“É uma negligência muito grande você ter um tanque vazando, envenenar tantas pessoas e não ser responsabilizado por isso”, desabafou Mirza Quintão Utsch, ao comentar a decisão da Justiça de absolver os dez réus do processo criminal sobre a contaminação de cerveja da Backer que provocou a morte de ao menos 10 pessoas e deixou sequelas graves em 19. Mirza é filha de Antônio Márcio Quintão de Freitas, que morreu no início de 2020 depois de tomar duas garrafas da cerveja Belorizontina, antes da virada do ano. A sentença, divulgada na terça-feira, foi dada pela 2ª Vara Criminal de Belo Horizonte. Apesar de caber recurso, e poder ter uma reviravolta nas próximas instâncias, a decisão é mais um revés para vítimas e familiares que, quase seis anos depois da trágica série de intoxicações, ainda não receberam nenhuma indenização por parte da empresa.


No início da noite de terça-feira, o Tribunal de Justiça de Belo Horizonte informou que o juiz Alexandre Magno de Resende Oliveira absolveu os três sócios-proprietários da Cervejaria Três Lobos, responsável pela Backer, e de sete engenheiros e técnicos que atuaram na produção da bebida no processo criminal sobre o caso. A sentença reconheceu a contaminação, mas apontou que o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) não individualizou as condutas dos réus, acusados de lesão corporal, homicídio e tentativa de homicídio culposo por meio de contaminação de alimentos.

Em entrevista ao Estado de Minas, Mirza confessou que ela e as irmãs foram pegas de surpresa pela decisão desfavorável aos afetados pela contaminação. A filha de Antônio, que acompanhou a rápida evolução da falência dos rins do pai, afirmou que acreditava em uma condenação. Agora, a família com a tramitação na segunda instância. De acordo com Mirza, durante as fases de apresentação de provas foram entregues garrafas da cerveja contaminada, laudos de exames de sangue comprovando a existência de dietilenoglicol e laudos da necropsia atestando a presença do composto tóxico no organismo de seu pai. “Prova não faltava. E pela decisão, ele foi mesmo envenenado. Agora, não condenar quem fez isso é que foi muita surpresa pra gente. Ficamos muito indignadas, achando uma impunidade muito grande”, desabafa.


Ciro Chagas, advogado da família Quintão, afirma que seu escritório, que atua como assistente de acusação no processo criminal, vai recorrer da decisão da 2ª Vara Criminal. “Dizer, a essa altura, que não é possível identificar as provas que trariam a responsabilidade das pessoas é uma contradição absurda. Nós iremos apresentar um recurso de apelação assim que a sentença for publicada”, adiantou. Procurado, o Ministério Público de Minas Gerais disse que ainda não foi informado da decisão de absolvição dos réus.


Já a defesa dos réus afirmou que sempre confiou na inocência de seus clientes. “E espera que, com a absolvição, possam enfim sentir o alívio que lhes foi negado ao longo deste processo criminal exaustivo e desgastante para todos os envolvidos”.


FALTA DE APOIO


Para além da nova decisão no processo criminal, vítimas da intoxicação pela cerveja Belorizontina e seus familiares ainda enfrentam uma constante batalha para receber algum apoio da Cervejaria Três Lobos, responsável pela Backer. Em um texto à imprensa, o professor de psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Cristiano Mauro Assis Gomes, uma das vítimas, contou que auxílio-saúde, até então garantido pela empresa, foi interrompido há meses, o que tem causado “grande dificuldade a pessoas que ainda sofrem com sequelas graves”. “Nós, como vítimas, precisamos que a empresa tenha condições de cumprir os acordos já homologados, retomar o pagamento do auxílio-saúde e honrar as indenizações”, escreveu o professor.


Por sua vez, Mirza cita, ainda, que desde que o pai foi internado e que houve a confirmação do que provocou seu quadro de saúde, a cervejaria não procurou a família em nenhum momento. “Meu pai não foi nada para eles. Eles não entraram em contato para saber se aconteceu alguma coisa, para negociar, nem para falar da situação”.


O advogado da família Quintão confirma que nenhuma das vítimas que entraram com ações cíveis individuais ou públicas receberam ressarcimento após os envenenamentos. Ele explica que, apesar de existirem sentenças favoráveis ao pagamento de indenizações às famílias, como é o caso de Mirza e suas irmãs, a Três Lobos entrou em regime de recuperação judicial e, assim, pode renegociar dívidas com credores, incluindo as pessoas afetadas pelo vazamento dos compostos tóxicos.


