Há pouco mais de três anos, o jornalista britânico Dominic Mark Phillips fazia uma das suas dezenas de expedições para um livro que pretendia escrever sobre como a população da Amazônia preservava a região. Dom, como era mais conhecido, queria ouvir de indígenas, ribeirinhos e pequenos produtores quais eram suas soluções para “salvar” a floresta tropical. O jornalista se dedicava ao assunto havia mais de uma década, mas a obra de sua vida foi interrompida pela realidade brutal de uma das regiões mais remotas do mundo.

Em viagem pelo Vale do Javari, próximo à fronteira com Peru e Colômbia, Dom e seu amigo Bruno Pereira, um dos principais especialistas em comunidades indígenas isoladas, foram emboscados e assassinados por um grupo de pescadores ilegais - que aguardam julgamento, com o mandante sendo denunciado somente na última semana. O crime ganhou as manchetes do mundo todo, mas era sintomático de uma região que faz dos seus protetores mártires.

Dom pretendia que o título do seu livro fosse “Como salvar a Amazônia: perguntem a quem sabe”, revelando a natureza comunitária que ele acreditava ser necessária para resolver os inúmeros problemas que ele passou a conhecer bem nas décadas em que se dedicou ao assunto. Com a morte, a viúva Alessandra Sampaio reuniu um grupo de jornalistas e amigos de Dom para trabalharem no manuscrito incompleto e lançar “Como salvar a Amazônia: uma busca mortal por respostas”(Companhia das Letras).

O resultado é a viagem por uma diversidade cultural que coloca o leitor no lugar de quem vive e trabalha em harmonia com a Amazônia - uma obra inovadora e poderosa sobre a defesa dos povos tradicionais, e que redefine a maneira de pensar o desenvolvimento econômico na floresta. Dom tratou a floresta sem demagogia ao reconhecer que o capitalismo predatório não é solução para os problemas econômicos da região, mas que é necessário pensar a sustentabilidade de maneira alinhada com as necessidades das 20 milhões de pessoas que moram na floresta.

Em entrevista ao Estado de Minas, o jornalista britânico Tom Phillips, colaborador do livro e autor do podcast “Missing in the Amazon”, do The Guardian, sobre o assassinato de Dom e Bruno, ressalta que “é uma realidade clara” a necessidade de conciliar a economia regional com a preservação da floresta. “Destruir a floresta e todo o potencial bioeconômico, o conhecimento científico, não é um bom caminho. É preciso criar oportunidades e apoio, que felizmente nos últimos três anos tem tido um pouco mais se comparado com o governo anterior”, disse.

Para Tom, o livro é otimista ao não fornecer uma resposta definitiva sobre os problemas da Amazônia, o que não era a pretensão do amigo Dom. “O livro dá pistas, e a mais importante é ouvir os povos indígenas da Amazônia, que foram ignorados por séculos, e a importância de escutar as pessoas que estão na floresta e dependem dela”, afirmou.

O jornalista ainda falou sobre os processos para completar a obra da vida de Dom e a relação do amigo com Bruno Pereira. Para ele, o indigenista é o coração do livro. “Quando o Dom estava pensando sobre a resposta da pergunta “Como salvar a Amazônia: pergunte às pessoas que sabem”, o Bruno teria sido uma dessas pessoas”. Leia a entrevista de Tom Phillips ao Pensar.

O livro foi finalizado graças ao trabalho de diversos colaboradores. Como foi a decisão de dar sequência ao trabalho do Dom?

Foi uma decisão muito natural. Nossa comunidade de jornalistas, brasileiros e estrangeiros, se reuniu nas semanas após o crime e conversamos muito sobre o que a gente deveria fazer, como reagir. A resposta de todo mundo foi trabalhar mais ainda, nos esforçando para cobrir a Amazônia, continuar a nossa cobertura, e usar essa visibilidade que, infelizmente, o crime deu para a região para contar mais histórias.

Essa decisão teve vários desdobramentos, como meu trabalho no The Guardian que culminou no podcast e no processo do livro. O Dom tinha escrito pouco menos da metade, e um amigo muito próximo dele no Rio, o Andrew Fishman, da Intercept Brasil, recuperou esses planos e esses capítulos. Não poderíamos deixar a obra esquecida e resolvemos terminar. É um grupo muito grande, o Dom foi uma pessoa muito querida, e até quem não o conhecia pessoalmente queria contribuir.

