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Alexandra Lucas Coelho sobre Gaza: 'Campo de extermínio'

Jornalista portuguesa, no Brasil para lançar "Gaza está em toda parte", afirma que seu livro é como 'uma crônica em tempo real do genocídio que estamos vendo'

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"Gaza é o maior campo de extermínio do nosso tempo.” A afirmação é da jornalista e escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, que está no Brasil para divulgar o seu mais recente livro: “Gaza está em toda parte”. Contendo crônicas e reportagens escritas entre outubro de 2023 e março de 2025, o lançamento chega simultaneamente às livrarias brasileiras e a Portugal. Aos relatos de Alexandra se somam 111 imagens, boa parte delas inéditas, registradas na Palestina.


“Esse livro pode ser visto como uma crônica em tempo real do genocídio que estamos todos vendo, apesar de os maiores horrores estarem sendo cometidos às escuras. As imagens são piores do que estamos vendo, e já estamos vendo coisas que nunca havíamos visto”, afirmou a autora na Feira do Livro, em São Paulo, no início da divulgação brasileira de “Gaza está em toda a parte”. Vencedora do Prêmio Oceanos de 2022 com a obra “Líbano, Labirinto”, ela estará neste sábado na Bienal do Livro Rio. Ainda na capital carioca, participa de três eventos até quinta-feira, quando segue para Porto Alegre e termina a incursão brasileira em Salvador, no próximo dia 4.

No livro, ela traz a mensagem do diretor teatral Ahmed Tobasi, que entrevistou em 2023 na Cisjordânia: “As pessoas judias também têm de nos apoiar, de lutar pelos seus valores e história. Não deixar esta gente israelense, sionista mudar a história dos judeus. Todos concordamos que o Holocausto foi a coisa máxima contra a vida humana. Mas, lamento, todos os dias um pequeno holocausto acontece na Palestina.” E reproduz o apelo do palestino Hossam Shabat, “jovem repórter carismático” assassinado em Gaza no dia 24 por forças de ocupação israelenses: “Não deixem o mundo olhar para o lado. Continuem a lutar, continuem a contar as nossas histórias – até a Palestina ser livre.”

Leia, a seguir, a entrevista de Alexandra Lucas Coelho ao Pensar do Estado de Minas:

Por que você afirma, no título, que “Gaza está em toda parte”?


Nunca vivemos tal horror em tempo real, a destruição de um povo e de um lugar nas nossas telas, a cada minuto, há mais de 20 meses. Um genocídio, como foram reconhecendo tantos peritos e organizações de Direitos Humanos. Toda a gente no planeta é testemunha, só quem não quer não verá. Pode escolher o silêncio, voltar costas ou negar, mas terá de viver com essa escolha. Então, isto diz respeito a cada humano, e ao que significa ser humano, viver aqui na Terra, agora.


Gaza está em toda a parte porque em toda a parte há gente ligada ao que acontece lá, que se indigna, luta nas ruas, organiza atos, escreve, partilha, escuta, acompanha os palestinos nas redes sociais, protesta contra governantes cúmplices do genocídio. Mas, além da geografia, Gaza está em toda a parte porque cada humano agora é contemporâneo da crueldade de Israel e do sacrifício dos palestinos. Uma crueldade que expõe o desfecho monstruoso do sionismo, esse fruto do anti-semitismo europeu. E um sacrifício que mostra como está vivo e é implacável o racismo da velha Europa colonial. As vidas palestinianas não importam nem a Israel nem à Europa — que foi a mãe e é a filha de Israel. E, claro, também não importam a quem já governava os Estados Unidos desde antes de Trump, e mandou a Israel todas as bombas e meios necessários a este genocídio, assegurou as condições para que ele fosse executado.


O crime deste genocídio recai sobre todos os responsáveis mundiais que ajudaram Israel ou não se opuseram, democráticos ou não (incluindo quase todos os líderes árabes).


O que as suas palavras podem fazer diante das imagens que chegam de Gaza?


Além das palavras, “Gaza Está em Toda a Parte” tem duas sequências de imagens, decisivas na construção do livro. Vejo-as como a parte mais livre, uma montagem silenciosa, sem texto (as legendas, detalhadas, aparecem só no fim do livro). Montei-as sempre em dupla página, a partir de milhares de fotografias que fiz na Palestina/Israel depois do 7 de Outubro e de um conjunto em Gaza antes do 7 de Outubro.

O que fazem as palavras e as imagens será com cada leitor. O livro pode ser visto como uma crônica deste genocídio, com as datas por cima do texto, avançando até abril de 2025. Linha do tempo, arquivo em movimento, um pedaço do tempo e do lugar. Ligar pontos para pensar, também a partir da minha relação de mais de 20 anos com aquela parte do mundo. E criar relações livres entre imagens, e imagens e texto, dando a imaginar.

