CIÊNCIA

Cesar Lattes: um cientista brasileiro com currículo obrigatório

Chega ao mercado a biografia do curitibano César Lattes, uma das principais referências do mundo acadêmico nacional, indicado sete vezes ao Nobel de Física

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A vida profissional do físico curitibano César Lattes (1924-2005) foi recheada de conquistas que pouquíssimas pessoas no mundo podem colocar no currículo. Ao longo de quase 81 anos de vida, o ítalo-brasileiro foi um dos responsáveis pela descoberta de uma partícula subatômica que contribuiu para avanços em tecnologias que seriam usadas em tratamentos contra o câncer, foi sete vezes indicado ao Prêmio Nobel de Física, um dos nomes responsáveis pelo avanço dos estudos da área em diversas universidades brasileiras – como as de São Paulo (USP) e Campinas (Unicamp) e as federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Mato Grosso (UFMT) – e deu nome a um sistema de cadastro de pesquisadores, cientistas e estudantes, a Plataforma Lattes, referência no meio acadêmico gerenciada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Com o nome incluído no “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria” desde abril de 2024, Lattes teve uma vida “agitada”. A atenção internacional fez com que a imprensa nacional também passasse a olhar com interesse para o cientista paranaense, como quando foi entrevistado por Millôr Fernandes, correspondente da revista “O Cruzeiro” – publicação dos Diários Associados –, nos Estados Unidos. A popularidade do físico ganhou a avenida, com o tema “Brasil, Ciências e Artes” como samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira no carnaval de 1947. Foi composto por Cartola e Carlos Cachaça. Anos depois, após uma conversa entre o paranaense e o cantor e compositor baiano Gilberto Gil, a canção foi regravada.

O sofrimento causado por transtorno bipolar e um quadro grave de depressão que o acompanhou durante boa parte da vida também são destacados na biografia “César Lattes: Uma vida – Visões do infinito”, organizada pela segunda filha do cientista Maria Cristina Lattes Vezzani e pelo jornalista Jorge Luis Colombo e escrita pelos jornalistas Marta Góes e Tato Coutinho. Em entrevista ao Pensar, Jorge Luís Colombo fala sobre a produção da biografia e revela que a renda das vendas da biografia será destinada a instituições de ensino, à criação de um site para condensar informações sobre o cientista, a projetos e a instituições educacionais. 



Entrevista



Quem é César Lattes, esse brasileiro tão importante para a ciência e para a educação universitária?

Lattes, que se formou na USP aos 19 anos e aos 23 atravessou o mar, ainda com submarinos nazistas nas águas, pegando um dos pouquíssimos barcos que iam para o Reino Unido, ter feito essa descoberta do méson pi [partícula subatômica] foi um projeto que ele encarou com aquele entusiasmo da juventude. Obviamente, ninguém sabia que isso iria ter tanta repercussão no mundo e no Brasil. Como todos os países, somos muito carentes deste tipo de façanhas. Foi usado como garoto propaganda de muitas coisas. Imagina o Walter Salles e a Fernanda Torres, é como pegá-los e colocá-los como ministros de Comunicação e Cultura. 

É muito esse uso. Ele soube se dar conta disso. Mesmo estando nos Estados Unidos, no Reino Unido, através de cartas, que mantinha com diferentes colegas e amigos da área profissional, como Leite Lopes, Occhialini, ele conseguiu ter apoio e mostrar que o Brasil era capaz e encontrou eco para construir uma base da educação. (...) Foi graças a ele que a física, a química, a matemática começaram a ser organizadas de um jeito estruturado. Nem sequer na USP existia essa estruturação. Quando abriu a USP, procuravam professores na Europa para virem a São Paulo, ao Brasil, criar essa estrutura. Só que ninguém vinha com essa função. Uma coisa é procurar professores, você pode chamar todo mundo que quiser, mas tem que ter pelo menos um diretor técnico que organize a coisa toda. Um desses caras foi o César Lattes. 

Nunca há, assim como no livro, um responsável. Lattes foi um cara muito bondoso e muito gentil, nunca colocou uma medalha para si mesmo, sempre foi o trabalho da equipe. Nunca foi o “fui eu”, era sempre o “fomos nós”. O livro representa um pouco o que ele era, por isso não é um livro de autor, tem uma equipe por trás. Foram dois conselheiros históricos-científicos que deram o material para nutrir a Marta Góes e o Tato Coutinho, que não sabiam absolutamente nada de física. E graças a esse material de coleta ao longo de décadas, conseguiram explicar. 

Os escritores, com toda a capacidade intelectual que eles têm, traduziram aquilo em um texto palatável, fácil de entender, para que todo mundo possa conhecer a vida de Lattes. Esse é o verdadeiro objetivo do livro. Não é possível que todo mundo saiba quem é o Santos Dumont, mas ninguém sabe quem é César Lattes. Hoje, os dois convivem dentro do “Livro dos heróis e heroínas da pátria”. Ele é o primeiro cientista a fazer parte deste livro. E é esse reconhecimento de que a gente precisa. Eu pretendia resgatar o nome dele. Ele fez da física uma coisa popular, tão popular que [Carlos] Cachaça e Cartola fizeram um samba-enredo. A importância dele foi total. O aporte dele tanto para a educação geral, quanto para física, química, matemática e exatas foi decisivo para o que é hoje a educação da física, ciência e pesquisa no Brasil.



Qual é o impacto da descoberta da méson pi na vida das pessoas diretamente?



Foi uma descoberta básica, que modificou tudo o que se entendia como física. De algum jeito, revolucionou o que se entende como física a partir do próprio átomo. Isso daí foi muito revelador, porque nasceu de uma teoria, passou para uma física prática e experimental e acabou modificando a teoria da física básica. A compreensão foi totalmente alterada a partir dessa confirmação desse elemento subatômico. Na prática, existiram vários projetos. Um deles é o do tratamento de câncer através de radioterapia. 