Bruno Pereira no Vale do Javari, em 2018, ao lado dos povos indígenas. O indigenista era especialista em povos isolados e sabia falar diversas línguas nativas Gary Calton/Divulgação
Viúva de Dom, Alessandra Sampaio decidiu reunir um grupo de jornalistas próximos do esposo para recuperar suas anotações e dar continuidade ao livro Alessandra Sampaio/Divulgação
Cruzes em homenagem a Dom e Bruno no local em que foram assassinados no Vale do Javari Jon Watts/Divulgação
Dom trabalhava com a pauta ambiental havia quase uma década quando foi assassinado no Vale do Javari em 2022 Alessandra Sampaio/Divulgação
Logo após a posse de Bolsonaro, em 2019, Dom foi convidado para um café do presidente com jornalistas. Na ocasião, questionou o presidente sobre os números alarmantes do desmatamento Marcos Corrêa/PR
Dom em entrevista com Mariana Tobias, do povo Macuxi, na terra indígena Raposa Serra do Sol (Roraima) Nicoló Lanfranchi/Divulgação
Dom era conhecido por sempre carregar um bloco de anotações em suas inúmeras expedições pela Amazônia Alessandra Sampaio/Divulgação
Expedição da Funai no Vale do Javari liderada pelo Bruno Pereira (canto superior direito) com o Dom (de vermelho) Gary Calton/Divulgação
Dom nos escritórios da New City Press em Bristol, na Inglaterra, em 1988. Antes de morar no Brasil, o jornalista trabalhou na cobertura da cena musical britânica John Mitchell/Divulgação
Tom Phillips é correspondente do The Guardian na América Latina, colaborador do livro de Dom e autor do podcast "Missing in the Amazon" sobre o assassinato no Vale do Javari Gabriella Maria/Divulgação

Você escreveu o capítulo “Rebrotar e proteger: os defensores indígenas”. Quais dificuldades enfrentou?

O capítulo não estava escrito. Havia algumas poucas ideias no papel sobre os temas principais, focando no trabalho dos grupos de vigilância indígena que o Dom visitou, primeiro os guardiões da floresta no Maranhão, na terra indígena Araribóia, e depois no Javari. Acabou também sendo uma coisa natural, porque eu conversei muito com o Dom sobre a Amazônia e esses movimentos de vigilância e proteção. Ele tinha feito uma sequência de viagens para a área dos Yanomami, em 2019, e eu também visitei a região algumas vezes. Eu consegui fazer um casamento entre as viagens e reportagens do Dom com as minhas próprias viagens.

O capítulo acabou sendo uma mistura dos nossos trabalhos. Seu capítulo trabalha o cultivo de cacau na terra Yanomami em contraste com a invasão de garimpeiros. Como essas iniciativas comunitárias contribuem para “salvar” a região?

É um quebra-cabeça gigante. Quando o Dom foi à área Yanomami em 2019, ele tinha duas ideias. Foi o primeiro ano do governo Bolsonaro, estava começando uma invasão histórica de garimpeiros levados pela retórica do governo e o Dom queria denunciar a devastação. Mas ele nunca foi um jornalista que queria mostrar só a desgraça, mostrar só os escombros. Ele queria mostrar caminhos e apontar soluções, então, durante essa viagem que ele viu coisas terríveis, queria visitar esse projeto para entender o que os indígenas estavam criando de alternativa na ausência de ajuda. A bioeconomia e esses projetos fazem parte do processo, mas precisam de proteção e sistemas de governo para impedir essas invasões sem controle.

Chama atenção como Dom reconhece que milhões de pessoas na Amazônia precisam de oportunidades de emprego e renda. Como conciliar esse aspecto com a preservação ambiental?

Essa é uma pergunta para os governantes. É uma realidade clara que é preciso fazer as duas coisas. A região do Javari e a área Yanomami exemplificam isso, quem são esses garimpeiros? O que essas pessoas vão fazer se não estão no garimpo? Muitas vezes são homens humildes do interior que precisam encontrar alternativas. Destruir a floresta e todo potencial bioeconômico, o conhecimento científico, não é um bom caminho. É preciso criar oportunidades e apoio, que felizmente nos últimos três anos tem tido um pouco mais se comparado com o governo anterior.

