Cães impetuosos, cavalos rebeldes e outros bichos irônicos, sofridos e sabidos saltam das páginas de “Na arca: Machado de Assis e os animais”, coletânea de escritos machadianos organizados por Fabiane Secches e Maria Esther Maciel. Em bela edição da Fósforo, com capa dura e ilustrações de Gê Viana, o livro reúne narrativas avulsas (algumas bem conhecidas, como “Conto alexandrino” e “A causa secreta”) e crônicas publicadas ao longo de quatro décadas na segunda metade do século 19. Nelas encontramos deliciosas achados como a história do homem que consegue escutar o diálogo entre dois burros (“o da esquerda e o da direita”), inicialmente ressabiados com a implantação dos bondes elétricos.

“De repente ouvi vozes estranhas, pareceu-me que eram os burros que conversavam. Inclinei-me (ia no banco da frente); eram eles mesmos (...).

– O bond elétrico apenas nos fará mudar de senhor.

– De que modo?

– Nós somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, não somos já precisos, vendem-nos. Passamos naturalmente às carroças.

– Pela burra de Balaão! exclamou o burro da esquerda. Nenhuma aposentadoria? Nenhum prêmio? Nenhum sinal de gratificação? Oh! Mas onde está a justiça deste mundo?

(“Conversa de burros”, 16/10/1892)


Especialista em literatura e animalidade, a escritora mineira Maria Esther Maciel teve a ideia de reunir textos machadianos sobre os não humanos. “Quando Maria Esther pensou em selecionar textos do nosso inigualável Machado de Assis sobre os animais, a ideia me pareceu brilhante: a visão do autor sobre a subjetividade animal e a relação entre animais humanos e não humanos é tão complexa que se alinha perfeitamente com algumas discussões que só recentemente ganharam destaque, e, como faz isso na arte, alcança uma sensibilidade que outros discursos não conseguem alcançar”, conta a crítica literária e pesquisadora Fabiane Secches, lembrando que as publicações de Maria Esther sobre o tema foram “referências fundamentais” para a sua pesquisa de doutorado na Universidade de São Paulo. “Desde então, nos aproximamos e tive a alegria de ter conversas preciosas com ela, que me enriqueceram imensamente”, acrescenta.

Além da poesia e dos romances (o mais recente, “Essa coisa viva”, está entre os semifinalistas do Prêmio Oceanos 2025), Maria Esther Maciel é autora de ensaios como “Animalidades: zooliteratura e os limites do humano” (Instante). “Machado de Assis pode ser considerado o precursor brasileiro de toda uma linguagem de autores modernos e contemporâneos comprometidos com uma abordagem mais conscienciosa dos viventes não humanos e de nossas relações com eles”, afirma Maria Esther, no posfácio da edição. “Isso, na contramão de toda uma tradição literária ocidental que tomou o universo zoo como mero provedor de metáforas, símbolos e alegorias para a legitimação da sabedoria humana na hierarquia das espécies”, pontua.

Leia: Maria Esther Maciel: 'Os bichos me ensinaram muito'


Leia, a seguir, a entrevista de Maria Esther Maciel ao Pensar sobre “Na arca”, que inclui no final uma preciosidade: a carta de Machado de Assis para a filha de um casal de amigos que o presentou com um filhote de gato. “No primeiro dia não pude conhecer bem este cavalheiro; ele buscava-me com palavrinhas doces e estalinhos, mas eu fugia-lhe com medo e metia-me pelos cantos ou embaixo dos aparadores”, narra, na pele de felino, o autor de “Dom Casmurro” em “Carta do gatinho preto”.

Maria Esther Maciel: "Ao contrário das narrativas fabulares, os bichos (nos escritos de Machado) não estão ali para representar os humanos nem estão a serviço de uma moral edificante.As falas a eles atribuídas nos textos machadianos têm um propósito crítico em relação à humanidade, aos usos cruéis da razão e à impotência desta diante das subjetividades não humanas."