Ernest Orlando Lawrence [cientista nuclear americano, que recebeu o prêmio Nobel de Física em 1929 pela invenção do cíclotron, uma espécie de acelerador de partículas] foi ao Congresso dos Estados Unidos para explicar que esta descoberta [cíclotron] faria com que existisse um novo jeito de gerar energia e isso revolucionaria toda a nossa vida. Lawrence criou um projeto no qual ele conseguiu convencer o Congresso dos Estados Unidos a dar dinheiro para criar esse cíclotron, mas ele não funcionava, não criava méson que foi descoberto por Lattes. 

Foi quando Lattes chegou lá, e em duas semanas, fez um ajuste aqui, fez um ajuste ali, e falou: “vocês estão criando mésons. Só que vocês estão errando”. E começou a ajustar para que deslanchasse o resto do projeto. A descoberta acabou criando um nexo tão básico que modificou o jeito de entender todo o resto da física.

A biografia dá espaço a um lado pessoal que nem sempre as pessoas gostam de ver exposto, que é a saúde mental. Como era isso e como foi para a família revisitar isso?

Para elas [filhas], o livro foi um grandíssimo desafio, principalmente para a Maria Cristina, que esteve na cabeça do livro junto comigo, mas foi extremamente desafiador redescobrir o pai. Elas foram criadas naquele contexto e, muitas vezes, dentro do seio familiar, o que para você é totalmente normal, para mim, não é. Hoje em dia, não há porque ocultar. Hoje, algumas coisas mudaram até o ponto em que a gente pode assumir os nossos defeitos muito honrosamente, com a cabeça erguida. 

O Lattes reconhecia, reconheceu na carta que ele escreveu para o Occhialini onde explica tudo de um jeito claríssimo. O livro tenta resgatar isso que sempre esteve muito oculto. Por um lado, existia a imprensa amarela que usava isso para vender, “Lattes o cientista maluco”; e, por outro lado, o resto zelava pela figura. A gente chegou a um novo estágio de mostrar que o cara tinha problemas. Se hoje é difícil, imagina naquela época, medicação, tudo era muito complexo. Não tinha estudo, não se sabia tanto o que se sabe hoje. Ele e as filhas viveram isso de um jeito muito intenso, muito pessoal. Para elas, foi muito complicado. Lattes tinha três grandes paixões: a física, a família e a esposa. 

A Marta foi o alicerce dele por toda a vida adulta, ela era tudo para ele. A tal ponto que pouco tempo depois que ela morreu, ele também morreu. Eles viveram uma história de vida muito louca, muito forte. A ideia é apresentar esse problema do jeito mais natural possível. Tem que mostrar que o cara, apesar de ter um problema tão sério de bipolaridade, conseguiu o que conseguiu. Ele conseguiu passar por cima disso, nem sequer deu a volta, foi realmente passar por cima da situação e seguir adiante, até os últimos momentos seguia com a pesquisa.




O livro tem a intenção de popularizar a obra e a vida de Lattes. Vocês têm outros projetos para tornar o nome do cientista mais conhecido?

O livro, na verdade, é uma peça de um quebra-cabeça de outras sete, oito peças que vão se juntando. Estamos pensando em criar um portal online que reúna absolutamente tudo o que são documentos que existem no mundo sobre o Lattes e o trabalho dele. Hoje em dia, qualquer estudante, seja daqui ou de qualquer parte do mundo, que quer se aprofundar no trabalho do Lattes, tem que sair catando peças por todas as partes do mundo. A gente quer juntar tudo. Vamos continuar com esse trabalho em muitas partes do mundo por onde ele passou, como Japão, Itália, Dinamarca e outras. Estamos pensando em criar uma instituição César Lattes, que a gente ainda está descobrindo qual vai ser o melhor formato. Trabalhar, fazer projetos educacionais para o ensino fundamental e para o ensino médio. Todo o dinheiro que a Maria Cristina vai receber da editora, por intermédio das vendas, será revertido para a ciência. A gente ainda não decidiu para qual e para que projeto de ciência a gente ainda não decidiu.




Trecho do livro

“Em 1976, numa entrevista, quando o entrevistador perguntou, casualmente, em que ano Cecil Powell ganhara o Nobel. 'Nove meses antes da minha filha mais velha nascer', respondeu Lattes. (...) Ele já fora indicado para o Nobel em 1949, junto com Eugene Gardner (físico americano), quando o premiado foi Hideki Yukawa, mas, enquanto essa escolha parecia apenas confirmar a importância de Lattes, já que ele provara experimentalmente a descoberta que Yukawa sugeria como teoria, o Nobel de Powell o jogava num acabrunhante anonimado. Nem o prêmio - pelo desenvolvimento do método fotográfico e pela decorrente descoberta do méson - nem a apresentação da Real Academia Sueca de Ciências, nem o discurso do homenageado na cerimônia, nada fazia referência à sua contribuição naquele processo. Que outro cientista recebesse o Nobel não lhe doeria. Mas que alguém fosse premiado por algo que ele havia feito ou, no mínimo, para cujo sucesso havia contribuído tão decisivamente deve ter sido difícil de engolir”.

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SERVIÇO

“CÉSAR LATTES: UMA VIDA – VISÕES DO INFINITO”

  • De Marta Góes e Tato Coutinho
  • Organização: Maria Cristina Lattes Vezzani e Jorge Luis Colombo
  • Editora Record
  • 320 páginas
  • R$ 80,77 (impresso)
  • R$ 39,90 (digital)

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