As esquinas de BeLÔ

Eu vivo em seu coração: o mapa de Lô Borges na capital mineira

Equipe do EM visita os locais que marcaram a trajetória pessoal e profissional do cantor, num roteiro que traduz seu caso de amor com Belo Horizonte

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BH por inteiro, hoje com sílaba maiúscula, em tom maior acentuado por sentimentos profundos, marcada pela história de um filho seu que ganhou o mundo com arte, talento, versos e voz. BeLÔ Horizonte – eis a homenagem ao cantor e compositor Lô Borges, falecido há uma semana aos 73 anos. Ele deixa um legado não só de amor à cidade natal como de trabalho obsessivo, ligação com a família e paixão pela música.

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Guiada pelo produtor musical Yé Borges, irmão um ano mais novo de Lô, a equipe do Estado de Minas faz uma viagem afetiva aos lugares que contam parte da trajetória do belo-horizontino musical, autor de hinos de uma geração como “O trem azul” e “Um girassol da cor do seu cabelo”. No mapa do coração do artista, o Bairro Santa Tereza, berço do célebre Clube da Esquina, as recordações do “Alto dos piolhos”, reduto de cabeludos nos anos 1960 e 70, o Edifício Levy, no Centro de BH, que agregou jovens amigos, a Praça da Liberdade, onde fazia caminhadas, e um estúdio na Serra, no qual gravou 11 álbuns, dos quais quatro inéditos.

Muitas vezes emocionado, principalmente ao voltar ao Edifício Levy, ao qual não ia há mais de cinco décadas, Yé contou histórias, fez revelações, e destacou o amor incondicional do irmão pela terra natal: “Ele amava Belo Horizonte”. Além da música, o Lô adorava futebol. “Se não fosse cantor e compositor, certamente seria um ótimo jogador”, disse o produtor musical ao mostrar uma foto garimpada no baú da família. De pé, com a camisa do Spartak de Santa Tereza, Lô posa para a foto oficial antes de entrar em campo.

 

 

o Entroncamento das ruas Paraisópolis e Divinópolis, no bairro Santa tereza, onde  Lô borges ficava com os amigos antes de o local virar referência musical
o Entroncamento das ruas Paraisópolis e Divinópolis, no bairro Santa tereza, onde Lô borges ficava com os amigos antes de o local virar referência musical LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS

Nesta mesma rua

Feridas da saudade estão abertas, depois, com o tempo, ficarão as cicatrizes do afeto. E as histórias perduram. Há uma semana, o Brasil perdia o belo-horizontino Lô Borges, vítima de intoxicação medicamentosa que levou à falência múltipla dos órgãos após 18 dias de internação. Durante esse período, não arredou pé do hospital, na capital, o irmão Yé Borges, de 72 anos, produtor cultural, orgulhoso dos seus oito filhos e sempre inseparável de um dos expoentes do lendário Clube da Esquina.

Mesmo com a perda tão recente, Yé aceitou o convite do EM para mostrar lugares do coração do irmão, importantes na história de sua família e marcos da música em BH. Durante o passeio, principalmente pelas ruas do Bairro Santa Tereza, foram inúmeros os moradores que o reconheceram, abraçaram, desejaram força. Uns eram amigos de longa data, outros se solidarizavam com a dor. “É um ‘barato’ conhecê-lo, todos nós estamos tristes com a morte do Lô. Para mim, é uma honra ocupar este espaço”, disse o luthier Oswaldo da Silva Vieira, de 71, dono de uma oficina de instrumentos de percussão (conserto e fabricação) localizada na Rua Dores do Indaiá, 114.

Foi nesse sobrado, ainda conservando características originais, que Salomão Borges Filho, futuro Lô, nasceu em 10 de janeiro de 1952, sexto filho do casal Salomão Magalhães Borges, militar e depois jornalista, e Maria Fragoso Borges, a dona Maricota, professora. “Meus pais tiveram 11 filhos. Curiosamente, minha mãe sempre nos chamava em grupos separados: Marilton e Márcio. Sandra, Sônia e Sheila. Lô e Yé. Solange e Dodote. Telo e Nico.”

Assim, Lô e Yé ficaram como uma dupla inseparável, nas brincadeiras da infância, nos primeiros bancos escolares no tradicional Instituto de Educação, “onde os pais faziam longas filas para conseguir uma vaga”, depois no Colégio do Sindicato dos Bancários (na Rua Salinas, atual Administração Regional Leste/PBH), nas peladas no Parque Municipal Américo Renné Giannetti, “que era praticamente nosso quintal”, nas idas aos cinemas que não existem mais, como Metrópole, o Jacques, o Roxy e outros da cidade.

A segunda residência foi na Rua Divinópolis, 136, no mesmo bairro. “Aqui em casa, sempre teve essa história de quarto dos meninos e quarto das meninas. Em 1963, mudamos para o Edifício Levy, no Centro, e, como era apartamento, o jeito foi colocar beliches para acomodar todos nós”, recorda-se Yé, explicando que agora, em que as lembranças estão doloridas, um passeio pela cidade que o irmão amou tanto serve de alento para o coração. 

