Sentença do STJ enfraquece vítimas, afirma especialista
Absolvição de réu por falta de provas robustas e inequívocas "cala mulheres que tentam denunciar seus algozes", sustenta advogada
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Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), proferida em novembro, absolveu um acusado de violência doméstica contra mulher, ao entender que não foram apresentadas provas robustas e inequívocas para a condenação. Especialista acredita que o entendimento da ministra Maria Marluce Caldas, relatora do caso, pode comprometer o direito das mulheres vítimas de violência doméstica. Para a advogada especialista em direito de família e presidente da Comissão Nacional de Pesquisa do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), Fernanda Las Casas, essa decisão abre uma jurisprudência para a perda de poder da palavra da vítima nos crimes envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, conquistada na Lei Maria da Penha.
A Corte manteve a absolvição do homem acusado de agredir a ex-companheira em Manaus (AM), ao entender que não havia provas suficientes da autoria e da materialidade do crime. A decisão da ministra no Agravo em Recurso Especial destacou que as fotografias apresentadas não identificavam com clareza a vítima nem comprovaram a data das supostas lesões, o que fragilizou a acusação. Para a magistrada, embora a Lei Maria da Penha garanta proteção ampliada à mulher, a condenação penal exige prova segura e coerente, em respeito ao princípio da presunção de inocência.
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Para a advogada Fernanda Las Casas, ao fazer a análise dos princípios, avaliando qual deveria prevalecer, a ministra entendeu que o direito do homem à liberdade é o que sofre maior prejuízo. "A partir de agora, caso não haja provas robustas da violência doméstica, essa decisão pode ser usada em ações similares a essa, justificando que o direito à liberdade do homem sobrepõe a dignidade humana da mulher, pois ao diminuir a importância da fala da mulher retira dela a possibilidade de defender-se, afinal como a mulher vai obter prova robusta de uma violência moral ou psicológica?”, questiona.
Segundo a advogada, a ministra avaliou um direito individual sobre o direito coletivo. “Embora a lei seja focada na proteção individual da mulher, o combate à violência de gênero envolve o direito coletivo, e o Estado é responsável pela prevenção e punição desta violência, não se trata apenas de um problema familiar isolado. A lei foi elaborada como política protetiva das mulheres que morrem todos os dias. Assim, quando uma mulher sofre violência doméstica, trata-se de um direito coletivo que deve ser protegido”, enfatiza a advogada.
VIOLÊNCIA EM CASA
De acordo com o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher do Ministério das Mulheres, em 2025, 71,6% das violências contra mulheres notificadas ocorreram dentro de casa, geralmente, sem câmera para registro de imagens do crime e sem testemunhas, que também poderiam gerar provas.
“Esperar provas robustas em uma situação de violência doméstica, em que normalmente a vítima está sozinha na sua casa, é a mesma coisa que dizer que nunca haverá punição para aquele homem ou que teremos que abrir mão da nossa privacidade, da nossa intimidade, instalar câmeras na nossa casa, instalar câmeras nos nossos óculos, ter gravação contínua nos celulares para que filmem 24 horas. É quase como culpar a vítima sobre um crime que lhe foi imputado”, exemplifica a advogada.
Ela lembra que, mesmo com a Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, que define medidas protetivas, penalidades mais rigorosas para agressores e políticas públicas de prevenção e apoio às vítimas, o número de feminicídios tem aumentado anualmente, no Brasil. Em 2024, foram registrados 1.492 no país, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma média de quatro por dia. O número é o maior desde 2015, quando esse crime foi tipificado. Também foram registradas 3.870, tentativas de feminicídios no mesmo ano. Segundo o documento, 121 mulheres, mesmo com medidas protetivas de urgência ativas contra seus agressores, foram mortas em 2023 e 2024. Além disso, mais de 100 mil registros de descumprimento de medidas foram notificados em 2024, um aumento de 10,8% em relação ao ano anterior.
A especialista ressalta que esses números podem ser ainda maiores, já que muitas vítimas não registram boletim de ocorrência. “Essa decisão cala inúmeras vozes de mulheres que tentam todos os dias na delegacia da mulher e em outras tantas delegacias do país denunciar os seus algozes e acabam voltando para casa, porque o próprio delegado fala: ‘Mas você não tem prova sobre isso, é melhor você voltar para casa’. E nem iniciam a investigação nem sugerem a busca de um laudo psicológico, que já provaria o que essa mulher passou, além de, claro, laudos físicos.”
Para ela, essa decisão é um retrocesso ao direito da mulher. “Uma vez que a vítima é revitimizada milhares de vezes, porque a palavra dela sempre vale menos do que a ausência de provas intencionais feitas pelos homens. É a lei dos homens libertando homens”, enfatiza Las Casas.
COMO BUSCAR AJUDA
Em âmbito estadual, a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) informa, em nota, que desempenha, como função precípua, a investigação criminal com o objetivo de apurar a autoria, a motivação e as circunstâncias dos crimes registrados em suas unidades, entre eles os praticados contra a mulher. Atualmente, segundo a corporação, são 70 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams) em todo o estado.
Em Belo Horizonte, as mulheres podem buscar atendimento na Delegacia de Plantão Especializada em Atendimento à Mulher; na Casa da Mulher Mineira e no Ponto de Atendimento à Mulher na Câmara Municipal. Além disso, as denúncias podem ser feitas por meio do número 197, canal direto da Polícia Civil.
A corporação reforça ainda que toda mulher vítima de violência sexual deve procurar a delegacia mais próxima para registrar a ocorrência.
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Em relação às medidas protetivas de urgência em cidades do interior, a PCMG informa que podem ser pedidas nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e em qualquer Delegacia da Polícia Civil de Minas Gerais. O pedido também pode ser feito na Delegacia Virtual, no site delegacia virtual.