Uma mulher de 43 anos é agredida pelo marido com socos, chutes, esfaqueada e jogada da escada em Contagem. Uma jovem de 18 se esconde no banheiro e liga para a mãe pedindo ajuda para sair do cárcere privado em que era mantida pelo namorado, em Nova Lima. Estes são apenas dois casos de violência contra a mulher registrados no último fim de semana na Grande BH. De acordo com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp-MG), de janeiro a setembro deste ano 117.219 foram notificados no estado. No Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher, especialistas ouvidos pelo Estado de Minas discutem os desafios no combate a este tipo de violência. No âmbito dos municípios, iniciativas se multiplicam. Entre elas, o estabelecimento de multas para agressores, que, segundo especialista, tem contornos inconstitucionais.
O grau da violência dos últimos casos chama atenção. A mulher de 43 anos é uma padeira, vítima de agressão e tentativa de feminicídio, na noite de domingo (23/11), pelo marido, de 40, no Bairro Jardim Laguna, em Contagem. Segundo a Polícia Militar, além de agredi-la com socos e chutes, o homem tentou quebrar o pescoço dela, a jogou de uma escada e depois a esfaqueou. O motivo, segundo a vítima, seria uma discussão após ela se recusar a entregar uma quantia em dinheiro exigida pelo marido. No sábado (22/11), uma equipe da Polícia Militar resgatou uma jovem de 18 anos, grávida de um mês, mantida em cárcere privado pelo namorado, de 25, no Bairro Honório Bicalho, em Nova Lima. A vítima contou aos militares que precisou se esconder no banheiro para ligar para a mãe e pedir ajuda, já que o namorado não deixava que ela usasse o celular ou saísse da casa.
Também chama atenção a escalada nos números ano a ano. De janeiro a setembro deste ano, foram registrados 117.219 casos de violência física contra a mulher no estado, segundo a Sejusp-MG. No mesmo período do ano passado foram 114.336 notificações e em 2023, 113.238 casos.
A Lei Maria da Penha responsabiliza os municípios pela implementação de políticas públicas para prevenir, coibir e combater a violência doméstica e familiar contra a mulher, assegurando condições para o exercício dos direitos humanos das mulheres. Entretanto, eventuais leis não podem invadir a competência da União para tratar de Direito Penal.
Em 29 de outubro, o prefeito Douglas Melo, de Sete Lagoas, na Região Central, sancionou a Lei 10.376, aprovada na Câmara Municipal da cidade, que institui mecanismos de punição administrativa para autores de violência contra mulheres em âmbito municipal. Pela legislação, o agressor estará sujeito a multa no valor de dois salários mínimos. Em caso de reincidência, esse valor pode dobrar, conforme a gravidade da infração e da capacidade econômica do infrator. Ainda segundo a legislação, as sanções administrativas são aplicáveis sem prejuízo de responsabilidades civis e penais. Os valores arrecadados com as multas serão destinados ao Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Sete Lagoas e ao Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial.
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Em entrevista ao Estado de Minas, a secretária da Mulher de Sete Lagoas, Karine Araújo, explica que, apesar de a lei estar em vigor, ainda precisa de regulamentação, a ser feita por decreto. “A legislação é aprovada na Câmara e cabe ao prefeito aprovar ou vetar. Nossa iniciativa foi a aprovação porque achamos a regra de muita valia. A Lei Maria da Penha prevê que os municípios contribuam no enfrentamento à violência contra mulher e que podem criar mecanismos municipais”, afirmou.
Segundo a secretária, há pontos na legislação que precisam ser explicitados, como por exemplo, para a aplicação é preciso uma sentença condenatória transitada em julgado do agressor. “Estamos discutindo na regulamentação se essa aplicação da punição será via Poder Judiciário em parceria conosco ou se vamos criar uma junta de julgamento. Estamos construindo o decreto para regulamentação. Só depois vai ser possível colocar em prática.”
O Executivo Municipal tem reuniões agendadas com o Poder Judiciário para definir como será a aplicação. “Se eles concordarem de a multa sair na sentença, vamos ter que fazer uma parceria. Os processos da Lei Maria da Penha, via de regra, correm em segredo de justiça. Vamos precisar que o Judiciário nos encaminhe as sentenças condenatórias definitivas para poder prosseguir com a aplicação de qualquer multa ou definir que eles vão fazer essa aplicação na sentença e caberia ao município a cobrança administrativa”, ressalta.
A secretária diz ainda que a lei, além de coibir a prática da violência doméstica, tem caráter educativo. “Quando pesa no bolso, vemos uma intenção maior das pessoas de pararem de praticar o ato porque ele (o agressor) tem que fazer o pagamento. Os agressores precisam mais de ações educativas do que punitivas. Vemos a Lei Maria da Penha avançando. Aqui em Sete Lagoas temos tentado avançar nesse sentido, visando à educação”, pontua.
Segundo ela, os homens punidos pela Lei Maria da Penha no município já participam de grupos de discussão e palestras sobre violência e machismo estrutural. “Nossa intenção é, além de contribuir com mais uma punição dentro da Lei Maria da Penha, dos mecanismos de enfrentamento a violência, colaborar com a função educativa do pagamento da multa, para que possamos ter uma cidade mais segura. Essa é a intenção da administração pública, trazer cada vez mais segurança e ações para somar a favor dos direitos das mulheres.”
