MEIO AMBIENTE

Livro de Dom Phillips finalizado por amigos mostra caminhos para Amazônia

Obra póstuma do jornalista assassinado no Vale do Javari em 2022 encontra soluções com os próprios moradores da floresta tropical

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Há pouco mais de três anos, o jornalista britânico Dominic Mark Phillips fazia uma das suas dezenas de expedições para um livro que pretendia escrever sobre como a população da Amazônia preservava a região. Dom, como era mais conhecido, queria ouvir de indígenas, ribeirinhos e pequenos produtores quais eram suas soluções para “salvar” a floresta tropical. O jornalista se dedicava ao assunto havia mais de uma década, mas a obra de sua vida foi interrompida pela realidade brutal de uma das regiões mais remotas do mundo.

Em viagem pelo Vale do Javari, próximo à fronteira com Peru e Colômbia, Dom e seu amigo Bruno Pereira, um dos principais especialistas em comunidades indígenas isoladas, foram emboscados e assassinados por um grupo de pescadores ilegais - que aguardam julgamento, com o mandante sendo denunciado somente na última semana. O crime ganhou as manchetes do mundo todo, mas era sintomático de uma região que faz dos seus protetores mártires.

Dom pretendia que o título do seu livro fosse “Como salvar a Amazônia: perguntem a quem sabe”, revelando a natureza comunitária que ele acreditava ser necessária para resolver os inúmeros problemas que ele passou a conhecer bem nas décadas em que se dedicou ao assunto. Com a morte, a viúva Alessandra Sampaio reuniu um grupo de jornalistas e amigos de Dom para trabalharem no manuscrito incompleto e lançar “Como salvar a Amazônia: uma busca mortal por respostas”(Companhia das Letras).

O resultado é a viagem por uma diversidade cultural que coloca o leitor no lugar de quem vive e trabalha em harmonia com a Amazônia - uma obra inovadora e poderosa sobre a defesa dos povos tradicionais, e que redefine a maneira de pensar o desenvolvimento econômico na floresta. Dom tratou a floresta sem demagogia ao reconhecer que o capitalismo predatório não é solução para os problemas econômicos da região, mas que é necessário pensar a sustentabilidade de maneira alinhada com as necessidades das 20 milhões de pessoas que moram na floresta.

Em entrevista ao Estado de Minas, o jornalista britânico Tom Phillips, colaborador do livro e autor do podcast “Missing in the Amazon”, do The Guardian, sobre o assassinato de Dom e Bruno, ressalta que “é uma realidade clara” a necessidade de conciliar a economia regional com a preservação da floresta. “Destruir a floresta e todo o potencial bioeconômico, o conhecimento científico, não é um bom caminho. É preciso criar oportunidades e apoio, que felizmente nos últimos três anos tem tido um pouco mais se comparado com o governo anterior”, disse.

Para Tom, o livro é otimista ao não fornecer uma resposta definitiva sobre os problemas da Amazônia, o que não era a pretensão do amigo Dom. “O livro dá pistas, e a mais importante é ouvir os povos indígenas da Amazônia, que foram ignorados por séculos, e a importância de escutar as pessoas que estão na floresta e dependem dela”, afirmou.

O jornalista ainda falou sobre os processos para completar a obra da vida de Dom e a relação do amigo com Bruno Pereira. Para ele, o indigenista é o coração do livro. “Quando o Dom estava pensando sobre a resposta da pergunta “Como salvar a Amazônia: pergunte às pessoas que sabem”, o Bruno teria sido uma dessas pessoas”. Leia a entrevista de Tom Phillips ao Pensar.

O livro foi finalizado graças ao trabalho de diversos colaboradores. Como foi a decisão de dar sequência ao trabalho do Dom?

Foi uma decisão muito natural. Nossa comunidade de jornalistas, brasileiros e estrangeiros, se reuniu nas semanas após o crime e conversamos muito sobre o que a gente deveria fazer, como reagir. A resposta de todo mundo foi trabalhar mais ainda, nos esforçando para cobrir a Amazônia, continuar a nossa cobertura, e usar essa visibilidade que, infelizmente, o crime deu para a região para contar mais histórias.

Essa decisão teve vários desdobramentos, como meu trabalho no The Guardian que culminou no podcast e no processo do livro. O Dom tinha escrito pouco menos da metade, e um amigo muito próximo dele no Rio, o Andrew Fishman, da Intercept Brasil, recuperou esses planos e esses capítulos. Não poderíamos deixar a obra esquecida e resolvemos terminar. É um grupo muito grande, o Dom foi uma pessoa muito querida, e até quem não o conhecia pessoalmente queria contribuir.

Você escreveu o capítulo “Rebrotar e proteger: os defensores indígenas”. Quais dificuldades enfrentou?

O capítulo não estava escrito. Havia algumas poucas ideias no papel sobre os temas principais, focando no trabalho dos grupos de vigilância indígena que o Dom visitou, primeiro os guardiões da floresta no Maranhão, na terra indígena Araribóia, e depois no Javari. Acabou também sendo uma coisa natural, porque eu conversei muito com o Dom sobre a Amazônia e esses movimentos de vigilância e proteção. Ele tinha feito uma sequência de viagens para a área dos Yanomami, em 2019, e eu também visitei a região algumas vezes. Eu consegui fazer um casamento entre as viagens e reportagens do Dom com as minhas próprias viagens.

O capítulo acabou sendo uma mistura dos nossos trabalhos. Seu capítulo trabalha o cultivo de cacau na terra Yanomami em contraste com a invasão de garimpeiros. Como essas iniciativas comunitárias contribuem para “salvar” a região?

