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Estado de Minas PENSAR

Maria Esther Maciel: 'Os bichos me ensinaram muito'

Em entrevista, a escritora detalha alguns dos temas de seu novo livro, 'Animalidades': '� uma pesquisa que expande o tempo todo'


16/06/2023 04:00 - atualizado 16/06/2023 00:49
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Maria Esther Maciel, autora de 'Animalidades: zooliteratura e os limites do humano', lançamento da editora Instante
Maria Esther Maciel, autora de "Animalidades: zooliteratura e os limites do humano", lan�amento da editora Instante (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

 

Feroz, Jango, Lampi�o, Susi e, at� 2016, Lalinha. O conv�vio com c�es, na inf�ncia em Patos de Minas e na vida adulta em Belo Horizonte, marca a vida da escritora Maria Esther Maciel. E, ainda que indiretamente, impulsiona a nova fase da pesquisa da autora mineira sobre zooliteratura. “Passei a me dedicar aos c�es liter�rios, o que n�o deixou de ser um exerc�cio de luto”, conta ao Estado de Minas, referindo-se � perda da mesti�a Lalinha, mistura de cocker com vira-lata. “O exerc�cio dos afetos na conviv�ncia com ela foi uma das melhores experi�ncias que j� tive”, acredita. 

 

Iniciada formalmente com artigo publicado em 2006 em revista da Unicamp, a pesquisa resulta do interesse da autora de “O livro dos nomes” por enciclop�dias e besti�rios. “Comecei a pensar os animais por outro prisma, como viventes, e como essa viv�ncia aparece na literatura”, lembra.  

 
Leia: Maria Esther Maciel analisa subjetividade dos animais na literatura

Na entrevista a seguir, Maria Esther comenta alguns dos temas do livro “Animalidades”, como a an�lise das representa��es dos animais nas obras de Virginia Woolf, Paul Auster, Hilda Hilst, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade. Ela conta que o trabalho est� longe de se encerrar no livro editado – com esmero e sofistica��o, em um belo projeto gr�fico, com muitas ilustra��es – pela Instante. “� uma pesquisa que se expande o tempo todo, n�o paro de descobrir outras possibilidades”, conta, antecipando que a representa��o dos animais na literatura ind�gena e em textos produzidos por antrop�logos est� entre os pr�ximos campos de estudo.

 

 

Como o livro desdobra uma pesquisa iniciada em “O animal escrito” (2008) e desenvolvida tamb�m em “Literatura e animalidade” (2016)?

Na verdade, essa pesquisa come�ou antes da publica��o de “O animal escrito”, mas foi nesse pequeno livro que minhas reflex�es sobre a presen�a dos animais na literatura se tornaram mais efetivas. Nele, fiz um panorama das diferentes maneiras como os bichos foram abordados por escritores do passado e do presente, ou seja, tracei uma esp�cie de roteiro para que o tema pudesse ser, posteriormente, aprofundado e desenvolvido. No intervalo entre esse livro e o “Literatura e animalidade” ainda organizei outro, com a participa��o de v�rios autores brasileiros e estrangeiros, a que dei o t�tulo de “Pensar/escrever o animal”.  Nesse momento, eu j� estava mais atenta �s quest�es �ticas que envolvem as nossas rela��es com os viventes n�o humanos e me propus a investig�-las no campo da literatura, com vistas a um novo livro. Foi assim que surgiu o “Literatura e animalidade”, em que percorro esse universo a partir de uma incurs�o n�o apenas em textos liter�rios, mas tamb�m na filosofia. Autores como J.M.Coetzee, Michel de Montaigne, Jacques Derrida e Elisabeth de Fontenay foram fundamentais para esse trabalho, assim como a obra de Guimar�es Rosa e a poesia moderna ocidental. Dando continuidade e, ao mesmo tempo, ampliando o repert�rio liter�rio, compus o “Animalidades”, detendo-me mais demoradamente nos “eus” n�o humanos encenados em poemas e narrativas, al�m de elaborar conceitualmente o que chamei de “zoobiografias”, ou seja, relatos liter�rios sobre vidas de animais. Nesse livro introduzo ainda uma dimens�o mais ecol�gica, ao enfocar as po�ticas da natureza na literatura brasileira contempor�nea. 