Como vê a posição do governo brasileiro nesse cenário?


Lula da Silva aparece neste livro como uma voz rara entre líderes mundiais por bem cedo ter sido capaz de criticar duramente Israel, evocando o Holocausto. Uma evocação que não só pode como tem absolutamente de ser feita. O argumento do Holocausto — que tolhe tantas bocas, por medo de serem abusivamente acusadas de anti-semitismo — tem de ser invertido: é justamente por seis milhões de judeus não terem sido salvos que não podemos falhar mais uma vez. Os judeus exterminados de ontem são os palestinos exterminados de hoje. A Europa foi criminosa então e é criminosa agora. Eu escrevera sobre isto nas semanas anteriores às primeiras declarações de Lula, e quando o ouvi falar senti mais uma vez a força da sua extraordinária intuição. Um estadista raro. Mas falta cortar todas as relações com Israel. Isolá-lo como o estado pária, destruidor, que é. Só assim Israel será travado.


Como a guerra que Israel iniciou com o Irã pode impactar no que está acontecendo em Gaza?


Com essa nova frente, a morte apocalíptica de Gaza eclipsa-se das notícias. Que conveniente para Israel — e para a Europa, incluindo o chanceler alemão chegar ao ponto de agradecer a Israel fazer o trabalho sujo de bombardear o Irão. Um novo auge do cinismo alemão.

Em “Gaza está em toda parte” não tenho palavras brandas para o regime iraniano, tiranos de um povo com uma cultura extraordinária. Espero viver para ver os iranianos livres das prisões políticas, da ameaça da forca, da repressão geral. A liberdade não é uma luta seletiva. Não é possível condescender com a tirania dos aiatolás. E, ao mesmo tempo, é preciso ver esta guerra lançada por Israel como mais uma violação de toda a lei internacional, que só pode ser condenada por quem acredita nela. Uma guerra que mostra como as mesmas forças armadas israelenses que estranhamente falharam ali tão perto a 7 de Outubro agora podem, a grande distância, matar com precisão cientistas nucleares. Não evitando, claro, que centenas de civis iranianos já tenham sido mortos (para cerca de 25 mortos na retaliação do Irã contra Israel, onde o sistema de defesa e abrigos é muito mais potente).


Entretanto, de Gaza chegam-nos agora apenas relances de um genocídio às escuras, com centenas de palestinos assassinados — por mercenários ao serviço de Israel, disfarçados de agência humanitária — quando desesperadamente tentam chegar a um saco de farinha.


Depois de matar mais de 220 jornalistas palestinos, e de continuar a proibir a imprensa do mundo de entrar em Gaza, Netanyahu lançou assim contra o Irã a guerra com que sonhava há muito, e que o ajuda a salvar a pele mais uma vez nas sondagens. Pois 82 por cento dos judeus israelitas apoiam estes ataques. Exatamente o mesmo número que, numa sondagem anterior, apoiava a limpeza étnica dos palestinos de Gaza. O que mostra como o problema está muito para além de Netanyahu, é a grande maioria de Israel. Um estado doente, alienado, que não vai recuperar do que está a fazer, que é mais odiado hoje nas ruas do mundo do que qualquer outro. Um estado que se auto-destruiu pela destruição inflingida a outros. O futuro será filho de Gaza.


De tudo o que você viu em Gaza, o que não sai da sua cabeça?


A incrível força dos palestinos, que nunca desistiram de resistir, como não desistiam da beleza ou do sentido de humor. Nem mesmo nas ruínas de Gaza desistiram de fazer tranças às crianças, tocar instrumentos, dançar a dabka, dizer poemas de cor ou cozinhar com graça, quase sem nada. São os palestinos que desde o 7 de Outubro nos mostram o melhor do humano, o sobrehumano mesmo. Mostram-nos do que são capazes e do que nós não somos capazes. E de como o menos-que-humano está no governo de Israel e de boa parte do mundo.

Alexandra Lucas Coelho, autora de
Alexandra Lucas Coelho, autora de Rui Gaudêncio/divulgação


Trecho de “Gaza está em toda parte”

De Alexandra Lucas Coelho

26 de dezembro de 2023
“Still alive: Gaza-Belém-Jerusalém”

“Perdi a minha casa. A casa da minha família. A casa da minha irmã. A casa do meu irmão. Tudo aquilo a que chamo casa. Estamos num estado horrífico. Figuras como zumbis.”
Crônica em Jerusalém Oriental

Na noite de Natal, eu estava na praça da Basílica da Natividade com o telefone na mão quando chegou um áudio de W. em Gaza.

