
“A caminho de casa, entro num botequim na G�vea para tomar um caf� junto ao balc�o. Na realidade, estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de contar com �xito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irris�rio no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida di�ria algo do seu disperso humano, fruto da conviv�ncia, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao epis�dico. Nesta perspectiva do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma crian�a ou num incidente dom�stico, torno-me simples espectador e perco a no��o do essencial. Sem nada mais para contar, curvo a cabe�a e tomo meu caf�, enquanto o verso do poeta se repete na lembran�a: 'Assim eu quereria o meu �ltimo poema'.
N�o sou poeta e estou sem assunto. Lan�o ent�o um �ltimo olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma cr�nica. Ao fundo do botequim um casal de negros acaba de sentar-se, numa das �ltimas mesas de m�rmore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na conten��o de gestos e palavras, deixa-se acentuar pela presen�a de uma negrinha de seus tr�s anos, la�o na cabe�a, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou tamb�m � mesa: mal ousa balan�ar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Tr�s seres esquivos que comp�em em torno � mesa a institui��o tradicional da fam�lia, c�lula da sociedade. Vejo, por�m, que se preparam para algo mais que matar a fome (...)”
Este � o trecho inicial de “A �ltima cr�nica”, que, curiosamente, n�o � a �ltima cr�nica das incont�veis que Fernando Sabino escreveu. Foi escrita em 1961, ano em que o romancista, cronista e contista mineiro completou 38 anos, portanto, menos da metade dos 81 que viveu. Mas � um exemplo de como o autor dos romances “O encontro marcado” e “O grande mentecapto” sempre foi um observador perspicaz do cotidiano do mundo � sua volta para construir sua obra entre a realidade e a fic��o e se tornar um dos maiores cronistas brasileiros.
Suas cr�nicas tamb�m correram o mundo, quando morou por dois anos em Nova York e escreveu sobre a vida nos EUA para jornais americanos – muitas inclu�das no livro “A cidade vazia” 1990 – e viajou para Europa e �sia, tamb�m escrevendo sobre essas experi�ncias para jornais e revistas.
Em 1980, Sabino lan�ou o livro de cr�nicas “A falta que ela me faz”. Nesta que d� t�tulo � obra, ele descreve com bom humor e desfecho inusitado as dificuldades insuper�veis que enfrentou no seu apartamento quando a empregada foi embora. Cabe aqui pedir licen�a � mem�ria do escritor para adaptar esse t�tulo e dizer: “a falta que ela (a cr�nica de Sabino) nos faz” hoje em dia para ilustrar a sua relev�ncia como cronista para a literatura brasileira.
O escritor estreou na literatura com os 13 contos de “Os grilos n�o cantam mais”, em 1941, aos 18 anos. J� naquele tempo, Sabino mostrava como construiria sua obra ao longo das d�cadas seguintes, sob o ponto de vista de um narrador que passeia pelo bom humor e pelo drama em um tom confidencial com o leitor oculto.
“O estilo �gil, o tratamento direto da mat�ria, o di�logo desconcertante, a prosa bem-humorada, a segmenta��o da intriga s�o tra�os caracter�sticos que estar�o presentes no restante da obra do ficcionista”, afirma o escritor e cr�tico liter�rio F�bio Lucas no pref�cio de “Fernando Sabino – Obra reunida – volume 1” (Nova Aguilar, 1996), ao comentar a obra de estreia do autor.
Propus aos demais que dali por diante a nossa l�ngua oficial passasse a ser o alem�o. Anairam aprendeu logo. Os dois agentes naturalmente se limitavam a prestar aten��o, um abanando o rabo, o outro as longas orelhas
Fernando Sabino, 'O menino no espelho'
Fabula��o veloz
“H� um ficcionista latente em grande parte das cr�nicas de Fernando Sabino. O g�nero encontrou nele um estilo �gil, uma fabula��o veloz, uma cr�tica aguda do cotidiano”, afirma Lucas.
“A jun��o do registro dos fatos externos inerente a cr�nica de viagem com o caso inventado pela recria��o dom�stica forma a longa trajet�ria da narrativa, a documentar a conviv�ncia e a luta do homem contra o tempo. A cr�nica de Sabino assume ambas as heran�as, apresenta forte cunho ficcional, torna-se um jogo de intensa teatraliza��o. (…) A fantasia ficcional de Fernando Sabino s�o cr�nicas carregadas de drama, inven��o dirigida. O manancial � o mesmo, explorado sempre pela fabula��o de um mestre”, analisa F�bio Lucas.