 

A representa��o na literatura da subjetividade dos n�o humanos � um dos temas do livro. Como selecionou exemplos dessa representa��o na literatura? O que � mais marcante, em sua vis�o, nessa representa��o em obras de autores como Virginia Woolf e Paul Auster?

Para lidar com as figura��es da subjetividade dos n�o humanos na literatura, primeiro percorri os v�rios sentidos que a palavra animal ganhou ao longo dos tempos, mostrando como, sobretudo a partir do final do s�culo 19, os bichos passaram a ser retratados na literatura como sujeitos dotados de sensibilidade, intelig�ncia, habilidades e pontos de vista sobre o mundo. Para selecionar os exemplos, fiz inicialmente um invent�rio de personagens animais que condizem com essa abordagem. Mas privilegiei aqueles que mais me instigaram e me apaixonaram ao longo da pesquisa. Coincidiu que, ap�s ler o romance “Timbuktu”, de Paul Auster, fui convidada a escrever o posf�cio de uma nova tradu��o brasileira de “Flush: uma biografia”, de Virginia Woolf, e me encantei com essas duas biografias ficcionais: uma de um vira-lata e outra de um cocker spaniel ingl�s. Vi pontos de afinidade e disson�ncia entre elas e resolvi sond�-las no livro. Tanto Auster quanto Woolf veem seus personagens caninos como sujeitos com pontos de vista pr�prios, que mant�m rela��es de grande complexidade com os humanos e a vida ao redor. 

 

Por que dedicar aos c�es o que voc� chama de “um espa�o privilegiado no conjunto” e abrir um “canil liter�rio”? E poderia justificar a escolha das mortes caninas analisadas no livro?

Logo que minha cachorra Lalinha morreu, aos 15 anos de idade, comecei uma nova fase de minha pesquisa sobre zooliteratura, passando a me dedicar aos c�es liter�rios, o que n�o deixou de ser um exerc�cio de luto. Ao longo dessa investiga��o, encontrei um verdadeiro canil na literatura de diversos tempos e pa�ses, al�m de algumas reflex�es muito interessantes sobre o tema, como as das pensadoras americanas Marjorie Garber e Donna Haraway, e a do jornalista/escritor franc�s Roger Grenier. Ap�s tratar das biografias caninas de Woolf e Auster, analisei os c�es de Machado de Assis e Clarice Lispector, passando, em seguida, a me concentrar em obras que versam sobre mortes de c�es. Eu j� pensava em escrever algo sobre isso, motivada sobretudo pela impressionante cena da morte da cachorra Baleia no romance “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, assim como a da cadela Karenin em “A insustent�vel leveza do ser”, de Milan Kundera.  Mas quando vi o document�rio “Cora��o de cachorro” que a artista Laurie Anderson fez em homenagem � sua querida amiga canina Lolabelle logo ap�s sua partida, n�o hesitei em ir adiante nesse enfoque tamb�m no cinema. Iniciei com o c�o Argos, da “Odisseia” de Homero e, ent�o, passei a investigar outros livros e filmes, incluindo, � claro, a adapta��o que Nelson Pereira dos Santos fez de “Vidas secas”. Apresentei esse trabalho num col�quio em Portugal e, a convite de uma das organizadoras, transformei-o em um artigo para ser publicado numa revista francesa. Ao compor o livro “Animalidades”, ampliei e transformei esse texto num dos cap�tulos. Acho que � o meu cap�tulo preferido dentre todos, e o que mais me emocionou no processo de escrita. 

