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Antologia poética de palestino Ghayath Almadhoun ganha lançamento em BH

A ideia é se manifestar publicamente, como agentes do cenário literário, contra a opressão e a guerra na Faixa de Gaza

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Mônica de Aquino

Especial para o EM

“A morte se parece com o meu rosto”, escreve o poeta palestino contemporâneo Ghayath Almadhoun. E o rosto de que ele fala parece menos o que podemos entrever, através dos seus textos, do que o que ele vê, mirando-se num espelho. Almadhoun nasceu em um campo de refugiados na Síria, em 1979, e emigrou para a Suécia em 2008. Vive, há alguns anos, em Berlim. Seus textos são também sobre este trânsito em que ele é sempre o outro para si mesmo.


Estrangeiro em todos os lugares. O que lista motivos para não estar presente, o que vê interrompida a estrada entre o seu poema e Damasco. O que sobreviveu e partiu. Mas o que significa sobreviver? “Você diz que eu sobrevivi à guerra, não, minha querida, ninguém sobrevive à guerra, unicamente eu não morri, permaneci vivo apenas”, ele adverte, num dos últimos poemas do livro.


Mas se sobreviver não é mais do que permanecer vivo, é, por outro lado, carregar em si todos os que não sobreviveram; e se a guerra transformou seus livros em cemitérios, como ele escreve em outro poema, transformou-os também em lugares onde é possível contrariar a morte e continuar existindo como um povo. “Eu não ensinarei meus filhos a temerem os estranhos,/porque eu sou um deles,/eu não direi a eles que não falem com o homem estranho, pois aquele sou eu,/eu sou o estranho que perdeu a mão na guerra,/o viúvo cuja esposa não morreu,/o imigrante que não se afogou no Mediterrâneo (...)”


Como se desse uma volta no tempo e driblasse o massacre, aqui a esposa do viúvo está viva, aqui o imigrante não se afogou no mar. É esse compromisso que Ghayath Almadhoun parece assumir para si através da sua poesia: fazer sobreviver o que não sobreviveu e resta desprezado, destruído; transformar as ausências em presença, como se respondesse, tantos anos depois, a pergunta que Primo Levi, também ele sobrevivente e poeta, fez a si: “Você tem vergonha porque está vivo no lugar de um outro? (...) Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aquele que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocou o fundo.”


A ele, o poeta parece responder, através do tempo: “Você acredita na poesia sem que as palavras caiam no poço e na alegria sem que a culpa nos coma? E na Palestina?

”Mas se não são os sobreviventes as autênticas testemunhas (ainda conforme Primo Levi), é preciso trazê-las à página. “Não precisamos de outro túmulo para o soldado desconhecido, acredite em mim, precisamos de um túmulo para o motorista de ônibus desconhecido, aquele imigrante do Chile, que morreu sozinho em sua cama, de quem ninguém sentiu falta, ou um túmulo para o vendedor de falafel desconhecido que nasceu de barriga cheia no Sul e morreu faminto no Norte, precisamos de um túmulo grande para as mulheres desconhecidas, mulheres cujo sangue escorre pelas frestas das paredes das casas, e que tentamos esconder com tinta, cujos gemidos suaves ouvimos nas noites de verão, enquanto fingimos estar distraídos, que atravessaram a história nas pontas dos pés, para não acordar a fera (...)”.


A fera está acordada e o rosto do poeta se multiplica em estilhaços. Ghayath Almadhoun se apresenta para nós, mais uma vez: “Eu, o palestino disperso entre vários massacres, fico aqui nu, tentando vestir meu poema, na esperança de que ele esconda minhas feridas, recolho desordenadamente meus pedaços daqui e dali, para ser uma testemunha.”


E o que nós testemunhamos, do conforto das nossas casas, incapazes de uma outra nudez, através de janelas virtuais? De repente, enquanto o Ocidente desvia o olhar do massacre diário de civis na Palestina, é o nosso rosto que se parece com a guerra. O que torna também um gesto político forte a publicação do poeta Ghayath Almadhoun agora no Brasil, pelas mãos da editora mineira Ars et Vita.


“Se estivéssemos num mundo virtual/eu teria limpado o vidro da janela que dá para a tua casa com um jornal eletrônico,/e a rosa de plástico que coloquei sobre o túmulo do meu irmão /teria crescido.”, ele escreve. Mas não estamos, como lembra, diante da nossa inércia, a epígrafe do poema: “Mesmo que a janela seja virtual, os mortos são reais.”


Se “o mundo não chama as coisas pelos seus nomes (...)”, nós precisamos chamá-las – é o nosso mínimo compromisso agora.

Mônica de Aquino é poeta, professora, crítica de arte e curadora independente

Solidariedade aos palestinos

A passagem do poeta palestino Ghayath Almadhoun por  Belo Horizonte (na próxima segunda-feira), São Paulo e Rio de Janeiro é marcada por uma iniciativa de livrarias de ruas e de editora independentes brasileiras. A ideia é se manifestar publicamente, como agentes do cenário literário, contra a opressão e a guerra na Faixa de Gaza.

“Diante de tamanha violência, não cabe a indiferença. De tal modo, buscamos uma associação entre livrarias e editoras independentes para manifestar nossa solidariedade ao povo palestino. Entendendo que nossa contribuição possa ser no sentido de promover uma conscientização sobre a questão, vamos ao longo das próximas semanas realizar algumas ações para sensibilizar mais pessoas contra o genocídio do povo palestino”, diz o manifesto, que tem como participantes as livrarias Jenipapo, Quixote e do Belas e as editoras Ars et Vita e Relicário, de Belo Horizonte, e outras de São Paulo e Rio.