É chocante ver como esses momentos políticos se traduzem em consequências concretas e reais em muito pouco tempo. Quem estava na fazendo jornalismo na linha de frente naqueles anos viu o impacto imediato, não foi uma coisa teórica, foram palavras e ações em Brasília que tiveram um impacto imediato brutal e violento. De uma certa forma, eu enxergo os assassinatos do Dom e do Bruno como uma consequência desse momento político.

O seu podcast para o The Guardian aborda muito a questão da segurança na Amazônia. O que precisa ser feito para tornar a região mais segura para quem trabalha e vive no local?

Uma das coisas principais que líderes indígenas dizem é que precisa de uma presença mais forte do Estado. Claro, é um país de proporções continentais e aquela região é muito remota, é mais perto do Peru e da Colômbia do que o centro de poder em Brasília. O fato é que não há uma presença adequada das forças de segurança, então as comunidades indígenas e funcionários do governo ficam em situação frágil.

Eles também falam da corrupção, se você não eliminar a corrupção de uma região de fronteira que tem notória presença do tráfico de drogas, uma indústria que envolve muito dinheiro, não vai mudar muito. A gente tinha uma visão inocente de que a visibilidade internacional do crime ia inaugurar uma nova era, mas são problemas de décadas e difíceis de resolver.

A chave de tudo é também justiça, três anos depois ainda se espera o julgamento dos pescadores que confessaram o crime e agora o suposto mandante vai virar réu. É preciso esperar para ver o que acontecerá nos julgamentos. Todos gostariam de pensar que são passos para a justiça, mas não eu não espero uma resolução imediata, vamos ter que esperar bastante tempo.

O podcast e o livro focam muito na figura do indigenista Bruno Pereira na trajetória do Dom. Qual o papel de pessoas como o Bruno na proteção da Amazônia?

O Bruno teve uma influência gigante na vida do Dom. Ele fez duas viagens para a Amazônia nessa década que dedicou à região, mas eu destacaria duas: uma para área Yanomami em 2019, em que ele foi um dos únicos jornalistas a entrar e documentar a crise; e a expedição com o Bruno ao Javari em 2018, quando passou semanas na selva buscando referências sobre os povos isolados e como protegê-los. O Dom ficou impressionado com a região, os indígenas e o trabalho e coragem do Bruno.

Certamente o Bruno é um personagem chave no livro. Quando o Dom estava pensando sobre a resposta da pergunta “Como salvar a Amazônia: pergunte as pessoas que sabem”, o Bruno teria sido uma dessas pessoas. Tanto que quando eu estava pesquisando para o podcast, a última entrevista que o Dom fez na vida foi com Bruno na noite antes do crime, eles passaram três horas conversando e gravando. Tenho certeza que aquela entrevista, que infelizmente foi perdida, teria sido um dos corações do livro. O Dom respeitava e admirava muito o Bruno.

O Brasil avançou na questão ambiental nos últimos anos. Ao mesmo tempo, o Congresso aprovou flexibilização da lei ambiental e uma parte do governo quer explorar petróleo na Amazônia. Como Dom e Bruno avaliariam esse momento?

Acho que eles, assim como eu, enxergariam um panorama complexo. O momento demonstra várias realidades ao mesmo tempo. Temos pessoas como a ministra Marina Silva (Meio Ambiente e Mudanças Climáticas) comprometidas com a proteção da floresta, e temos forças políticas que remam na direção oposta. De um lado um governo que trabalha para melhorar a situação, e do outro movimentos e forças políticas que não querem ajudar.

Uma coisa que eu tenho em mente é a grande incerteza sobre o que acontecerá na eleição. A gente vê grandes operações de desintrusão em territórios indígenas pela Funai e Ibama, mas como vai ser isso no ano que vem? Quem será o presidente em janeiro de 2027? Esses quatro anos foram um recomeço ou um interlúdio entre capítulos de destruição?

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Dom Phillips e Colaboradores - Como salvar a Amazônia

Companhia das Letras

“COMO SALVAR A AMAZÔNIA: UMA BUSCA MORTAL POR RESPOSTAS”

  • Dom Phillips e colaboradores
  • Tradução de Berilo Vargas, Denise Bottmann e Pedro Maia Soares
  • Companhia das Letras
  • 381 páginas
  • R$ 89,90
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