LITERATURA

João Anzanello Carrascoza: 'Amor e compaixão são batedores no meu cortejo'

Em entrevista, o premiado escritor reflete sobre "Tranças de meninas", "Flor de pedra" e sua trajetória como operário da palavra

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Em entrevista, João Anzanello Carrascoza revela origens da sua inspiração para “Tranças de meninas” e “Flor de pedra” e repassa a sua trajetória

Leia: Como João Anzanello Carrascoza se tornou um encantador de palavras

Como foi passar de “Tramas de meninos” para “Tranças de meninas”?

Os dois livros de contos nasceram juntos? Os projetos literários, no meu caso, nascem de forma rizomática: busco relações e conectivos com obras anteriores que publiquei, uma vez que fazem parte da construção de um mesmo território ficcional. Às vezes, uma montanha, ou seja, metaforicamente um personagem, por exemplo, que aparece num livro, pede para que a sua vista, lá de cima, seja descrita em outro, que o sucede, por diferente perspectiva. E nem sempre esse trabalho se dá num tempo próximo, pode demorar anos para que eu perceba uma possível conexão e me dedique a efetivá-la. Os contos de “Tramas de meninos”foram escritos quase todos em 2020, e trazem, em seus enredos, a preponderância da esfera masculina, embora, claro, personagens femininas estejam presentes. Três anos depois, quando acabei de escrever o romance “O céu implacável”e os contos de “Fronteiras visíveis”(aglutinados às fotografias de Juliana Monteiro), senti o impulso de criar uma obra irmã de “Tramas de meninos”, cedendo, dessa vez, o protagonismo para o mundo feminino, e, assim, nasceu “Tranças de meninas”

Quem são as meninas de tranças dos contos do livro?

Gosto muito desta frase de Machado de Assis: “o menino é o pai do homem”. O menino que fomos é quem constrói as nossas fundações, mesmo que, no futuro, possamos derrubá-las, fortalecê-las ou ampliá-las. Em “Tramas de meninos”, os garotos estão também em outras fases da vida, há também adultos, idosos, homens entrando ou saindo da vida. A frase de Machado, para mim, vale igualmente para o gênero feminino: “a menina é a mãe da mulher”. Em “Tranças de meninas”, como paridade à coletânea anterior, escrevi histórias nas quais as mulheres (não apenas atravessando a infância, mas em outras fases da vida) dominam a narrativa. Ambas as obras são constituídas por duas partes; as histórias do primeiro bloco têm relação com as do segundo, são fios que criam, estruturalmente, as tramas (ou as tranças). Há, portanto, um entrelaçamento dos contos, o que torna a experiência leitora diferente da canônica, pela qual as histórias, sem ligação entre si, são inseridas progressivamente. 

“Palavras nem sempre carregam a medida justa que represa a nossa existência”, você escreve em um dos contos. O que as palavras conseguem carregar?

As palavras, sabemos, são signos convencionados, formam o código linguístico, e, como tal, represam e alargam efeitos de sentido. São limitantes, porque partem de nós, humanos. No entanto, é o que temos para expressar o que pensamos e o que sentimos. Nietzsche afirma que escrevemos só aquilo que superamos. Wittgenstein nos lembra que o limite da nossa linguagem é o limite do nosso mundo. Então: os ombros das palavras só suportam o que elas podem carregar, e não tudo. 

“Toda hora é vida.” Como definir a hora de escrever e a hora de viver?

Fernando Pessoa, pelos versos de Álvaro de Campos, um de seus heterônimos, no poema “Dactilografia”, afirma que temos duas vidas. Penso que, quando vivemos, estamos vivendo apenas a nossa vida (a útil, a prática, a cotidiana), e, quando escrevemos, estamos vivendo também a segunda vida (a imaginária, a sonhada, a que nos conduz ao mundo do sensível). 

“Tranças de meninas” traz diversas histórias sobre momentos de alegria cotidiana. Quais as maiores alegrias que a literatura – e a vida – lhe deram?

Uma única alegria, que, no entanto, está representada obviamente de maneiras distintas na minha história pessoal e naquelas que escrevo: a alegria de sentir, na plenitude de meu ser, o fluxo avassalador da vida

Você é um escritor que consegue traduzir, em palavras, sentimentos como “o começo da alegria”. Quais os sentimentos que movem sua escrita?

Agradeço com alegria (em movimento) as suas palavras. Amor e compaixão são os batedores que reconheço no meu cortejo, e vão puxando os demais pares: alegria e tristeza, presença e ausência, prazer e dor... 

“De repente, a palavra vem, depois de décadas de silêncio”. Já passou por alguma fase de bloqueio criativo? O que fez para superá-lo?

