O cacique kayapó Raoni Metyktire é uma das referências na luta pelos direitos dos povos originários brasileiros. Atividades como a atuação junto aos diferentes governos federais ao longo dos anos, o apoio de figuras políticas e artísticas estrangeiras e a articulação com diferentes grupos étnicos que habitam as mais diferentes partes do Brasil fizeram com que ele fosse um ponto central e referência obrigatória na demarcação de terras indígenas, locais tradicionalmente habitados por esses povos.
Para eternizar não apenas as suas memórias, mas também as histórias tradicionais dos primeiros habitantes destas terras e o vislumbre do futuro do Brasil e do povo brasileiro, o cacique, com apoio de seus familiares Paimu Muapep Trumai Txukarramãe, Patxon Metyktire e Beptuk Metuktire e organização do antropólogo Fernando Niemeyer, Raoni concedeu mais de 80 horas de entrevistas. Nos registros, ele discorre sobre sua vida, inclusive destacando casos icônicos; contando mitos de criação do mundo, povoamento da Terra, uso do milho como alimento; e até seus planos para dialogar com os futuros candidatos à presidência, do alto dos seus 93 anos.
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No livro, Raoni (ou Ropni, no idioma original do povo Mebêngôkre), conta histórias que ouviu dos “antigo”, como se refere às pessoas mais velhas. Entre elas, a do buraco de tatu-de-quinze-quilos, espécie comum em alguns países sul-americanos. Este buraco não tinha fundo e servia como ligação entre a floresta e o cerrado. A história afirma que algumas pessoas desceram de cipó pelo buraco feito pelo animal, até que um dos membros do grupo decidiu cortar a cepa para evitar que mais pessoas descessem e se juntassem a eles naquele lugar, alegando que cada grupo poderia ter uma boa vida. Assim, foi relatada a primeira divisão entre os que “ficaram no céu” e os que desceram para a terra onde eles passaram a viver.
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Durante a infância, até os dez anos, Raoni e jovens da mesma idade se divertiam jogando peteca, brincando de lutinha, nadando nos rios e caçando passarinhos para assar e comer, algumas práticas comuns a crianças de qualquer lugar do mundo. Foi nesse período em que ele passou a presenciar as primeiras interações com outros povos originários e mesmo com os kube, termo usado para designar os que não eram indígenas. As tensões por territórios, comidas e conflitos familiares mal resolvidos, que acabavam causando cisão em algum grupo, acarretaram diferentes confrontos entre os próprios indígenas. Já com os “brancos” a invasão de territórios, exploração de minérios e madeiras de áreas usadas pelos povos originários e a destruição do ambiente eram alguns dos confrontos.
Quando se tornou megoromãnõrõ, no processo de os jovens se tornarem homens, entre dez e doze anos, ele passou a participar das expedições de guerreiros contra os brancos. “Antigamente era assim. Aqueles que se tornavam rapazes menõrõnyre deixavam o cabelo crescer e passavam a participar das expedições contra os kube. Isso marcava essa passagem para outra fase de suas vidas”, explica o cacique.
As primeiras atuações como líder foi uma atuação diplomática entre povos que estavam em conflito há tempos. A busca de alguns brancos em estabelecer uma relação mais amistosa com os povos da região do Alto Xingu, fez com que em 1953 os irmãos Cláudio, Leonardo e Orlando Villas Bôas estabelecessem contato com o grupo do qual Raoni fazia parte. A relação se estreitou quando, três anos depois, uma epidemia de gripe matou muitas crianças e idosos e os antropólogos ajudaram nos tratamentos de saúde do grupo. A relação entre os Villas Bôas e Raoni se intensificou com o passar do tempo com aproximação junto a diferentes presidentes, como Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer; na época da ditadura militar, o grande contato era com o ministro do Interior, Mário Andreazza; além de todos os presidentes do órgão indigenista brasileiro, hoje chamado de Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Sua proximidade com o cantor britânico Sting, do The Police, também ajudou a levar para a Europa e para outros cantos do mundo as demandas dos povos indígenas, independente da etnia.
A atuação de Raoni Metyktire foi fundamental para que, em 1961, o Parque Indígena do Xingu fosse a primeira terra oficialmente demarcada no Brasil. Hoje existem mais de 760 terras em algum nível de processo demarcatório, sendo que a maior parte está em processo de análise ou de reivindicação. Entre os casos abordados pelo cacique, está a forte atuação contra a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, idealizada em 1989, mas que foi retomada em 2006, durante o governo Lula, contrariando as vontades dos povos da região.