CONSTITUCIONALIDADE EM QUESTÃO
Ouvida pelo Estado de Minas, a presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA), Cristiana Fortini, avalia que a lei municipal de Sete Lagoas seria inconstitucional, por invadir a competência da União para tratar de Direito Penal.
A advogada especialista em Direito Administrativo e professora da UFMG ressalta que a Lei Maria da Penha prevê o ressarcimento do agressor ao Sistema Único de Saúde (SUS) em caso de atendimento à pessoa agredida. “Isso é algo que poderia ser disciplinado pelo município no âmbito da competência suplementar acerca da saúde pública, e com amparo em legislação federal.”
Porém, ela observa que o ressarcimento é diferente de uma multa. “A multa é uma punição que precisaria estar prevista na Lei Maria da Penha e não em lei municipal. O fato de o município ter gastos não justifica a criação da multa.”
A iniciativa de Sete Lagoas não é a única em Minas. Em Poços de Caldas, no Sul do estado, uma lei similar, que determina multa administrativa para agressores de vítimas de violência doméstica ou familiar, foi sancionada em 2021. Porém, segundo a secretária de Promoção Social do município, Marcela Carvalho, afirmou ao Estado de Minas, a lei não está sendo aplicada, atualmente, por uma divergência sobre sua aplicabilidade.
“É o Judiciário que condena o agressor e aplica a multa. Quem determina para onde vai esse recurso também é o juiz. O que temos feito no município é uma articulação com o Judiciário para que esse valor das multas seja revertido para o Fundo de Assistência de Políticas Públicas para as Mulheres, que está sob a gerência da Secretária de Assistência”, explica.
Em Itaúna, na Região Centro-Oeste de Minas, foi promulgada, em 2023, uma lei que também estabelecia multa administrativa para os agressores. Porém, sua vigência está suspensa desde 2024, por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. Em Araguari, no Triângulo, a prefeitura começou a notificar agressores e cobrar o ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS) pelos custos gerados no atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica na cidade, em junho deste ano. O Estado de Minas entrou em contato com o Executivo Municipal para saber como está a aplicabilidade do decreto, mas não recebeu retorno.
A advogada Cristiana Fortini cita ainda uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que em 2022 considerou inconstitucional uma lei do município de Tietê que previa multa administrativa para agressores de mulheres. Para o relator do caso, desembargador Francisco Casconi, a lei municipal efetivamente substituiu, e não suplementou ou complementou a lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) já existente, conforme determina o dispositivo federal.
CAMINHOS MAIS CONCRETOS
A pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Isabella Matosinhos, acredita que é preciso refletir sobre os motivos que levam à criação de leis municipais deste tipo. “Chama a minha atenção que a estratégia escolhida para enfrentar o problema seja criar uma lei, quando já temos, em âmbito federal, uma legislação extremamente robusta e reconhecida internacionalmente. A Lei Maria da Penha é amplamente considerada uma das legislações mais avançadas do mundo, inclusive pela ONU (Organização das Nações Unidas). Além de estabelecer respostas penais, ela define de forma abrangente o que é violência de gênero– não só a violência física, mas também a sexual, psicológica, moral e patrimonial”, afirma.
A especialista destaca ainda um elemento central do dispositivo: as medidas protetivas de urgência, que não têm rol exaustivo e podem ser moldadas pelo juiz conforme a necessidade de cada caso. “Sabemos que medidas protetivas salvam vidas. Diante disso, a impressão que tenho é que, em vez de criar leis municipais, seria mais eficaz que as gestões locais se concentrassem em implementar plenamente o que já existe na Lei Maria da Penha — uma legislação bem construída, consistente e capaz de orientar políticas de prevenção, que são fundamentais.”
Para ela, mais do que inovar normativamente, faria mais sentido investir em execução, articulação de serviços, estrutura de atendimento e monitoramento das medidas já previstas, que seriam caminhos mais concretos para reduzir a violência contra mulheres.
AÇÕES NA CAPITAL
As situações de emergência são justamente o foco de um aplicativo implementado pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). O app permite que mulheres vítimas de violência doméstica e familiar acionem a Cabine Lilás do Centro Integrado de Operações (COP) em situações de alto risco, com o envio imediato de uma viatura da Guarda Civil Municipal. Em fase de testes pela Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção, o APP EbodyGuard foi instalado nos celulares de 80 pessoas assistidas pelo Proteja Mulher, do Grupamento Especializado de Proteção à Mulher da Guarda.
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Outras iniciativas da capital complementam o combate à violência contra a mulher, em consonância com a Lei Maria da Penha. Entre elas estão a Lei do "Sinal Vermelho" (Lei nº 11.518/2023), que permite que a mulher faça um X vermelho na palma da mão para pedir socorro em estabelecimentos comerciais que aderiram ao ao programa; vedação de nomeação para de pessoas condenadas com base na Lei Maria da Penha ou por crimes sexuais para cargos comissionados ou funções de confiança na administração pública municipal direta e indireta (Lei nº 11.813/2025); criação do Grupamento Guardiã Maria da Penha, especializado na proteção e acompanhamento de mulheres que têm medidas protetivas de urgência, atuando 24 horas por dia, entre outras ações.