Assim, engrandecido pela maioria dos cr�ticos, Fernando Sabino, ao longo de seis d�cadas de carreira liter�ria, se tornou refer�ncia na cr�nica liter�ria brasileira. Para quem quiser reler ou pretende se iniciar nelas, o pr�prio autor fez uma sele��o de 50 no livro “As melhores cr�nicas de Fernando Sabino” (BestBolso, �ltima edi��o em 2022)

“Aceita um p�o de queijo?‘‘
Fernando Sabino nasceu e viveu em Belo Horizonte at� os 21 anos, at� se mudar para o Rio de Janeiro. Mas o jeito mineiro de ser e se expressar o acompanhou por toda a vida. A cr�nica “Minas enigma” exp�e essa mineiridade.
“Se sou mineiro? Bem, � conforme, dona. (Sei l� por que ela est� perguntando?) Sou de Belzonte, uai. Tudo � conforme. Basta nascer em Minas para ser mineiro? Que diabo � ser mineiro, afinal? Ingl�s misturado com oriental? � fumar cigarro de palha. Em suma: ser mineiro � esperar pela cor da fuma�a. � dormir no ch�o para n�o cair da cama. � plantar verde pra colher maduro. � n�o meter a m�o em cumbuca. N�o dar passo maior que as pernas. N�o amarrar cachorro com lingui�a. Porque mineiro n�o prega prego sem estopa. Mineiro n�o d� ponto sem n�. Mineiro n�o perde trem. Mas compra bonde. Compra. E vende pra paulista.
Ev�m mineiro. Ele n�o olha: espia. N�o presta aten��o: vigia s�. N�o conversa: confabula. N�o combina: conspira. N�o se vinga: espera. Faz parte do dec�logo, que algu�m j� elaborou. E n�o enlouquece: piora. Ou declara, conforme manda a delicadeza. No mais, � confiar desconfiando. Dois � bom, tr�s � com�cio. Devagar que eu tenho pressa.
Ap�logo: o boi velho e o boi jovem, no alto do morro – l� embaixo uma por��o de vacas pastando.
O boizinho incontido:
– Vamos descer correndo, correndo, e pegar umas dez.
E o boiz�o, tranquilamente.
– N�o, vamos descer tranquilamente, e pegar todas. Mais vale um p�ssaro na m�o.
A Academia Mineira, h� tempos, pagava um jeton rid�culo: 200 cruzeiros – antigos, � l�gico. Um dos imortais, indignado, discursava o seu protesto:
– Precisamos dar um jeito nisso! Duzentos cruzeiros � uma vergonha! Ou 500 cruzeiros ou n�o!
Ao que um colega, prudentemente, aparteou:
– Pera l�, ou 500 cruzeiros, ou 200 mesmo.
Um estado de nariz imenso, um estado de esp�rito: um jeito de ser manhoso, ladino, cauteloso, desconfiado – prud�ncia e capitaliza��o:
– Meu filho, ou�a bem o seu pai se sair � rua, leve o guarda-chuva, mas n�o leve dinheiro. Se levar, n�o entre em lugar nenhum. Se entrar, n�o fa�a despesas. Se fizer, n�o puxe a carteira. Se puxar, n�o pague. Se pagar, pague somente a sua.
Mas todos os princ�pios se desmoronam diante de um lombo de porco com rodelas de lim�o, tutu de feij�o com torresmos, lingui��o frita com farofa. De sobremesa, goiabada casc�o com queijo palmira. Depois, cafezinho requentado com requeij�o. Aceita um p�o de queijo? Biscoito de polvilho? Brevidade. Ou quem sabe um broinha de fub�? N�o, dona, obrigado. As quitandas me apetecem, mas prefiro um golinha de janu�ria, e pronto: estou satisfeito.
Falar de Minas, trem danado, s�. Vasto mundo. Ah, se eu me chamasse Raimundo. Dentro de mim, uma corrente de nomes e evoca��es antigas, fluindo como o Rio das Velhas no seu leito de pedras, entre cidades imemoriais. Prefiro estanc�-las no tempo a exaurir-me em impress�es arrancadas aos peda�os, e que aos poucos descobririram o que resto de precioso em mim – o mist�rio de minha terra, desafiando-me como a esfinge com o seu enigma decifrado, ou devoro-te. Prefiro ser devorado.”