Alexandre Guzanshe/EM/DA Press e Editora Fósforo/ Divulgação


A relação entre literatura e animalidade tem sido uma constante em suas publicações de não ficção. O que a fascina especialmente neste tema?

Sempre tive uma intrínseca relação com a natureza e os outros viventes que compartilham conosco a experiência do mundo. Foi essa afinidade com as alteridades não humanas que me levou a pesquisar a questão dos animais, bem como as próprias noções de humano, humanismo e humanidade, a partir dos limites e liames que existem entre nós e as demais espécies. Iniciei minhas pesquisas acadêmicas sobre literatura e animalidade por volta de 2007 e, ao mesmo tempo, passei também a criar textos de ficção com essa temática.  Hoje, mais do que nunca, essas questões me movem, tendo em vista a situação de perigo que a natureza e outros seres vivos enfrentam no mundo contemporâneo. 

Em um “zoo imaginário de palavras”, qual o lugar ocupado pelas criações de Machado de Assis?

Elas ocupam uma “arca” literária repleta de animais de diferentes espécies que, longe de serem apenas metáforas e alegorias a serviço dos valores humanos, desestabilizam o antropocentrismo que, ao longo dos tempos, predominou na relação dos humanos com as demais espécies. Machado, com sua arca, abriu correntezas para toda uma linhagem literária de autores animalistas no Brasil dos séculos 20 e 21. Com este livro, Fabiane Secches e eu procuramos mostrar a riqueza e a atualidade do escritor no enfoque de questões que, mais do que nunca, têm mobilizado as discussões contemporâneas sobre o tema.

Quais são os principais animais que integram a chamada “arca de papel machadiana”?

Podemos destacar os bois, cavalos, burros, ratos, cães, gatos e macacos como os principais mamíferos.  A eles se somam aves como o canário, o corvo, a águia, o galo e a pomba; insetos, como as borboletas, as moscas, a cigarra e as formigas; répteis, como o lagarto e a lagartixa. Além das aranhas e dos vermes, entre vários outros. 

Por que Machado pode ser considerado, como afirma no posfácio, “o precursor brasileiro de toda uma linhagem de autores modernos e contemporâneos comprometidos com uma abordagem mais conscienciosa dos viventes não humanos e de nossas relações com eles”?

Machado foi o primeiro escritor brasileiro a questionar explicitamente a noção de humanismo legitimada pelo pensamento racionalista e fazer uma reflexão ético-política sobre a questão animal e as relações entre humanos e não humanos. Ele escreveu contos, crônicas e passagens de romances voltados para a lamentável situação dos bichos num mundo dominado pela ciência e pela supremacia da razão. Com acidez crítica e uma sensibilidade ética diante dos atos de crueldade infligidos contra eles, Machado foi um precursor ao denunciar, em seus textos, as touradas, as práticas de vivissecção nos laboratórios do tempo e a exploração da força animal no trabalho. Chegou a defender o vegetarianismo e mostrar simpatia pelas sociedades protetoras dos animais. 

Poderia citar exemplos de narrativas incluídas no livro nas quais a abordagem de Machado difere de seus contemporâneos?

São muitos os textos machadianos que, a partir de uma perspectiva até então inédita, versam sobre os animais. Poderíamos citar, como os mais evidentes, os contos “A causa secreta”, “Conto alexandrino”, “Ideias de canário” e “Um cão de lata ao rabo”. Entre as crônicas, destacam-se a de 5 de março de 1893, que trata da greve de açougueiros acontecida no Rio de Janeiro; a de 1º de julho de 1894, que evoca e parodia a história bíblica de Noé, assim como faz no conto “Na arca”, e a de 16 de outubro de 1892, também intitulada “Conversa de burros”. 

