Ibiá, no Alto Paranaíba, inaugura 1º museu do país dedicado aos quilombos
Espaço reúne vestígios arqueológicos coletados pela UFMG, com destaque para o Quilombo do Ambrósio, que existiu no território municipal, no século 18
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Preservação da memória para manter sempre presente a história e garantir às próximas gerações um legado de cultura, tradição e respeito à ancestralidade. Com esse firme propósito – que o Estado de Minas destacou ontem (20/11), Dia da Consciência Negra –, Ibiá, no Alto Paranaíba, em Minas Gerais, vai inaugurar o primeiro museu do país dedicado aos quilombos. À frente da iniciativa, o prefeito local, Gillianno Gilles Ferreira, conhecido na comunidade por Gillianno Mamão, destaca o Quilombo do Ambrósio, que existiu no território municipal, no século 18, e no qual foram encontrados, nas décadas de 1980 e 1990, vestígios (da ocupação) sob tutela da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no câmpus da Pampulha, em BH.
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Do sítio arqueológico, distante 30 quilômetros do Centro da cidade, vieram para o Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG fragmentos de cerâmica, um recipiente do mesmo material e fragmentos carbonizados de uma espiga de milho. “Precisamos manter vivo esse pedaço importante da história do Brasil, e nada mais oportuno do que apresentá-lo num museu”, disse Gillianno durante visita à UFMG, onde se encontrou com o historiador e arqueólogo Carlos Magno Guimarães, coordenador do Laboratório de Arqueologia e do Centro Especializado de Arqueologia Histórica do Museu de História Natural e Jardim Botânico da instituição.
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Para o professor e pesquisador, a iniciativa em Ibiá trará benefícios para a região. “A criação de um museu dos quilombos poderá contemplar um conjunto de possibilidades, como retomada da pesquisa arqueológica no sítio, desenvolvimento de ações diversas de educação patrimonial para a população (discente ou não), ampliação do universo das pesquisas com a descoberta de outros sítios arqueológicos remanescentes do Quilombo do Campo Grande”, diz o professor. E a realização de eventos de diferentes tipos (tendo os quilombos como referência), além dos que já ocorrem atualmente”.
Na avaliação do especialista, o patrimônio constituído pelo conjunto de vestígios arqueológicos coletados em pesquisa e sob tutela da UFMG “deverá ser reconduzido a Ibiá quando da implantação do museu”, embora tal decisão caiba ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Sem dúvida, há um futuro promissor em relação a todo esse processo”, acredita. Mas diante da ampliação da visibilidade que o sítio arqueológico certamente terá, se torna fundamental que todas as ações e medidas protetivas sejam tomadas “para evitar que ações destrutivas e impactantes sejam feitas em todo o contexto”.
TOMBAMENTO
O sítio arqueológico foi tombado pelo Iphan em 15 de janeiro de 2002, e pelo município em 8 de março de 1999. Conforme a autarquia federal, trata-se do único quilombo protegido no país pelo Decreto-lei 25 de 1937, já que houve mudanças, mais de oito décadas depois, com a Portaria 135/2023, que regulamenta o tombamento constitucional.
A fim de permitir o acesso à área tomada por vegetação, a prefeitura faz obras na estrada. “Há uma riqueza cultural muito grande, permitindo estudos e gerando conhecimento. Localizado aos pés do Morro do Espia, o Quilombo do Ambrósio foi um lugar de resistência que durou cerca de 20 anos e foi destruído em 1746. Era considerado o segundo maior do país, e o maior de Minas. Está povoado também de lendas”, diz o prefeito. De acordo com a Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, o mais antigo do país é o Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, em União dos Palmares (AL).
A diretora do Departamento de Fomento e Promoção da Cultura Afro-brasileira da Fundação Palmares, Fernanda Thomaz, diz que o museu de Ibiá será pioneiro no país, e dá boas-vindas à iniciativa por fortalecer a memória e levar à reflexão sobre o período histórico.