 

"Clarice Lispector e Hilda Hilst embaralharam os limites entre o aqu�m e o al�m do humano, transformando a animalidade em uma via de acesso poss�vel � esfera do sagrado, como se v� em 'A paix�o segundo G.H.' e nos poemas hilstianos dirigidos a Deus"

 

Quais as semelhan�as e diferen�as entre a forma que os animais aparecem nas obras de Clarice Lispector e Hilda Hilst?

Clarice Lispector e Hilda Hilst, duas das vozes animalistas mais instigantes da literatura moderna brasileira, levaram bichos de v�rias esp�cies para seus textos e exploraram, cada uma � sua maneira, as rela��es entre animalidade, humanidade e divindade. Ambas conviveram com c�es e escreveram sobre eles, sendo que Hilda acolheu em sua ch�cara em torno de uma centena de vira-latas, com os quais manteve uma rela��o de afeto e amizade. Clarice se ateve aos exerc�cios de animalidade do humano ao tratar da troca de olhares entre personagens femininas e seres n�o humanos, como o b�falo e a barata, enquanto Hilda fez associa��es po�ticas entre a mulher e a ave, o poeta e o porco, a morte e o cavalo, s� para mencionar aqui algumas. As duas escritoras embaralharam tamb�m os limites entre o aqu�m e o al�m do humano, transformando a animalidade em uma via de acesso poss�vel � esfera do sagrado, como se v� em “A paix�o segundo G.H.” e nos poemas hilstianos dirigidos a Deus. Se Clarice � mais visceral, Hilda � mais simb�lica na apresenta��o dos bichos em seus textos. O erotismo tamb�m atravessa a escrita animalista de uma e de outra. Enfim, fica dif�cil expor, em poucas palavras, a complexidade e os paradoxos que caracterizam as escritas dessas autoras sobre os animais.  

 

E Drummond? Como se revela, em versos, o amor do poeta pelas criaturas n�o humanas e no que voc� chama de “o tempo da fazenda, o tempo das vastid�es”?

Drummond mereceu um cap�tulo inteiro no livro, por ter constru�do uma “zoopo�tica” riqu�ssima e ter sido um precursor ao abordar a fauna brasileira sob a perspectiva ecol�gica. N�o bastasse ter levado muitos animais rurais do interior de Minas para sua poesia, em especial os bovinos – t�o presentes na sua inf�ncia, no tempo da fazenda e das vastid�es do campo – deteve-se nos animais em extin��o, defendendo-os com ternura e compaix�o. Tratou tamb�m das pr�ticas corriqueiras de explora��o e crueldade contra as vidas n�o humanas, al�m de mostrar o quanto a natureza est� sempre surpreendendo a nossa raz�o e as nossas certezas sobre o mundo. Um outro dado interessante � que ele foi um militante da causa animal, tendo criado em 1970, junto com a jornalista Lya Cavalcanti, um jornal dedicado � defesa dos bichos. Para n�o mencionarmos as muitas cr�nicas que escreveu sobre o tema.  Em sua obra, os animais s�o sujeitos dignos, dotados de saberes sobre a vida e merecedores de respeito e empatia. Creio que essa face animalista drummondiana precisa ser mais estudada, j� que sobre ela poderia ser escrito um livro inteiro. 

 

Em um dos �ltimos cap�tulos, h� o estudo da representa��o da animalidade na produ��o contempor�nea nacional. Chama aten��o a an�lise desse aspecto na poesia da amazonense Astrid Cabral. O que a interessou nessa obra? Poderia explicar aos nossos leitores o conceito de “escritas h�bridas”?  

