
“Takruk Mik – O livro da V� Laurita”, hist�ria in�dita narrada pelo rec�m-empossado acad�mico Ailton Krenak, � um dos destaques da revista, que tem capa de Jorge dos Anjos e “orelha” de Edimilson de Almeida Pereira. Nela, o autor recupera a impressionante trajet�ria da lideran�a Laurita, retrato da saga ao direito � exist�ncia dos Krenak e de todos os ind�genas do Brasil.
� uma travessia penosa, de muito sofrimento e dores, que se inicia com o decreto de guerra aos Botocudos, editado nos primeiros anos do s�culo 18 por dom Jo�o VI, e a implac�vel persegui��o e ca�ada �s etnias que a ele se seguiu; passando pelo circo de horrores do s�culo 20, em que o m�dio Rio Doce, tornou-se o �ltimo ref�gio das fam�lias dos territ�rios ind�genas originais de Minas e do Esp�rito Santo, escorra�adas de suas aldeias.
Apesar de em 1920 ter havido o aldeamento definitivo nas terras Krenak do M�dio Rio Doce, novas d�cadas se seguiram de cerco, viol�ncias e abusos cometidos por colonos e posseiros que ocuparam o territ�rio, submetendo os ind�genas a novos deslocamentos for�ados.
O Servi�o de Prote��o ao �ndio – SPI, precursor da Funai, se omitiu e inclusive participou de passagens tenebrosas dessa persegui��o, jamais cessada. Durante a ditadura militar, sob a complac�ncia da Funai, ind�genas de todas as etnias do pa�s, tidos como “rebeldes” ou “problem�ticos” foram empurrados ao Reformat�rio Agr�cola Krenak, no munic�pio de Resplendor, onde frequentemente acorrentados, torturados e v�timas de abuso, escreveram a sangue mais uma triste p�gina da hist�ria da viol�ncia institucional do estado brasileiro contra os povos origin�rios.
� na voz de V� Laurita e das hist�rias ancestrais um dia por ela reveladas aos sobreviventes da etnia, entre os quais o pr�prio Ailton Krenak, que a hist�ria deste povo � apresentada.
Um relato sens�vel, emocionante que registra a mem�ria coletiva de resili�ncia e beleza de uma l�ngua e cultura, que sobrevive � viol�ncia quando n�o promovida, estimulada pelo estado brasileiro. Em janeiro de 2018, V� Laurita faleceu, n�o se sabe ao certo de qu�, mas sabe-se que com muita tristeza, a repetir: “Watu morreu e eu n�o tenho que viver”. Watu � rio sagrado.
Segue principal refer�ncia da reserva Krenak, � margem esquerda do M�dio Rio Doce, conquistada a f�rceps em decis�o judicial que se arrastou por d�cadas. Quando corria ainda vivo, Watu foi sepultado, em 5 de novembro de 2015 pela lama t�xica arrastada da Barragem do Fund�o, da Samarco, em Mariana.
“Takruk Mik – O livro da V� Laurita” integra alentado dossi� tem�tico da revista da Academia Mineira de Letras, que, sob o t�tulo “Poesia Ind�gena de Minas Gerais”, foi organizado por Ailton Krenak e a professora Maria In�s de Almeida.
“E quando um rio � a art�ria do povo que leva seu nome, seu drama – poesia: Watu? O rio dos ‘Botocudo’ foi envenenado, e sua Mata Atl�ntica, cortada. Quais hist�rias ainda ser�o capazes de manter a respira��o de sua l�ngua, que continua, no entanto, sobrevivente? Uma mulher, Laurita, que � uma p�tria, cantando suas preces a esse rio-pai, � a poesia pura desses que antigamente usavam botoques nos l�bios”, observa Maria In�s de Almeida.
Escritores ind�genas na l�ngua original
Igualmente potente s�o as hist�rias e poesias de escritores Patax�, Xacriab�, Kaxix�, trazidas na pr�pria l�ngua original – traduzidas ao portugu�s. S�o eles: “Mimnoxop yay – Saudades da �rvore comprida”, de Ros�ngela Tugny; “Txopai e Itoh�”, de Kan�tyo Patax�; “As palavra d’�s, o subeio da Iai� nossa”, de Ercina Xacriab�; “Iai� Cabocla”, pelos professores da Aldeia Brejo Mata-Fome.
