimento e também de trabalho. Foi o que pesou na decisão de Vera Lúcia Nascimento, solteira, de uma família de cinco irmãos, que vivia da agricultura e tinha grande área de terra às margens do Rio das Velhas. “Terminei o curso normal e logo arranjei emprego. Acabei gostando de trabalhar em escola, fiquei na educação durante 38 anos. Sempre tive muito prazer em ser professora”, conta Vera, que se tornou “Tia Verinha” para a meninada.
Os olhos de Vera brilham ao falar sobre os alunos. “Nós gostávamos deles e eles gostavam de nós. Eram tantos presentes que recebíamos das turmas que, muitas vezes, voltávamos para casa com a sacola carregada. Tenho saudade”, diz a professora aposentada contando que trabalhou como docente nas escolas do distrito de São Benedito: Municipal São João da Escócia, Estadual Leonina Mourthê de Araújo, Estadual Gervásio Lara e Escola da Comunidade; depois na sede – escolas municipais Santa Luzia, Sinhá Teixeira da Costa e Professora Ceçota Diniz, e ainda na secretaria da E. E. Professor Domingos Ornelas e, na sequência, em sala de aula na Santa Luzia e na José Maria Bicalho.
Em casa, Vera guarda fotos e cartas dos alunos. “Uma vez, um deles me escreveu uma carta tão longa, que enrolou como se fosse um pergaminho. Tenho até hoje, mas está tão bem guardada que nem sei, depois de tantos anos, como encontrá-la”. A história desperta sorrisos em dona Áurea e Mariza, ouvintes atentas do caso. “Tenho muito orgulho da profissão e dos meus alunos. Um deles é juiz de direito”, diz Vera.
Os meninos “levados” também ganham espaço nessas memórias. Dona Áurea cita alguns nomes, pessoas já falecidas ou agora rodeadas de netos. “O certo mesmo é que fiz muitas amizades”, diz a centenária senhora, enquanto Vera lembra que, no distrito de São Benedito, conheceu muitos colegas de municípios vizinhos que vinham trabalhar.
Puxando pela memória, dona Áurea se lembra de que, ao trabalhar no Modestino Gonçalves, o diretor era o professor Francisco Tibúrcio de Oliveira (1882-1962). O nome é a deixa para que as três mestras recitem, com porte altivo, voz afinada e movimentos elegantes, um trecho do poema “Santa Luzia”, canto de amor à cidade que passa de geração em geração: “Berço ancestral de augustas gerações, e túmulo de glórias no passado. As ruínas do teu solo derrocado, ainda estremecem cheias de emoção.”
“O professor precisa ter muito amor e paciência. Isso é fundamental na vida profissional”
Áurea Marques dos Reis, de 100 anos
“Não pode haver alegria maior, para um professor, do que ver a criança escrevendo as primeiras palavras”
Mariza José Dalla Venezia, de 84 anos
“Tenho muito orgulho da profissão e dos meus alunos. Um deles é juiz de direito”
Vera Lúcia Nascimento, de 73 anos