Conversa de mineiro
O conto mais famoso e um dos mais divertidos de Fernando Sabino � “O homem nu”, que tamb�m d� nome ao livro que re�ne 40 contos e pequenas cr�nicas, publicado em 1960. A hist�ria do homem despido que vai buscar o p�o e � surpreendido pelo vento que bate a porta de servi�o e o deixa trancado do lado de fora rendeu bem mais do que as suas tr�s p�ginas originais com adapta��o para dois longa-metragens.
Entre os in�meros contos que escreveu, vale lembrar de outro, “Conversinha mineira”, inclu�do no livro “A mulher do vizinho" (1962) e na colet�nea “Fernando Sabino – Melhores contos” (Record, 2016), que fala do jeito mineiro de ser, tema constante da obra do escritor. Segue “Conversinha mineira”:
“– � bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?
– Sei dizer n�o senhor: n�o tomo caf�.
– Voc� � dono do caf�, n�o sabe dizer?
– Ningu�m tem reclamado dele n�o senhor.
– Ent�o me d� caf� com leite, p�o e manteiga.
– Caf� com leite s� se for sem leite.
– N�o tem leite?
– Hoje, n�o senhor.
– Por que hoje n�o?
– Porque hoje o leiteiro n�o veio.
– Ontem ele veio?
– Ontem n�o.
– Quando � que ele vem?
– Tem dia certo n�o senhor. �s vezes vem, �s vezes n�o vem. S� que no dia que devia vir em geral n�o vem.
– Mas ali fora est� escrito "Leiteria"!
– Ah, isso est�, sim senhor.
– Quando � que tem leite?
– Quando o leiteiro vem.
– Tem ali um sujeito comendo coalhada. � feita de qu�?
– O qu�: coalhada? Ent�o o senhor n�o sabe de que � feita acoalhada?
– Est� bem, voc� ganhou. Me traz um caf� com leite sem leite.
– Escuta uma coisa: como � que vai indo a pol�tica aqui na sua cidade?
– Sei dizer n�o senhor: eu n�o sou daqui.
– E h� quanto tempo o senhor mora aqui?
– Vai para uns quinze anos. Isto �, n�o posso garantir comcerteza: um pouco mais, um pouco menos.
– J� dava para saber como vai indo a situa��o, n�o acha?– Ah, o senhor fala da situa��o? Dizem que vai bem.
– Para que Partido?
– Para todos os Partidos, parece.
– Eu gostaria de saber quem � que vai ganhar a elei��o aqui.
– Eu tamb�m gostaria. Uns falam que � um, outros falam queoutro. Nessa mexida...
– E o Prefeito?
– Que � que tem o Prefeito?
– Que tal o Prefeito daqui?
– O prefeito? � tal e qual eles falam dele.
– Que � que falam dele?
– Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto � Prefeito.
– Voc�, certamente, j� tem candidato.
– Quem, eu? Estou esperando as plataformas.
– Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que hist�ria � essa?
– Aonde, ali? U�, gente: penduraram isso a�...
� uma aula de portugu�s, sujeito, predicado e complemento. Concord�ncia, reg�ncia. Figuras de ret�rica. Idiotismos lingu�sticos. J� aprendemos o que � anacoluto - n�o � um palavr�o
Fernando Sabino, 'A �ltima flor do L�cio'
Reencontro fantasma
Ao longo de sua carreira liter�ria, Fernando Sabino teve tamb�m encontro – n�o marcado – com fantasmas. Na cr�nica “Fantasmas de Minas” – inclu�da na colet�nea “As melhores hist�rias de Fernando Sabino – 50 textos escolhidos pelo autor” (editora BestBolso, 2016) –, ele conta:
(…) “Os fantasmas de Minas. Em Tiradentes, o do padre Toledo passeia pelo imenso casar�o onde morou, hoje transformado em museu. N�o se v� viva alma pela ruas: a cidade muito quieta sob o sol, caiada de banco como um sepulcro, tudo parado nas ruas mortas. Resolvo seguir viagem, e sem olhar para tr�s, para n�o me transformar em est�tua de pedr�o sab�o.
(…) E em Belo Horizonte o fantasma sou eu pr�prio. Procuro nestas ruas mal-assombradas a cidade invis�vel onde vivi at� a juventude. Ao dobrar uma esquina, esbarro com o fantasma de um jovem de vinte anos. De volta ao Rio, sinto que na estrada alguma coisa me acompanha: alguma coisa feita de ar e imagina��o, que n�o � propriamente um fantasma, mas o esp�rito de Minas a impregnar-me de passado e de eternidade. E acelero, confortado, em dire��o ao futuro.”