Nós


Nós dispersados em fragmentos, que chovemos carne, apresentamos nossas mais sinceras desculpas a cada uma das pessoas desse mundo civilizado, homens e mulheres e crianças, porque sem que fosse nosso propósito aparecemos nas suas casas seguras sem solicitar permissão, pedimos desculpas por imprimir nossos restos mortais em suas memórias brancas como a neve, e por termos manchado a imagem do ser humano natural perfeito nos seus olhos, porque, com todo o descaramento, pulamos de repente nos boletins de notícias e nas páginas de internet e de jornais, nus senão pelos nossos sangues e os restos carbonizados dos nossos corpos, pedimos desculpas a todos os olhos que não se atreveram a olhar diretamente para as nossas feridas para não ficarem arrepiados, e pedimos desculpas a todos que não conseguiram terminar o jantar depois de terem sido surpreendidos pelas nossas imagens frescas na televisão, pedimos desculpas pelas dores que causamos a todos que nos viram assim, sem embelezamento ou pontos ou remontagem dos nossos restos e partes antes de aparecermos nas telas, pedimos desculpas também aos soldados israelenses que se deram ao trabalho de apertar os botões dos seus aviões e tanques para nos transformarem em pedaços, pedimos desculpas a eles pelas imagens horríveis em que nos transformamos depois que eles apontaram as suas bombas diretamente para as nossas cabeças moles, e pelas horas que agora passarão em clínicas psiquiátricas para que possam voltar a ser humanos como eram antes de nos transformarem em pedaços nojentos, que os assombram sempre que tentam dormir, somos as coisas que vocês viram nas telas e nos jornais, e se vocês trabalharem duro para juntar esses restos como um quebra-cabeça, vocês ganharão uma imagem clara de nós, tão clara que vocês não serão capazes de fazer coisa alguma. (2008)

Você acredita em Damasco à primeira vista?


Quando estávamos na Síria, sonhávamos em retornar à Palestina. Agora, sonhamos em retornar à Síria, para podermos continuar o sonho de retornar à Palestina. Você acredita na casa que foi encontrada assassinada e nos prédios que caíram sobre as bombas e no país que foi roubado? Você acredita nos projéteis de morteiros que chovem nos sonhos e no campo de refugiados que vêm na forma de um dejá-vu e na Nakba que dorme ao nosso lado na cama? Você acredita no cheiro do café que se mistura com o gás sarin e nas sacadas que se asfixiam e nas cidades que dormem em unidades de tratamento intensivo? Você acredita na banalidade do mal e na nostalgia que olha da janela e nas casas que migraram e nos deixaram para trás?

Você acredita no início do amor e no fim da vida que passa e no suicídio das memórias? Você acredita na saudade das distâncias que há entre nós pela cama e nos nossos filhos que não nasceram e nas noites que dormem no meio do dia? Você acredita na poesia sem que as palavras caiam no poço e na alegria sem que a culpa nos coma? E na Palestina? Você acredita em vida após Damasco? (2023)

Reciclando a morte

A única razão pela qual eu não odeio o meu país é porque eu não tenho um país.


Um soldado que voltou da linha de frente com uma memória mutilada diz: “saia da frente, você não é um semáforo para ficar parado num cruzamento de duas ruas”, então reparo num buraco preto na camisa dele, e me lembro da alegria usada que herdei da minha mãe, e dos meus amigos que morreram de overdose de esperança.


Um jovem que viveu sob ameaça, e que morreu sob tortura, diz: “quando tua idade for maior que o número do teu sapato, não te importará em qual terra você morre, e sim em qual terra você vive”, então reparo nos seus dedos decepados, e me lembro da morte que reciclamos na memória de família, e dos cadáveres que transformaram meus livros em cemitérios.


Meu pai diz: “sou mais velho que Israel, e quanto à Palestina, ela se perdeu na tradução”, então reparo na Síria em que ele vive, e na Palestina que vive nele, e tento ver o copo meio cheio de sangue, a única razão pela qual a Palestina ainda está no Oriente Médio é porque não é possível carregá-la para os museus da Europa.


Abu Tammam diz: “emigre e seja renovado”, então reparo nos doze séculos entre nós, e me lembro da eternidade, os poetas viajam pelo espaço, a poesia viaja pelo tempo.


Ali Ibn Abi Talib diz: “as pessoas estão dormindo, e quando morrem elas acordam”, então reparo no tempo, e me lembro das eras, e de como passamos os dias temendo que os dias passem.


Deus diz: “a terra de Deus não era bastante ampla, para, nela, emigrardes”*, então reparo nos arames farpados que saem dos meus poemas, e me lembro do meu país que eu escondi numa mala de viagem, quando obtive a cidadania sueca, tornei-me palestino, e foi possível que eu viajasse à Palestina.


O poeta que eu era em Damasco diz: “a destruição te entristeceu ou a tristeza te destruiu?”, então reparo na minha cidade que foi comida pelo lobo, e me lembro da proporção inversa, quanto maior a matança, menor o número de testemunhas.
(2023)

* Trecho da Sura das mulheres (annissa'), ayah 97, segundo Tradução do sentido do Nobre Alcorão para a língua portuguesa. Trad. (Helmi Nasr). Medina: Complexo de impressão do Rei Fahd, 2005. (N. do T.).

Capa do livro

Capa do livro

Reprodução


“VOCÊ DEU EM PAGAMENTO O MEU PAÍS”
• De Ghayat Almadhoun
• Tradução do árabe: Alexandre Chareti
• Ars et Vita
• 168 páginas
• R$ 58
• Lançamento: Nesta segunda-feira (23 de junho), simultaneamente, nas livrarias Jenipapo (R. Fernandes Tourinho, 241, Savassi, BH) e Quixote (R. Fernandes Tourinho, 274, Savassi, BH)

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