Não, as travas sempre foram, para mim, disparadores da escrita. Escrever sobre a impossibilidade do dizer, sobre a incomunicabilidade, ou sobre aquilo que nos parece indizível é um jeito de saltar as muralhas que a vida dispõe entre as nossas duas vidas. Valendo-me de uma paráfrase, a partir de uns versos de João Cabral de Melo Neto, eu diria que escrever é inútil, não escrever também é inútil, mas é melhor o inútil de escrever do que o inútil de não escrever. Ainda assim, há na sua pergunta uma significância que se relaciona com a minha ficção. Certas situações, de extremo poder, que vivenciei ou alguém me narrou, me impeliram a escrever, mas, quando tentei concretizá-las em texto, não me senti à altura. Ficaram dentro de mim, como se abafadas por silenciadores. Até que, tempos à frente, foram passando de matéria-prima à forma definitiva em minhas histórias. 

No conto “No parque”, a matéria-prima da produção, “o sonho, ou o desejo”, é qualificada como “massa altamente perecível”. E qual é a matéria-prima de suas histórias?

A mais perecível – e também a mais preciosa: o cotidiano, a vida em tom menor, o sentimento de presença e sua fugacidade, a dor e a alegria de sermos quem somos, o dilaceramento do quase nada (que é a vida). 

“Crescer dói, crescer pesa”, é uma sentença que se repete em “O peso de tudo”. E envelhecer?

Tudo dói e tudo pesa, até mesmo a alegria. A alegria, às vezes, é tanta que dói e pesa (porque, sabemos, é parte da desalegria que vem em seu ventre). Envelhecer, também, porque é um reduzir para a vida e um crescer para a morte. Crescer é um ganho, mas só se realiza com perdas. O exemplo maior é a vida, nós a ganhamos e a perdemos todos os dias. 

Recentemente você fez a mentoria de uma residência literária, “Dias raros”. O que é mais marcante nessa experiência e o que acredita que consegue transmitir aos que participam dela? E o que eles conseguem passar para você?

O mais relevante numa experiência dessa natureza é a entrega ao eu e à abertura para o diálogo com o outro. Ou seja: a imersão na própria obra e o convívio com os pares. Estamos já preparando a quarta edição da Residência Literária Dias Raros, e o aprendizado para os residentes anteriores é visível, tanto quanto o volume da produção de todos, que encontraram, no topo da montanha em Gonçalves, um local silencioso, apropriado para essa experiência. 

Como surge “Flor de pedra”? Por que classifica o romance como uma “ode não à morte, mas à vida”?

Os cemitérios apenas guardam os mortos, mas não há morte em seus domínios, pelo menos não é o costumeiro, é raro alguém morrer nesses espaços. A morte está aqui e aí, colhe ininterruptamente as gentes, os bichos, as plantas em qualquer canto. O campo santo de Cravinhos, narrador do romance, é um ser vivo, uma consciência humanizada. Por outro lado, o que somos nós senão cemitérios? Não vivemos enterrando no fundo da memória, deixando-os subir à tona na superfície das lembranças, os nossos mortos? 

Por que, “justo agora”, um livro sobre as vidas e histórias contidas em um cemitério?

Na verdade, não foi “justo agora”, já faz um largo tempo que a ideia de escrever na pele ou terra de um cemitério me motivava, exatamente porque sempre pensei que a força dominante num campo santo é a de Eros (a vida) e não a de Tânatos (a morte). Também queria conectar a narrativa com a obra de Machado de Assis, autor fundante na minha trajetória de leitor e escritor. Comecei a desenvolver esse projeto em 2017, escrevendo a primeira parte, na qual o cemitério-narrador-protagonista recorda seus 70 anos de existência. Mas abandonei o livro, sentia a falta de algum acontecimento que lhe desse uma segunda vida, como nos versos de Pessoa que mencionei. Retomei em 2023, ao lembrar de uma visita ao Cemitério de Colônia, no bairro de Parelheiros em São Paulo, cuja casa do coveiro, desocupada, passou a abrigar uma biblioteca. Escrevi, então, a segunda parte, que é uma homenagem à literatura, ao livro, ao verbo, não divino, mas ao humano. 

O que os cemitérios representam para você?

Prados de despedidas, jardins de memórias, flores de pedras: histórias (ainda) vivas.

Como foi percorrer os túmulos e jazigos em sua cidade, Cravinhos?

Quanto mais eu vivo, quanto mais os anos morrem, maior é o trajeto que meus pés precisam palmilhar no cemitério de Cravinhos, para evocar, por meio de uma visita no Dia de Finados ou em qualquer data, as pessoas queridas que perdi. Mas, se as perdi, antes ganhei o convívio com elas, antes pudemos celebrar juntos a sagração da Vida. 

“Às vezes, é preciso olhar para trás se quisermos ir em frente”, você escreve em “Aos 7 e aos 40”. Olhando para trás, como enxerga “Aos 7 e aos 40” em sua obra?