Ao procurar livros de poesia sobre animais publicados no Brasil nas duas �ltimas d�cadas, encontrei o “Jaula” de Astrid Cabral, que � uma cole��o de poemas sobre o mundo zoo, com �nfase em muitos bichos amaz�nicos. Fiquei encantada com o livro e me pus a vasculhar mais a obra da autora, nela encontrando muitas outras refer�ncias importantes para a minha pesquisa. Astrid � uma escritora veterana, que j� publicou mais de vinte livros em diferentes g�neros, sempre com um olhar muito peculiar sobre as paisagens e cen�rios da Amaz�nia e de outros territ�rios fora do Brasil. Sua “zoopoesia” � diversificada, evocando, de maneira sens�vel, a on�a, o boto, os b�falos, a lagartixa, as aves, os sapos e a serpente, entre outros animais. 

 

Quanto �s “escritas h�bridas”, elas s�o aquelas que se furtam �s classifica��es, n�o s� por serem uma mistura de prosa, poesia, roteiro de teatro, fragmentos e outras modalidades textuais, mas tamb�m por mesclarem l�nguas, refer�ncias liter�rias e culturais diversas. Dois autores brasileiros contempor�neos que as exercitam com muita inventividade s�o o mato-grossense S�rgio Medeiros e a paranaense Josely Vianna Baptista. Ambos dialogam com as po�ticas de vanguarda e as culturas ind�genas, al�m de evocarem animais, plantas e seres mitol�gicos. Ler esses autores despertou, inclusive, o meu interesse em estudar – numa pr�xima etapa de meus estudos – a presen�a de animais nas literaturas amer�ndias e em obras contempor�neas que, em di�logo com as culturas ind�genas, se voltam para o mundo vivo, para a natureza. 

 

O livro � dedicado a Eneida Maria de Souza (professora em�rita de literatura da UFMG, Eneida morreu em mar�o �ltimo aos 78 anos). Como ela influenciou a sua forma��o intelectual e como ela a influenciou como escritora e leitora?

Eneida foi minha professora de literatura na gradua��o e na p�s-gradua��o, al�m de colega e amiga querida. Teve uma relev�ncia enorme para minha forma��o liter�ria e acad�mica, apresentando-me pensadores contempor�neos que acabaram por se tornar grandes refer�ncias para o meu trabalho, como Roland Barthes, Julia Kristeva, Derrida e Foucault. Seus escritos inovadores sobre Borges iluminaram muito os meus tr�nsitos na obra borgiana. Ali�s, conheci o “Manual de Zoologia Fant�stica”, de autoria do escritor argentino, gra�as a ela e suas aulas.  Com Eneida aprendi a ser contempor�nea do meu pr�prio tempo e a buscar uma vis�o prism�tica, multidisciplinar, sobre a literatura. Al�m disso, ela sempre esteve presente em todos os momentos importantes de minha vida e, desde os tempos de gradua��o, incentivou meu trabalho como escritora. Quando ela partiu no ano passado, eu estava quase finalizando o “Animalidades”, o que me levou a homenage�-la no livro com a dedicat�ria. 

 

A conviv�ncia com os animais � tamb�m uma forma de aprendizado e de exerc�cio de afetos. Nesse sentido, como Lalinha contribuiu, ainda que indiretamente, para a sua an�lise? 

Como j� mencionei, a Lalinha foi fundamental para esse livro e, cabe acrescentar, para toda a minha pesquisa sobre animais na literatura, desde o in�cio.  O exerc�cio dos afetos na conviv�ncia com ela foi uma das melhores experi�ncias que j� tive. Soma-se a isso a minha intensa intera��o com animais rurais e dom�sticos durante minha inf�ncia e adolesc�ncia no interior mineiro. Cheguei a ter um porco de estima��o, o Zeca, um dos animais mais inteligentes e afetivos que j� conheci. O papagaio de minha av� paterna tamb�m teve um papel afetivo e efetivo na minha amizade com os seres n�o humanos, assim como tiveram todos os gatos e c�es que havia no quintal de minha casa em Patos de Minas. Todos esses bichos me ensinaram muito e me levaram a realizar essa pesquisa liter�ria que ainda n�o tem data para terminar. 


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