“REI SEM COROA”
Ainda sem data de inauguração, o futuro museu dedicado ao Quilombo do Ambrósio, em Ibiá, município com 23 mil habitantes, funcionará em um casarão, no qual são feitas intervenções para adequação de acervo. “Em 7 de setembro, comemoramos 102 anos da emancipação política, e o museu será instalado no nosso primeiro prédio público. Foi inaugurado em 1924, um ano após a emancipação de Ibiá, que pertencia a Araxá”, conta Gillianno, todo orgulhoso das festividades de aniversário da cidade, promovidas pela prefeitura, via Secretaria Municipal de Educação. “Houve desfile cívico com o tema ‘Quilombo do Ambrósio, vozes da liberdade – a história que o tempo não apaga: orgulho, luta e ancestralidade’”.
No desfile, foi contada a história de Ambrósio, considerado o “rei sem coroa”, que deixou “um legado de luta, resistência e liberdade no solo de nossa terra”. Importante ressaltar, acrescenta o prefeito, que o Quilombo do Ambrósio é reconhecido como um dos maiores símbolos de resistência em Minas, “e desempenha papel fundamental na construção da cultura regional e na valorização das raízes afro-brasileiras”. Assim, com atividades educativas, “as novas gerações valorizam e fortalecem o patrimônio”.
PESQUISA
No Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG, o prefeito de Ibiá pôde ver o material encontrado durante pesquisa (arqueológica) conduzida “em alguns momentos da década de 1980 e na primeira metade da década de 1990”, conforme explicou o professor Carlos Magno Guimarães. “O trabalho permitiu avaliar o potencial do sítio quanto à produção do conhecimento sobre ele. Não se trata de negar ou ignorar a possibilidade de existência de outros sítios, mas o foco da pesquisa esteve direcionado para esse patrimônio específico”, afirmou o arqueólogo.
Segundo Guimarães, a pesquisa estava inserida no contexto de consolidação da área de Arqueologia na UFMG, a partir da criação do Setor de Arqueologia sob coordenação do professor André Prous. Estando consolidada a área de Arqueologia Pré-Histórica, a possibilidade que se apresentou foi a de implantar a Arqueologia Histórica. “Naquele contexto, um integrante da equipe vinha desenvolvendo pesquisa histórico-documental sobre os quilombos em Minas do período Colonial. Isso abriu a possibilidade para testar o potencial da interação entre pesquisa histórica e arqueológica, tendo os quilombos como tema.”
Para entender melhor essa história, é preciso ouvir mais explicações do professor Carlos Magno. “Os quilombos foram uma realidade ampla, diversificada, consistente e uma negação constante da sociedade escravista brasileira. É necessário recuperar e resgatar essa história para que possamos compreender também a realidade atual da sociedade brasileira. É nesta perspectiva que a pesquisa arqueológica do Quilombo do Ambrósio de Ibiá está inserida desde o início.”
VESTÍGIOS
Em relação aos vestígios arqueológicos identificados, o destaque inicial remete ao fosso em formato de ferradura que circundava a maior parte da área ocupada pela comunidade quilombola. “Esse vestígio coloca em destaque o contexto ambiental e paisagístico no qual o sítio arqueológico está inserido”, conta Guimarães.
O conjunto de elementos que configuram o ambiente contempla vegetação, geologia, sistema hídrico etc. “Nesse universo, um destaque é o Morro do Espia, não só por sua configuração como pela relevância que certamente teve na existência da comunidade quilombola em questão. Há que se considerar o fato de que a localização e implantação daquela comunidade rebelde esteve ligada à proximidade da rota que conectava duas grandes áreas de mineração: Minas e Goiás. Afinal, o Quilombo do Ambrósio de Ibiá não foi implantado naquele ambiente por acaso. Certamente, foram levados em conta ambiente e relevo, a posição regional e a via que ligava as áreas de mineração.”
Ainda em relação a esse aspecto, é preciso considerar a inserção da comunidade no universo maior que envolvia a presença de outros quilombos existentes na região. “É indispensável considerar essa totalidade e a inserção do Quilombo do Ambrósio na sua estrutura e dinâmica.”
Embora as pesquisas não tenham abarcado uma área ampla do sítio arqueológico, “elas foram suficientes para evidenciar um potencial bastante expressivo quanto às informações a serem coletadas em pesquisas futuras”.