Como João Anzanello Carrascoza se tornou um encantador de palavras
Dois novos livros e o relançamento do primeiro romance, ‘Aos 7 e aos 40’, comprovam força da prosa intimista do autor paulista com mais de 60 títulos publicados
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Siga no“Todo fim liberta. Todo princípio enlaça.” As frases de abertura de “O céu implacável” (2023), mais recente romance de João Anzanello Carrascoza, voltam para enlaçar o início desta apresentação da trajetória do escritor paulista. Nascido em Cravinhos, a quase 300 quilômetros de São Paulo, Carrascoza tem 63 anos, mais de 60 livros, dois filhos (Lucas, 29 anos, e Maria Flor, nove) e uma autodefinição: operário da palavra.
Formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP, João Anzanello Carrascoza trabalhou como redator publicitário em algumas das maiores agências do país e estreou na literatura em 1991 com o infantil “As flores do lado de baixo”, pela Melhoramentos. Três anos depois, publicou a primeira obra para adultos: o livro de contos “Hotel Solidão”. Ganhou diversos prêmios, ministrou dezenas de oficinas, conquistou milhares de leitores. E nunca parou de escrever. Nada de bloqueio criativo, portanto. “As travas sempre foram, para mim, disparadores da escrita. Escrever sobre a impossibilidade do dizer, sobre a incomunicabilidade, ou sobre aquilo que nos parece indizível é um jeito de saltar as muralhas que a vida dispõe entre as nossas duas vidas”, afirma ao Pensar do Estado de Minas.
Leia a entrevista: João Anzanello Carrascoza: 'Amor e compaixão são batedores no meu cortejo'
Três títulos de Carrascoza chegaram às livrarias nos últimos doze meses: dois inéditos, “Tranças de meninas” e “Flor de pedra”, mais o relançamento de um dos livros mais queridos do autor, “Aos 7 e aos 40”. Publicado originalmente em 2013, o romance de estreia desconcertou – e encantou – com a apresentação de duas narrativas paralelas sobre momentos diferentes da vida de um homem que, para seguir em frente, percebe a necessidade de olhar para trás. “Olhei a minha obra publicada até então, que consistia unicamente de livros de histórias para crianças e contos para adultos”, conta. “Senti que deveria escrever, pela primeira vez, uma prosa mais longa, que contemplasse os dois públicos, literalmente definidos no título e que representam o tempo de iniciação (os 7) e o tempo da razão (os 40)”, complementa.
O lançamento mais recente, “Tranças de meninas”, é igualmente precioso. Carrascoza espelha os contos de “Tramas de meninos”, vencedor dos prêmios Biblioteca Nacional e Candango, com histórias do universo feminino em uma “obra irmã”. E o faz com delicadeza, precisão, desenvoltura para narrar o que parecia indizível, como os diferentes estágios da alegria de uma criança no parque de diversões, “passeio maior do que os braços da sua imaginação alcançavam”. Ou o exato momento em que o choro provocado por uma dor inesperada se transforma em cicatriz e a menina, magoada, “se descriançou”pois “a tinta da vida, uma vez escrita, não sai nunca mais”.
Nas histórias, correm soltas as emoções do que o autor chama de o “fluxo avassalador da vida”. E os leitores seguem na mesma trilha. Para citar um dos contos, somos tomados pela“comoção de quem entra num mundo espantoso”e avançamos pisando no chão “em que a cada instante somos desnorteados pelo imprevisível”.
CEMITÉRIO-NARRADOR
“Flor de pedra”, o outro lançamento de Carrascoza, é narrado por um cemitério. E em primeira pessoa: “Eu, que abrigo as pessoas, as suas costas em contato com o escuro da minha terra.” Não se trata de qualquer cemitério, mas o da cidade natal do autor. “O campo santo de Cravinhos é um ser vivo, uma consciência humanizada. Por outro lado, o que somos nós senão cemitérios? Não vivemos enterrando no fundo da memória, deixando-os subir à tona na superfície das lembranças, os nossos mortos?”, pergunta. Ele considera o cemitério lugar de “memórias vivas”, capaz de abrigar tanto os que são movidos pelo “desejo de permanecer, mesmo que só por uma hora, quando ainda existe no mundo alguém para quem se possa dizer eu-te-amo”quanto os que pedem para ir embora, “implorar para que o jogo cesse” pois não conseguem mais “submeter o desespero ao jugo do encantamento, porque o mapa dos sentidos já não conduz à nenhuma terra prometida.”
Pode parecer um tanto mórbido um livro sobre o lugar dos mortos, mas, na cabeça de Carrascoza, “Flor de pedra” representa mais uma oportunidade de celebrar “tantas vivências que não foram (e são) nada para o resto do mundo, mas que foram tudo para nós.”Pois, se há um fio invisível a amarrar as milhares de palavras espalhadas em dezenas de livros do autor, este fio é a existência humana. Ou melhor: uma dupla existência. “Penso que, quando vivemos, estamos vivendo apenas a nossa vida (a útil, a prática, a cotidiana), e, quando escrevemos, estamos vivendo também a segunda vida (a imaginária, a sonhada, a que nos conduz ao mundo do sensível)”, afirma.
Aos sete, aos 40, em qualquer idade “na régua dos tempos”, o que Carrascoza molda em palavras – e no silêncio entre elas – são os instantes decisivos de fases da existência. As memórias de família, o amor inaugural, o dilaceramento de uma paixão. Pois, para lembrar o encerramento de “O céu implacável”, todo fim fere. Mas, agora novamente em “Tranças de meninas”, mesmo nas horas “em que se a vida se prepara não ser mais”e se avista a iminência “da noite mais noite da existência”, toda hora é vida.
E todo dia é dia de viver.
TRECHOS
“TRANÇAS DE MENINAS” (DO CONTO “O QUE VAMOS FALAR”)
“Enquanto me deixo na poltrona da sala, à sua espera, lembro dela, menina, a se divertir com o pai nesse mesmo chão – o tapete aqui guarda, invisíveis, resíduos da história escrita pelos dois com o grafite da distração, quando não se percebe que o mundo, apesar de sua violência, pode ser amável por permitir a duas pessoas não apenas viverem, mas habitarem para sempre, com igual (e contido) contentamento, o mesmo instante – e o presente ganha a condição de ser presente de novo no tempo móvel da memória.”
DE “FLOR DE PEDRA”
“Ouço aqui muita gente dizer aos familiares dos mortos a expressão ‘Meus pêsames’, que bem entendo, mas a maioria prefere ‘Meus sentimentos’, o que, ao contrário, me faz hesitante: a quais sentimentos se referem? Pesar, tristeza, piedade? Imagino que não seriam sentimentos de natureza oposta, como alegria, indiferença, vingança. Se bem que não posso provar que sejam nem uns, nem outros – registro aqui, diariamente, as mais estranhas e imprevisíveis condutas.”
“TRANÇAS DE MENINAS”
De João Anzanello Carrascoza
Alfaguara
112 páginas
R$ 74,90
“FLOR DE PEDRA”
De João Anzanello Carrascoza
Faria e Silva
232 páginas
R$ 64,90
“AOS 7 E AOS 40”(NOVA EDIÇÃO)
De João Anzanello Carrascoza
Alfaguara
120 páginas
R$ 79,90
OS CINCO AUTORES PREDILETOS DE JOÃO CARRASCOZA
Carlos Drummond de Andrade l Javier Cercas l José Saramago l Julio Cortázar l William Faulkner