Desde o 7 de Outubro partilhei muitas mensagens dele nas redes sociais, para que as pessoas tivessem acesso direto às palavras. W. não estudou jornalismo, vem das ciências, mas é um observador nato. A 7 de Outubro, as filhas dele já moravam em países vizinhos (tal como a mãe delas). W. estava na Cidade de Gaza com outros parentes. Os bombardeamentos forçaram-no a ir para Sul, passou muito tempo no exterior de um hospital em Deir Al Balah, a meio da Faixa, com a família da irmã, que ele ajudou a tirar dos escombros. Mandou-me fotografias dessa irmã, tão parecida com ele, cheia de escoriações, e de uma das netas dela, uma menina linda em estado de choque, também com feridas na cara, e a mão enfaixada. Quase perdeu a mão. Foi operada naquelas condições terríveis, tiraram tecido de outra parte do corpo. W. adora esta sobrinha-neta, também me mandou alguns dos desenhos que ambos faziam, acampados ali, com tão pouca comida, água, higiene. E veio o frio, a chuva, tendas de plástico, sem roupa de inverno. Cada vez mais fome. Desidratação, doenças. Então, W. decidiu ir a outra zona à procura de comida, Nusseirat. Mas depois, com o avanço da invasão terrestre, não conseguiu voltar para junto da família.


Cheguei a Jerusalém Oriental na noite de 10 para 11 de dezembro e desde então não tinha tido notícias de W. Não sabia onde ele estava. Se ainda estava. Nas primeiras semanas da guerra, por vezes a primeira mensagem dele era: “Am still alive.” Como também nas mensagens de R., o jornalista com quem trabalhei na última ida a Gaza. E quem siga os palestinos nas redes reconhecerá estas palavras em inglês. Os milhões de seguidores, por exemplo, de Bisan Owda, habituaram-se a ouvi-la dizer: “I am still alive.” Ela, eles, todas essas pessoas que são a nossa linha de vida com Gaza. Ou a nossa linha da vida, mesmo.


Então, ao fim de 15 dias sem saber nada de W., aquele áudio caiu ali em Belém, na noite de Natal, e pela primeira vez desde 7 de Outubro trocamos mensagens estando ambos na Palestina.


Transcrevo as palavras dele:


“Ainda estou funcional. A guerra está no seu auge. Perdi a minha casa. A casa da minha família também. A casa da minha irmã. A casa do meu irmão. Tudo aquilo a que chamo casa. Perdi contato com aquele meu irmão que não tinha qualquer possibilidade de deixar Gaza. As idF [tropas de Israel] estão deliberadamente a forçar dois milhões e meio à fome e à sede. Estamos num estado horrífico. Figuras como zumbis. Ainda estou em Nusseirat. O exército exigiu que partíssemos daqui, e o prazo de 72 horas acabou esta noite, mas não há transportes, querida amiga. Tentei tudo o que podia para partir ontem e hoje. Vamos ver o que acontece amanhã. Espero conseguir chegar a Deir Al Balah amanhã.” A mensagem seguinte é uma fotografia de ruínas: “Esta é uma imagem do meu bairro há duas semanas. Agora, está tudo arrasado.” Digo-lhe que estou em Belém, e toda a Belém está com Gaza, sem celebrar o Natal. Ele promete não perder a esperança. “Nunca. Inshallah.”


A última mensagem foi às 21h30. Já eu estava junto daquela incubadora com um Jesus queimado pelas bombas em Gaza.6 E não tenho mais notícias de W. até ao momento em que escrevo esta crônica, em Jerusalém Oriental Ocupada, dos lugares mais belos, mais tristes do mundo. Antes de a terminar, porém, como se adivinhasse, escreve-me R., o outro amigo de Gaza, que há muito não respondia.


As mensagens dele: “Bombardeamento em Maghazi [junto a Deir Al Balah], não muito longe de mim. Decidi sair daqui, mas não acho um lugar onde ficar mos. Parece que eu e os meus filhos vamos dormir na rua, não há um lugar em Gaza. Muita gente começou a fugir, estou a tentar, mas não sei para onde ir.”


Quantas vezes já os palestinos disseram isso a alguém. Ou teriam dito se houvesse WhatsApp, no meio de mais um bombardeamento, mais um êxodo, desde muito antes de R., W. ou eu termos nascido.
E todos já temos cabelos brancos.

Reprodução


“Gaza está em toda parte”
• De Alexandra Lucas Coelho
• Editora Bazar do Tempo
• 400 páginas e 111 fotografias (27 coloridas)
• R$ 118,00
• Ebook: R$ 88,00

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