Permito-me apresentar pelo menos um deles aqui:  o “Conto alexandrino”, que traz a história de dois cientistas que, em busca da fama, mudam-se para a Alexandria de Ptolomeu e passam a dissecar ratos vivos com o intuito de provar que o sangue de rato dado a beber, ainda quente, a um homem, pode fazer deste um larápio. E visto que, segundo Machado, “a ciência, como a guerra, tem necessidades imperiosas”, os personagens passam a cometer as maiores atrocidades contra os pobres bichos, deixando preocupados os “cães, rolas, pavões e outros animais ameaçados de igual destino”. Como a experiência, por incrível que pareça, acaba dando certo, os cientistas se tornam ladrões e começam a fazer sucessivos furtos, até serem presos e condenados à morte. Então, um famoso anatomista da cidade, inspirado pelas experiências de vivissecção dos ratos, resolve transformar prisioneiros em cobaias, submetendo-os aos mais cruéis métodos de intervenção científica. Entre as vítimas estão, por ironia do destino (ou melhor, do autor), os dois sábios cientistas que escalpelaram, vivos, dezenas de ratos. Machado evidencia, com isso, como a crueldade contra os animais acaba por servir de modelo para a crueldade dos homens contra os próprios homens. Um conto que, a meu ver, possui um forte viés biopolítico que confirma o caráter diferencial de Machado na literatura de seu tempo.

Qual a diferença da forma que Machado menciona os animais para as fábulas tradicionais? 

Como nas fábulas tradicionais, Machado dá voz e palavras aos animais em alguns contos e crônicas, como “Ideias de canário” e “Conversa de burros”.  Há também a carta que encerra a nossa coletânea, cujo remetente é um gatinho preto que o autor ganhou da filha de um casal de amigos. Porém, ao contrário das narrativas fabulares, os bichos não estão ali para representar os humanos nem estão a serviço de uma moral edificante. As falas a eles atribuídas nos textos machadianos têm um propósito crítico em relação à humanidade, aos usos cruéis da razão e à impotência desta diante das subjetividades não humanas. Trata-se de uma evocação irônica dos recursos da fábula e uma tentativa do autor em imaginar e expressar ironicamente o que os animais poderiam dizer se tivessem acesso aos recursos da linguagem verbal. Nesse sentido, é, sim, uma subversão dos procedimentos fabulares convencionais. 

Com a sua abordagem dos não-humanos, Machado contribuiu para reinventar a própria noção de humanidade na literatura?

A abordagem machadiana dos não-humanos, ao mesmo tempo que evidencia a crueldade com que eles têm sido tratados pela nossa espécie, reconhece-os como sujeitos inteligentes, sensíveis, dotados de habilidades e saberes próprios sobre a vida.  Com sua afiada ironia, Machado desestabiliza a aclamada superioridade dos homens em relação aos demais viventes. Lembro que o escritor chegou a criar, na pele do homem-filósofo Quincas Borba, a teoria do “humanitismo”, que pode ser tomada como uma paródia ou uma versão cínica (no sentido filosófico desse termo) do “humanismo” tal como este foi concebido no mundo da ciência e da filosofia racionalista. Assim, podemos dizer que ele, em seus textos animalistas, reinventa literariamente os conceitos cristalizados de humano, humanidade e humanismo.

Quais outros escritores brasileiros têm também as suas “arcas”?

De Machado de Assis até hoje, muitos escritores criaram suas “arcas”, valendo-se de diferentes modos de abordagem dos animais de diversas espécies. Entre eles, estão Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, João Alphonsus, Hilda Hilst, Manoel de Barros, Astrid Cabral, Olga Savary e Adriana Lisboa, só para mencionar alguns. Já outros, como Wilson Bueno e Sérgio Medeiros, construíram arcas insólitas, com híbridos, mutantes e criaturas fantásticas. 

“NA ARCA – MACHADO DE ASSIS E OS ANIMAIS”

Organização de Fabiane Secches e Maria Esther Maciel

Ilustrações de Gê Viana

Fósforo

304 páginas

R$ 99,90

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