(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas ESPECIAL FERNANDO SABINO/100 ANOS

Carta de Drummond a Fernando Sabino

Carlos Drummond de Andrade contou como conheceu Sabino, numa mesa de bar, com seus amigos, que "diziam sobre cada coisa a palavra irreverente, imprevista"


12/10/2023 04:00 - atualizado 12/10/2023 03:29
671

Frame do curta documental sobre Carlos Drummond de Andrade que Fernando Sabino rodou com sua produtora de cinema Bem-Te-Vi filmes
Frame do curta documental sobre Carlos Drummond de Andrade que Fernando Sabino rodou com sua produtora de cinema Bem-Te-Vi Filmes (foto: Reprodu��o)

 
Carlos Drummond de Andrade

Oi, Fernando, parece que voc� fugiu dos seus sessent'anos, que devem estar � sua procura em Nova York. Compreendo essa fuga, pois tamb�m j� a pratiquem em ocasi�es de idade redonda – a inc�moda idade redonda que os amigos se encarregam de lembrar, e at� de festejar, porque n�o � com eles.

Pois fique sabendo que para mim voc� est� longe de completar sessent'anos, s� entrou na casa dos quarenta. Em 1943 foi que nos conhecemos, numa inquieta mesa de bar, em Belo Horizonte, � qual se sentavam tamb�m o Otto, o Paulinho, o H�lio, seus companheiros de gera��o. Eram distintas e irrefre�veis juventudes, em torno de um senhor j� meio despido de ilus�es liter�rias e que ainda assim, por tend�ncia � contradi��o de esp�rito, as cultivava.

Conhecer toda uma gera��o de vinte anos, numa noite, atrav�s de seus elementos que, sem sombra de d�vida, seriam os mais representativos, os mais ousados da faixa, foi oportunidade singurar rara em minha vida. Nunca mais se repetiu. Depois, conheci pessoas isoladas, que me despertaram interesse humano ou intelectual, por�m jamais um grupo inteiro, formado de quatro cavaleiros, n�o sei se da T�vola Redonda ou do Apocalipse, pois de tudo voc�s tinham um pouco, em mistura de sonho, desbragamento, f�ria, ingenuidade, amor, pureza. 

Como voc�s falavam, como diziam sobre cada coisa a palavra irreverente, imprevista, que os distinguia da mediocridade e do conformismo! Guardei a imagem dos quatro, que estavam nascendo para mim naquela noite, entre copos de cerveja, em 1943. L� se v�o quarent�nos. � esta, na minha contabilidade, a vera idade de voc�, do H�lio, do Otto, do Paulinho. 

E agora estou reparando que voc� e seus companheiros devem ter formado a �ltima gera��o propriamente liter�ria de Belo Horizonte, se considerarmos a "diversidade unit�ria" do grupo, ainda hoje vis�vel apesar da dispers�o natural da vida. Continuam inapelavelmente os quatro, os marcados, os quatro do "encontro marcado" por um misterioso poder que tanto separa como congrega os seres por meio de temperamentos, afinidades, idiossincrasias, destinos.
 
Depois de voc�s vieram em Minas rapazes talentosos, que fundaram revistas, afirmaram tend�ncias, ocuparam espa�o leg�timo na cria��o e na cr�tica. Mas n�o me parece que tenham formado uma unidade, constitu�do esse ar de fam�lia que caracteriza voc�s. Como caracterizava outros mo�os, os de 1920, na mesma cidade, com igual esp�rito de grupo e sem as antipatias grupais que todos, n�s e voc�s, soubemos evitar. 
 
 

Ent�o, meu caro Fernando, tenho de confessar que colocando-nos a todos no mesmo saco, me sinto muito ligado geracionalmente a voc�s, pois a diferen�a de vinte anos desapareceu numa simples noite de Belo Horizonte em que, diante da mesma cerveja eterna, zumbiam os anseios dos quatro como antes zumbiam os nossos em id�ntica situa��o. E assim me acostumei a v�-los, tempo rolando, com um sentimento de irmandade que me d� prazer. 

� bom saber que a uma dist�ncia de tr�s quadras, tenho voc� pronto a bater papo e a pregar pe�as, depois de vencido o muro de defesa da sua secret�ria eletr�nica. Em mat�ria de pe�as, declaro-me seu devedor, j� que as pregadas por voc� s�o sempre superiores �s que ousei elaborar. Paci�ncia, ainda n�o perdi a esperan�a de maquinar um plano tremendo de desforra de suas peraltices; um dia chego l�. Enquanto isto, vou-me divertindo e me reconfortando com o que voc� escreve, em livro ou jornal, com um senso de humor que � cada vez mais raro entre os nossos prosadores, e do qual voc� possui a f�rmula imbat�vel. 

Voc� soube tirar todos os efeitos poss�veis de um homem nu entre a mulher do vizinho e a inglesa deslumbrada, numa cidade vazia mas cheia de vibra��o e absurdo. Voc� trouxe para o papel um tipo entre doloroso e c�mico, o Vira-Mundo, que a gente n�o pode mais esquecer. Refletiu todas as m�gicas da inf�ncia no espelho, e no grande romance, tra�ou o quadro mais vivo de juventude � procura de si mesmo, que comove hoje leitores de todo o mundo. E a cada semana recolhe e comenta o sem-sentido das coisas, que se torna um sentido quando observado com as doses de mal�cia e sensibilidade do verdadeiro escritor. E isto, meu velho quarent�o, ningu�m lhe disputa. Voc� achou a palavra leve, a frase l�mpida, o ritmo discreto da prosa, que s� se alcan�a quando se consegue atirar para longe todo artif�cio e brilho aparente. A condi��o de escritor anda meio desacreditada no Brasil, pa�s onde o sucesso ntem sempre corresponde � qualidade. 

Mas voc� � dos que mant�m a tradi��o, vitalizando-a. Seu instrumento de trabalho � o mesmo de toda gente, s� que voc� sabe afin�-lo e extrair dele um som inconfund�vel. Prosa de Fernando � uma ast�cia que s� ele mesmo sabe praticar. T�o simples" �? Experimentem manejar o simples sem a arte. 

Afinal, Fernando, n�o disse nada de novo sobre voc�, nem era esta a minha inte��o. Quis apenas lembrar que voc� n�o precisava se esconder dos sessent'anos. Dou-lhe quarenta por fora, pelas minhas contas. Dou-llhe vinte, dou-lhe a madura juvenilidade de sua prosa. E um abra�o do velho companheiro. Volte, Fernando Sabino.

PARAB�NS PELO JORNAL

O poeta Carlos Drummond de Andrade publicou este texto endere�ado a Fernando Sabino em sua coluna no jornal Estado de Minas de 15 de outubro de 1983, tr�s dias depois de o autor de “O encontro marcado” completar 60 anos. Nessa �poca, os dois escritores mineiros viviam no Rio de Janeiro.  


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)