 


O Trem de outras terras chega ao clube

A famosa esquina formada pelas ruas Paraisópolis e Divinópolis, em Santa Tereza, se tornou, nos últimos dias, local de homenagens, com faixas, retratos, mensagens em cartazes e flores deixados por admiradores de Lô Borges. Era ali, diante da atual Casa da Esquina (escritório de arquitetura e espaço coworking), que nasceu o Clube da Esquina, batizado assim por dona Maricota. “Sim, foi minha mãe a primeira pessoa a falar Clube da Esquina. Nós ficávamos ali reunidos, conversando, rindo, cantando, e quando alguém perguntava onde estávamos, ela respondia: Estão no Clube da Esquina”, revela Yé.

Ao ver tantas saudações e gente que continua visitando a esquina de Paraisópolis com Divinópolis, Yé canta um verso de “Trem de doido”, canção feita por Lô em 1972. “Noite azul, pedra e chão. Amigos num hotel muito além do céu. Nada a temer, nada a conquistar. Depois que esse trem começa a andar, andar. Deixando pelo chão os ratos mortos na praça. Do mercado.”

A citação de “Trem de doido” é a deixa para Yé fazer nova revelação... sobre outro trem. Reconhecido como um dos maiores sucessos do irmão, e canção eternizada na voz de Elis Regina, “O trem azul”, com letra de Ronaldo Bastos, se refere ao trem que o letrista viu em Amsterdam, nos Países Baixos. Simples assim – o trem holandês foi a inspiração.  

O adolescente Lô (de pé, o segundo da direita para a esquerda)foi meio-campista do Spartak, time de futebol de campo do Santa Tereza
O adolescente Lô (de pé, o segundo da direita para a esquerda)foi meio-campista do Spartak, time de futebol de campo do Santa Tereza Arquivo familiar/Reprodução

“Se não fosse compositor e cantor, Lô seria um grande jogador”

A vida em Santa Tereza, em duas fases – primeiro nos anos 1950 e parte de 1960, depois da década seguinte em diante – marca a vida dos Borges. Os amigos costumavam se reunir na confluência das ruas Bocaiúva, Quimberlita, Tenente Freitas e Bom Despacho, trecho apelidado de “Alto dos piolhos”. Sabem por quê? Moradores e comerciantes viam aquele monte de cabeludos – “cabelos enormes, como era moda na época”, observa Yé – e diziam que só poderiam carregar na cabeça um ninho de piolhos. “Daí veio o nome”, conta Yé, lembrando que, naqueles tempos de ditadura, a polícia costumava dar umas “prensas” nas turmas, levando alguns para averiguações na delegacia, sob suspeita de serem comunistas, ou subversivos, termo então comum. 

No “Alto dos piolhos”, moradores frequentavam o Bar do Lúcio, na Rua Tenente Freitas, um dos preferidos de Lô. O imóvel tombado pelo município está fechado. “Tinha também o Bar do Tuchão, o Bar do Seu Pedro e a padaria do Seu Juca.” As lembranças unem a juventude ao futebol, uma das grandes paixões dos meninos Borges.

“Se não fosse compositor e cantor, Lô certamente seria um grande jogador. Era ótimo no meio de campo, jogávamos no Spartak aqui de Santa Tereza, tendo como rivais o Real Madri”, diz o produtor cultural, atleticano, ao contrário do irmão, cruzeirense de carteirinha. Daqueles saudosos tempos, Yé guarda uma foto do Spartak, na qual Lô posa para a foto oficial antes de entrar em campo. O treinador, a exemplo do pai, também se chamava Salomão.

Mais além do gramado, a meninada levantava poeira em outros campos. Tinha a “pelada maldita”, que começava tarde na noite, por volta das 11h, num terreno onde se encontra hoje o Mercado Distrital de Santa Tereza, o futebol de salão nas quadras do Parque Municipal, “que era nosso quintal”, e onde fosse possível bater uma bola. “Acredita que eu e Lô fizemos um gol coletivo?”, afirma o irmão, antes de descrever uma jogada que ficou na história da dupla “Lô e Yé”, depois frequentadores do Bolão, na Praça Duque de Caxias, para recarregar as forças com um “rochedão”, prato generoso servido no estabelecimento que fechou as portas recentemente.

Antigos e novos parceiros de sucesso

Com os tempos, novos amigos se juntaram aos antigos, a exemplo do maranhense Zeca Baleiro, com quem Lô compôs “Santa Tereza”, cujo primeiro verso diz assim: “Ando por Santa Tereza a me lembrar do que fui. A cidade, outra beleza. Uma se ergue, outra rui. Vago pela Divinópolis, tanta lembrança dali. Só o meu coração sabe. Tudo o que eu senti, vivi. Senti, vivi”.

“O Zeca chegou bem jovem e se juntou à turma. Veio com um amigo, o Nosli, que jogava bola e participou da Pelada maldita.” Um caso curioso liga Milton Nascimento, o Bituca, ao jogo. “Bituca não gostava de jogar bola, mas, numa noite daquelas, nosso time ficou desfalcado e, depois de muita insistência, aceitou ser o goleiro. O problema é que, ao chutar a gol, o jogador do time adversário acertou a cara dele.” Aconteceu o seguinte: diante do chute, Milton cobriu com as mãos as partes íntimas em vez de defender o gol, e a bola acertou no seu rosto.