É um quebra-cabeça gigante. Quando o Dom foi à área Yanomami em 2019, ele tinha duas ideias. Foi o primeiro ano do governo Bolsonaro, estava começando uma invasão histórica de garimpeiros levados pela retórica do governo e o Dom queria denunciar a devastação. Mas ele nunca foi um jornalista que queria mostrar só a desgraça, mostrar só os escombros. Ele queria mostrar caminhos e apontar soluções, então, durante essa viagem que ele viu coisas terríveis, queria visitar esse projeto para entender o que os indígenas estavam criando de alternativa na ausência de ajuda. A bioeconomia e esses projetos fazem parte do processo, mas precisam de proteção e sistemas de governo para impedir essas invasões sem controle.

Chama atenção como Dom reconhece que milhões de pessoas na Amazônia precisam de oportunidades de emprego e renda. Como conciliar esse aspecto com a preservação ambiental?

Essa é uma pergunta para os governantes. É uma realidade clara que é preciso fazer as duas coisas. A região do Javari e a área Yanomami exemplificam isso, quem são esses garimpeiros? O que essas pessoas vão fazer se não estão no garimpo? Muitas vezes são homens humildes do interior que precisam encontrar alternativas. Destruir a floresta e todo potencial bioeconômico, o conhecimento científico, não é um bom caminho. É preciso criar oportunidades e apoio, que felizmente nos últimos três anos tem tido um pouco mais se comparado com o governo anterior.

É chocante ver como esses momentos políticos se traduzem em consequências concretas e reais em muito pouco tempo. Quem estava na fazendo jornalismo na linha de frente naqueles anos viu o impacto imediato, não foi uma coisa teórica, foram palavras e ações em Brasília que tiveram um impacto imediato brutal e violento. De uma certa forma, eu enxergo os assassinatos do Dom e do Bruno como uma consequência desse momento político.

O seu podcast para o The Guardian aborda muito a questão da segurança na Amazônia. O que precisa ser feito para tornar a região mais segura para quem trabalha e vive no local?

Uma das coisas principais que líderes indígenas dizem é que precisa de uma presença mais forte do Estado. Claro, é um país de proporções continentais e aquela região é muito remota, é mais perto do Peru e da Colômbia do que o centro de poder em Brasília. O fato é que não há uma presença adequada das forças de segurança, então as comunidades indígenas e funcionários do governo ficam em situação frágil.

Eles também falam da corrupção, se você não eliminar a corrupção de uma região de fronteira que tem notória presença do tráfico de drogas, uma indústria que envolve muito dinheiro, não vai mudar muito. A gente tinha uma visão inocente de que a visibilidade internacional do crime ia inaugurar uma nova era, mas são problemas de décadas e difíceis de resolver.

A chave de tudo é também justiça, três anos depois ainda se espera o julgamento dos pescadores que confessaram o crime e agora o suposto mandante vai virar réu. É preciso esperar para ver o que acontecerá nos julgamentos. Todos gostariam de pensar que são passos para a justiça, mas não eu não espero uma resolução imediata, vamos ter que esperar bastante tempo.

 

O podcast e o livro focam muito na figura do indigenista Bruno Pereira na trajetória do Dom. Qual o papel de pessoas como o Bruno na proteção da Amazônia?

O Bruno teve uma influência gigante na vida do Dom. Ele fez duas viagens para a Amazônia nessa década que dedicou à região, mas eu destacaria duas: uma para área Yanomami em 2019, em que ele foi um dos únicos jornalistas a entrar e documentar a crise; e a expedição com o Bruno ao Javari em 2018, quando passou semanas na selva buscando referências sobre os povos isolados e como protegê-los. O Dom ficou impressionado com a região, os indígenas e o trabalho e coragem do Bruno.

Certamente o Bruno é um personagem chave no livro. Quando o Dom estava pensando sobre a resposta da pergunta “Como salvar a Amazônia: pergunte as pessoas que sabem”, o Bruno teria sido uma dessas pessoas. Tanto que quando eu estava pesquisando para o podcast, a última entrevista que o Dom fez na vida foi com Bruno na noite antes do crime, eles passaram três horas conversando e gravando. Tenho certeza que aquela entrevista, que infelizmente foi perdida, teria sido um dos corações do livro. O Dom respeitava e admirava muito o Bruno.

O Brasil avançou na questão ambiental nos últimos anos. Ao mesmo tempo, o Congresso aprovou flexibilização da lei ambiental e uma parte do governo quer explorar petróleo na Amazônia. Como Dom e Bruno avaliariam esse momento?

Acho que eles, assim como eu, enxergariam um panorama complexo. O momento demonstra várias realidades ao mesmo tempo. Temos pessoas como a ministra Marina Silva (Meio Ambiente e Mudanças Climáticas) comprometidas com a proteção da floresta, e temos forças políticas que remam na direção oposta. De um lado um governo que trabalha para melhorar a situação, e do outro movimentos e forças políticas que não querem ajudar.

Uma coisa que eu tenho em mente é a grande incerteza sobre o que acontecerá na eleição. A gente vê grandes operações de desintrusão em territórios indígenas pela Funai e Ibama, mas como vai ser isso no ano que vem? Quem será o presidente em janeiro de 2027? Esses quatro anos foram um recomeço ou um interlúdio entre capítulos de destruição?

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Dom Phillips e Colaboradores - Como salvar a Amazônia
Dom Phillips e Colaboradores - Como salvar a Amazônia Companhia das Letras

“COMO SALVAR A AMAZÔNIA: UMA BUSCA MORTAL POR RESPOSTAS”

  • Dom Phillips e colaboradores
  • Tradução de Berilo Vargas, Denise Bottmann e Pedro Maia Soares
  • Companhia das Letras
  • 381 páginas
  • R$ 89,90

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