Invasão de terras, ameaças a lideranças indígenas, garimpo, desmatamento foi a tônica, segundo o cacique, na gestão do governo de Jair Bolsonaro, mas que diferentes grupos se uniram para lutar contra a condução da relação do então governo federal com os povos originários. Durante sua campanha, em 2018, Bolsonaro afirmou que, caso fosse eleito, não haveria um centímetro de terra demarcada para os indígenas.
Em 1º de janeiro de 2023, o cacique Raoni Metyktire foi um dos brasileiros escolhidos para subir a rampa do Palácio do Planalto e participar da cerimônia de entrega da faixa presidencial ao presidente Lula. A articulação junto aos presidentes deve continuar, afirma ele, que se compromete a se encontrar, mesmo já tendo mais de 90 anos, com os candidatos à presidência em 2026.
Danna Dantha, editora assistente da Companhia das Letras e indígena da etnia baré, concedeu a seguinte entrevista ao Pensar sobre o processo de organização do livro e da importância do cacique Raoni Metyktire para diferentes etnias de povos originários.
Trecho do livro
“Luto para defender as terras onde sempre vivemos. As terras do povo Mebêngôkre que eu consegui demarcar estão preservadas até hoje, e meus netos podem caçar e pescar nelas livremente. (...) Essa é minha luta, que venho travando desde jovem, e já estou ficando cansado. Aos meus netos eu digo que eles precisam continuar lutando e não podem se deixar manipular pelo kube. (...) Os brancos chegaram aqui no Brasil massacrando nossos antepassados. No tempo dos nossos avós, o filho de um Bororo chamado Rondon começou a defender os indígenas. Era apenas ele. Hoje alguns brancos estão do nosso lado e lutam conosco pela demarcação de terras, pela proteção das florestas e pelas nossas vidas. Mas muitos kube vão seguir tentando tomar nossas terras. Essa luta não vai acabar”.
“Raoni: Memórias do cacique”
• De Raoni Metyktire
• Companhia das Letras
• 296 páginas
• R$ 65,22. E-book: R$ 39,90
Danna Dantha
Entrevista/Danna Dantha
Editora assistente da Companhia das Letras
Como surgiu a ideia de fazer esse livro e como foram colhidos os relatos?
O projeto deste livro vem desde 2020. Vale dizer que sempre foi um grande desejo do cacique: publicar as suas memórias em português e em livro físico. O cacique, com a idade, fala e entende menos o português, então foram conduzidas pelos netos uma série de entrevistas, feitas entre 2020 a 2022, de temática livre. Ele conta as histórias que queria partilhar com a família, histórias que os pais e os avós contavam, comentava sobre eventos que ele participou e pessoas que ele conheceu. Sempre neste formato de conversa com familiares, com parentes. Para a gente conseguir o material editável, foi um processo longo de trabalho coletivo e precisamos de muitos colaboradores. Os familiares e os netos sempre estiveram muito envolvidos e fizeram parte tanto da condução das entrevistas, quanto das traduções e das revisões de texto. O texto tem uma base muito sólida na oralidade kaiapó e isso foi uma coisa que a gente quis manter.
Inicialmente, o prefácio destaca que os relatos foram passados para o kaiapó escrito e depois para o português. Por que foi feito esse processo?
O kaiapó escrito foi estabelecido por missionários e hoje há esse movimento em que as próprias pessoas do povo, tentam propor uma grafia feita por eles, que faça mais sentido para o que eles acreditam. Teve um pouco isso de mesclar a grafia.
Traduções sofrem para adaptar alguns termos e manter o texto o mais próximo do original. Quais foram as principais dificuldades neste trabalho?
Teve alguns casos específicos, principalmente, os nomes próprios. No caso, nomes de pessoas e de lugares que não têm tradução. Se você tem alguma relação de parentesco, é uma questão de respeito chamá-la por esse nome. Se é seu avô, você chama de 'avô'; se é sua tia, você chama de 'tia', mas eles têm relações de parentescos diferentes que são intraduzíveis. Por isso a gente pensou numa solução que se aproximasse, mas que não seria uma tradução literal.
Tem uma palavra que indica parentesco, mas que numa tradução geral seria tipo meu avô que é seu sogro, mas eles usam mais o pronome de tratamento que não tem como traduzir. É um parentesco, é uma questão de respeito, a gente entende mais ou menos essa triangulação, mas é difícil traduzir. No livro, toda vez que tem menção a esse tipo de tratamento, a gente traduziu como ‘compadre’, que acho que se aproxima no significado, no tipo de consideração, mas não é uma tradução literal.