Os primeiros tempos em Santa Tereza se encerram com a mudança para o Edifício Levy, na Avenida Amazonas, no Centro da capital. “Minha mãe, que era professora, abriu uma escola (curso de alfabetização) na nossa casa, e decidiu com meu pai mudar para um apartamento.” No novo endereço, os Borges conhecem Beto Guedes e Milton Nascimento, parceiros de vida, música e sucesso internacional com o Clube da Esquina. 

Yé Borges na entrada do edifício, no Centro da capital mineira, local que foi moradia da família Borges por 10 anos
Yé Borges na entrada do edifício, no Centro da capital mineira, local que foi moradia da família Borges por 10 anos Leandro Couri/EM/D.A Press

Onde começou O sonho 

No Edifício Levy, na Avenida Amazonas, 718, se dá um dos momentos mais emocionantes desse passeio afetivo pelas memórias dos Borges – dos 11 filhos de Salomão (1916-2014) e dona Maricota (1920-2006), faleceram Sônia e Lô.

Durante uma década, a partir de 1963, a família morou num apartamento do décimo sétimo andar, e há anos Yé Borges não ia lá. “Acho que há séculos...”, brinca, antes de se identificar na portaria e tomar o elevador até o 16 para subir mais um lance de escada. Não havia ninguém no apartamento, mas passando a mão por um basculante do corredor, se lembrou de travessuras da dupla Lô e Yé, então com 10 e 9 anos.

“Está vendo esta cicatriz aqui no meu pulso? Machuquei passando pelo basculante para sair do apartamento sem que ninguém nos visse. E o Lô tinha a mesma cicatriz”. Na descida, Yé para no sexto andar, onde havia uma república na qual Milton Nascimento, 10 anos mais velho, morava. E conta então a história do encontro que virou um marco no Clube da Esquina: Lô desceu para comprar pão na padaria da rua, viu Bituca, já amigo de seus irmãos mais velhos Marilton e Márcio, tocando violão e se encantou pelo som e voz.

Yé fica alguns momentos em silêncio, depois não consegue segurar as lágrimas. Em seguida, passa as mãos pelo corrimão da escada, no qual ele e o irmão vinham, do décimo sétimo até o térreo, escorregando.

Já na rua, mostra outra esquina especial nessa trajetória: Rua Tupis com São Paulo. Onde agora existe uma pastelaria, era o ponto de encontro da garotada e dos adolescentes do prédio. “Beto Guedes, nascido em Montes Claros (Norte de Minas), morava logo ali na Rua Tupis”, aponta Yé.

Travessuras de adolescentes

No Centro da cidade, os meninos de Seu Salomão e dona Maricota chegaram à adolescência, conheceram os cinemas do Centro, muitas vezes assistindo a filmes impróprios para a idade – mais uma aventura urbana –, e frequentaram as horas-dançantes no Bairro Barro Preto.

“A gente sempre dava um jeito de entrar no cinema, sem pagar. Ou era pelo fundo ou uma porta lateral, para o porteiro não ver. Uma vez ou outra, não dava certo”, diverte-se Yé, contando que sua turma, fã dos Beatles, viu, claro!, “Os reis do iê, iê, iê (A hard day’s night”, lançado em 1964), o primeiro estrelado pela banda de rock inglês.

No início dos anos 1970, a família retorna à casa da Rua Divinópolis, 136. Mas as travessuras de jovem não param, incluindo, nas madrugadas, uma passagem pelo alto dos arcos do Viaduto Santa Tereza, como fizeram na década de 1920 Carlos Drummond de Andrade e depois descrita no livro “O encontro marcado”, de Fernando Sabino. “Uma vez, um amigo nosso ‘travou’ no ponto mais alto, onde havia um ferro, e teve que vir bombeiro para retirá-lo.”

Ermitão urbano

Nos últimos anos, morando na Rua Sergipe, no Bairro Funcionários, Lô Borges era visto algumas vezes em um bar próximo à sua casa, mas gostava mesmo era de tomar café no Centro Cultural Banco do Brasil e fazer caminhada da Praça da Liberdade. “De vez em quando eu andava com ele, que não gostava de correr por ter problema no joelho”, conta Yé.

Na palavra de Rodrigo Brasil, amigo e produtor dos últimos trabalhos, Lô Borges era um “ermitão urbano”, sendo difícil citar um restaurante, bar ou casa noturna que ele frequentasse. 

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Um destino certo, no entanto, era o estúdio Frangonobafo, dos sócios Thiago Corrêa e Henrique Matheus, no Bairro Serra, na Região Centro Sul, onde gravou 11 discos, dos quais quatro são inéditos.

São muitos os casos, histórias, momentos, alegrias e surpresas na vida de Lô Borges, que deixa um filho, Luca, de 27 anos. Ao terminar o passeio, o repórter pede a Yé para definir seu irmão em uma palavra. “Gênio”, afirma. “Era genial.”

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