FILA DE CREDORES


“Existe uma fila de credores, todo um trâmite burocrático, com desconto significativo em eventuais débitos”, explica. O resultado é que, mesmo que vençam judicialmente, as vítimas receberão valores muito inferiores àqueles a que teriam direito.


Em seu site, a Cervejaria Três Lobos informa que em junho de 2023 teve seu pedido de recuperação judicial deferido pelo juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de BH. Na nota, a empresa, por meio de um escritório de advocacia, afirma que a medida teve como objetivo auxiliar a superar a “situação de crise econômico-financeira, protegendo a atividade empresarial e sua força de trabalho”.


“A recuperação judicial da Três Lobos tem ainda como objetivo viabilizar o custeio e manutenção das necessidades prementes das pessoas que sofreram as consequências diretas do acidente, bem como as eventuais indenizações arbitradas em razão do evento”, informa.


FALÊNCIA RENAL


Antônio Márcio Quintão de Freitas foi uma das 10 pessoas que morreram em consequência da intoxicação por mono e dietilenoglicol encontrados em alguns lotes da Belorizontina, no fim de 2019. Os produtos eram usados para o resfriamento de tanques em que as bebidas eram armazenadas. A investigação da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) confirmou que em alguns equipamentos havia furos que permitiram a contaminação da bebida pelas substâncias tóxicas, consideradas impróprias para uso na indústria alimentícia.


Na época, próximo ao Natal, a família da vítima aproveitou a promoção de um supermercado da capital e adquiriu a cerveja. Depois das festividades, em 29 de dezembro de 2019, Antônio consumiu duas garrafas da bebida. No dia seguinte, ele começou a passar mal e foi internado. Em 31 de dezembro, o idoso já fazia hemodiálise após os médicos constatarem falência renal. Quinze dias depois da internação, o pai de Mirza morreu. “Meu pai sofreu demais. Ele teve parada cardiorrespiratória e precisou ser ressuscitado. Recebeu plasma de mais de 70 pessoas. O corpo dele foi se degradando ao longo dos 15 dias de internação”, conta Mirza.


Assim como Antônio, grande parte das vítimas da Backer teve como sequela da intoxicação a falência dos rins. Vanderlei de Paula Oliveira foi uma das primeiras vítimas da contaminação na cerveja. Em fevereiro de 2019, quase um ano antes das primeiras investigações que relacionaram a Belorizontina à intoxicação de consumidores, ele deu entrada em um hospital, onde ficou internado por cinco meses, sendo três na Unidade de Terapia Intensiva. O caso foi analisado e faz parte da lista das vítimas incluídas nos processos contra a Backer.


Morador de BH, o especialista em segurança da informação conta que costumava tomar a Belorizontina e relacionou os sintomas que o deixaram hospitalizado à cerveja após o caso ganhar repercussão. Ainda hoje, Vanderlei trata as sequelas da contaminação.


“Foi um tratamento que não tinha protocolo. Tentamos todos os tratamentos possíveis de fisioterapia e de fonoaudiologia. Houve evoluções, mas ainda tenho problemas de mobilidade e de expressão. Até o final do ano passado eu era dialítico, fazia hemodiálise quatro vezes por semana. No fim de 2024, o processo de transplante de um dos meus irmãos foi concluído e ele conseguiu me doar um rim”, contou Vanderlei durante a fase de instrução do processo criminal. Ele ainda ressaltou o fato de ter passado pela pandemia de COVID-19 com um processo de isolamento ainda mais rígido devido à imunossupressão.


ACORDO


Em julho de 2023, um acordo homologado entre o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e a Cervejaria Três Lobos, dona da Backer, com o intuito de indenizar as vítimas só contemplou nove pessoas em um primeiro momento. A decisão resultou na extinção da ação civil pública que tratava da indenização dos intoxicados. Os termos firmados preveem um pagamento de danos extrapatrimoniais individuais na casa dos R$ 500 mil para cada vítima e mais R$ 150 mil para cada familiar de primeiro grau. Naquele momento, o registro era que pelo menos 29 pessoas foram intoxicadas e morreram ou tiveram sequelas pelo consumo da bebida.

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O promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de Belo Horizonte, Fernando Ferreira Abreu, explicou, na época, que a maior parte das vítimas entrou com ações individuais, mas ainda podiam aderir ao acordo, desde que a perícia comprovasse nexo de causalidade entre a contaminação e os danos à saúde causado aos indivíduos e fosse reconhecida pela Central de Apoio Técnico (Ceat) do MPMG. De lá para cá, entretanto, o processo de recuperação judicial da Backer resultou também no não pagamento desse acordo.

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