Se a gente descobrisse que era tia, avó, ou tia-avó, por exemplo, a gente colocou o termo exato em português, mas nem sempre conseguia. Outro ponto é nas espécies de animais e plantas, que tem um nome em kaiapó. Alguns a gente conseguiu identificar a que espécie ele se refere, mas em outros não. Se a gente sabe que é uma planta, mas não dá para dizer qual é, preferimos manter no original mesmo.
Quando a gente pensa na literatura indígena e em textos de autoria indígena, é importante levantar o debate de que a gente precisa ler e tentar entendê-los pelo que eles são e não comparados a literatura tradicional que a gente está acostumado. Porque é uma literatura diferente que não se encaixa, que não busca atender os padrões de literatura clássica. É realmente outro tipo de pensamento. Este livro convida a um tipo de pensamento diferente do tradicional ocidental, digamos assim.
Os relatos do cacique alternam histórias de origem, mitologia, com relatos pessoais vividos por ele, mas sem que essa diferenciação esteja claramente definida. Por que essa forma de narrar as histórias?
A gente teve apoio de Vanessa Rosemary Lea, uma das antropólogas que mais acompanhou o kaiapó ao longo dos anos. Ela registra o contato com o povo há muitas décadas, foi a autora da orelha do livro e atuou como uma espécie de consultora, mas uma coisa que ela fala na orelha e que ela explicou para a gente nas conversas, é que os kaiapós realmente têm um pensamento onde mito e história são a mesma coisa, eles convergem. A gente faz essa diferenciação, mas eles não.
Essa história que os avós contam de como eles desceram do céu e encontraram uma grande floresta de buritis é realmente o passado. Não é como se fosse uma lenda ou uma história que eles ouviram. O cacique apresenta as coisas dessa forma, não como se fossem histórias aleatórias, mas como se fosse o passado que ele teve contato através das histórias dos avós e que quer passar para os netos e registrar para que para que não se percam.
O que tornou a edição do livro um pouco mais difícil também porque é um registro baseado na oralidade de um senhorzinho. O cacique já tem uma idade avançada. A gente registrou o que ele lembrava, algumas histórias a gente precisou contactar outras pessoas para complementar, mas a gente realmente quis colocar o que ele quis destacar.
Foram mais de 80 horas de entrevistas conduzidas pelos netos dele. Imagino que tenha muito mais material, inclusive em áudio, existe algum plano de fazer algo mais com isso?
O material que ficou de fora a gente pretende usar em outros projetos é a questão do registro dos cantos tradicionais e tem alguns mitos que não entraram, que também são muito interessantes, mas a gente quis manter os principais.
Acho que esses cantos nunca tinham sido traduzidos e demoraram muito para serem traduzidos, porque os netos precisaram refletir durante muito tempo para chegar numa tradução final. A gente tem esses cantos na voz do próprio cacique, têm mitos que não entraram, mas a gente pretende usar em outros projetos. Por exemplo, a gravação dos cantos a gente pretende usar no audiobook que a gente vai começar a produzir agora no segundo semestre.
Qual a importância do cacique Raoni Metyktire para outros grupos étnicos, além do próprio povo?
Ele é realmente uma figura das mais importantes do movimento indígena brasileiro. Esse livro fica ao lado de outras publicações de autores muito importantes que a gente tem, como Ailton Krenak e Davi Kopenawa. Essa publicação contribui para o reconhecimento assim da multiplicidade do pensamento indígena e até para humanização dessas figuras importantes.
Ailton Krenak é um grande pensador, um intelectual; Davi Kopenawa, um filósofo, um pensador da cultura indígena; e Raoni também tem o seu pensamento apresentado, mas ele tem um elemento de que ele realmente é, participou de muitos embates, que foram físicos na juventude, ele teve esses momentos de vida antes do contato com brancos e pós-contato com brancos.
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Os kaiapós têm esse histórico de serem um povo que participou de muitos embates contra os invasores do território e o cacique viveu isso e depois começou a se tornar não mais um líder de combate, mas se tornar um líder intermediador entre o povo dele e o povo branco. Acho que ele teve uma missão de luta pela paz entre os territórios e os povos e isso é muito importante, muito significativo como inspiração para a luta indígena que é feita de muitas formas e por muitas figuras assim.