Sim, ao escrever o romance “Aos 7 e aos 40” eu coloquei em prática a ideia contida nesta frase. Olhei a minha obra publicada até então, que consistia unicamente de livros de histórias para crianças e contos para adultos. Senti que deveria escrever, pela primeira vez, uma prosa mais longa, que contemplasse os dois públicos, literalmente definidos no título e que representam o tempo de iniciação (os 7) e o tempo da razão (os 40). 

“A vida era devagar, poderia ser mais devagar ainda”, você escreve também em “Aos 7 e aos 40”. A vida hoje está mais rápida do que o necessário?

Cada era da humanidade tem sua medida de tempo. Para todas elas há um ditado latino que cabe bem: festina lente, apressa-te devagar. Acredito que em todas as eras também cabe esta sentença: ‘siga o ritmo da natureza’. Somos egressos dela. Mas não é o que estamos vendo, como bem demonstrou o filósofo Paul Virilio em seus estudos sobre a velocidade. 

Quem era João Anzanello Carrascoza aos 7 anos e quem foi aos 40? E quem é aos 60?

Aos 7, eu era um menino leitor que sonhava ser escritor. Aos 40, eu era um homem (o menino leitor em mim) escrevendo sonhos em livros. Aos 60, sou um homem velho, grato ao menino de 7 e ao homem de 40 por continuarem me movendo e me comovendo como leitor e escritor. 

O que significam os sobrenomes Anzanello e Carrascoza para o João?

Mario de Andrade, numa célebre resposta a uma carta de Fernando Sabino, diz que, para ser um artista, Sabino deveria, antes de tudo, encurtar o nome de Fernando Tavares Sabino para Tavares Sabino, Fernando Tavares, Fernando Sabino. Contudo, há coisas mais importantes para um artista que a força atratora de seu nome: a sua obra. Pedro Almodóvar, escreve num belíssimo conto, “O último sonho”, os momentos finais de sua mãe e lembra que ela se ressentia pelo fato de ele assinar os filmes, sempre e unicamente, como Pedro Almodóvar, sem incluir o sobrenome dela, Caballero. Mas, ao final desse relato, ele assina como Pedro Almodóvar Caballero. Desde a minha estreia, com “Hotel Solidão”, eu queria homenagear o meu lado materno e o paterno. Os Anzanello, italianos do Vêneto, vieram para o Brasil no período da Primeira Guerra Mundial. Já os Carrascoza nas primeiras décadas do século 20, fugidos da ditatura de Franco, pois eram republicanos de Granada. Minha gênese vem dessas duas cepas, não de uma, então eu as levo junto ao meu nome. Não sou João Anzanello, nem João Carrascoza, mas João Anzanello Carrascoza. 

Você acaba de lançar também “Entre bichos e plantas”. O que muda quando escreve para crianças? O que mais o encanta na escrita para elas?

Antes de começar qualquer texto, deixo livremente meu ser entrar em sintonia com a escrita, que, como um rádio, se estabiliza em variadas faixas de frequência. Sei que a obra está destinada também (e não somente) às crianças, quando alcanço, ao escrever, a frequência do menino que fui, aquele das primeiras leituras, fascinado por desfiladeiros imaginários, por aventuras de mistério, e, sobretudo, pelo poder de histórias que nos levam, em sua cápsula de palavras, a novos continentes do pensar e a novas ilhas do sentir. 

Como os diversos prêmios recebidos influenciaram em sua trajetória de “operário da palavra”?

Os prêmios são legitimadores da singularidade e do valor de uma obra, mas não são os únicos. A eles se somam as críticas literárias, os estudos acadêmicos, as vendas, as adoções no sistema educacional do país (em suas diversas instâncias), as traduções, as adaptações para outras formas de expressão (como o teatro, o cinema etc.). Alguns são voltados para a voz literária do autor, outros para o seu projeto literário ou o conjunto de sua produção. Seja como for, os prêmios dão visibilidade para o livro e o escritor, ampliando o seu capital simbólico, o que abre espaço maior para o seu conhecimento e para a sua difusão. Nesse sentido, os prêmios têm me conduzido a várias partes do Brasil e do mundo, como convidado de festas, feiras e demais eventos literários. Mas, vale lembrar, os prêmios não são dados por entidades divinas, e, sim, por leitores especializados. Provam, portanto, ser a leitura criteriosa que valida as novas escritas. 

O que significa, no Brasil, ser um operário da palavra?

Saber que a palavra é uma queda, um degrau abaixo do silêncio, mas é o que temos contra a manufatura da superficialidade. 

O que é preciso para ler o mundo, ler as pessoas e escrever sobre estas pessoas no mundo?

Respondo à sua pergunta, Carlos Marcelo, valendo-me de um verso de Drummond: o que é preciso para ler o mundo, ler as pessoas e escrever sobre elas é “amar, depois de perder”.

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