Um dos textos recupera a voz do l�der anci�o Djalma Kaxix�, registrada por seu neto, o professor Gleyson Kaxix�, no livro “O povo Kaxix�: compreendendo sua hist�ria e seu jeito de comunicar”, publicado em 2012 pelo N�cleo Literaterras, da Faculdade de Letras da UFMG. O convite � viagem ao cora��o do Brasil � de Djalma Kaxix�: “Eu v� mostrar isso aqui d’antes de exist� branco! Naquele tempo, Kaxix� tinha forno pra cozinh� as panela de barro. E l� na frente tem o cement�rio e as urna de barro, que tamb�m j� passou tudo nas filma��o.
Quando o povo fala: quand’� que pispi�? Mas t�’qui a prova na minha m�o, aqui t� verdade, aqui na minha m�o! Aqui t� a escritura do povo Kaxix�, d’antes d’existir branco e negro! A intelig�ncia do povo da floresta t�’qui nesse caco de cer�mica na minha m�o, e o povo t� vendo coisa que j� vem passando de gera��o, onde qu’eu sou um del’s: neto e bisneto da M�e Juana! Hoje n�is t� noutra gera��o: as gera��o antiga t�o na minha m�o! Tinha forno, tinha cement�rio aqui do povo da M�e Juana e tamb�m n�is, do povo da Tia Vov�. Aqui t� o p� da hist�ria Kaxix�! O povo Kaxix� comprova”.
Literatura africana
A edi��o especial do centen�rio da Revista da Academia Mineira de Letras destaca tamb�m um segundo dossi� tem�tico, das literaturas africanas de l�ngua portuguesa, organizado pela professora Nazareth Soares Fonseca, pesquisadora do tema, e pelo presidente da Academia Mineira de Letras, Rog�rio Faria Tavares.
Assim como as etnias originais do Brasil, trata-se tamb�m de di�logo profundo que se estabelece com a mem�ria dos povos de Angola, Cabo Verde, Guin�- Bissau, Mo�ambique e S�o Tom� e Pr�ncipe, submetidos � coloniza��o portuguesa, muitos escravizados. Essa experi�ncia coletiva da maldade humana brota na beleza da literatura de seus escritores, revelada nesta edi��o especial da revista em artigos de especialistas de todos esses pa�ses.
“Os artigos recortam algumas fei��es liter�rias dos cinco pa�ses africanos que t�m o portugu�s como l�ngua oficial, para demonstrar a vitalidade de literaturas muito jovens ainda, j� que, embora possam ser reconhecidos textos liter�rios produzidos por escritores oriundos dos espa�os colonizados por Portugal no continente africano, desde o s�culo XIX, somente a partir do s�culo XX, mais especificamente da d�cada de 1930, em Cabo Verde, e da d�cada de 1950, em Angola e Mo�ambique, surgiram movimentos que investiram na autonomia liter�ria dos pa�ses que representavam”, descreve Nazareth Soares Fonseca. Segundo ela, ao defenderem uma express�o liter�ria voltada “�s quest�es da terra, do ch�o em que brotam”, esses movimentos, com diferentes caracter�sticas, buscaram a maioridade liter�ria, independentemente dos modelos europeus, inclusive elevando-se � forte censura imposta aos intelectuais e escritores que emprestaram importante contribui��o � luta anticolonial.
O dossi� apresenta em m�dulos separados os artigos sobre a literatura de cada pa�s, porque, embora germinem no solo comum da causa libert�ria, assumem caracter�sticas espec�ficas em cada lugar. “As considera��es sobre a poesia dos poetas e poetisas que cantam o sofrimento do povo subjugado pelo colonialismo e preanunciam a conquista da liberdade – como se mostra na poesia de Agostinho Neto e Alda Lara, de Angola, Jos� Craveirinha, No�mia de Sousa, de Mo�ambique, e Alda Esp�rito Santo, de S�o Tom� e Pr�ncipe – indicam diferen�as de estilo, vis�o de mundo e posicionamento pol�tico”, afirma Nazareth Soares Fonseca.
Tais aspectos se expressam intensamente nas propostas liter�rias cultivadas em cada pa�s no per�odo p�s-independ�ncia, sublinha Nazareth Soares Fonseca, lembrando que cada qual, busca e conquista horizontes pr�prios.
“Cada escritor e cada escritora dos espa�os africanos que t�m o portugu�s como l�ngua oficial, ao mesmo tempo que se situam em um contexto de express�o liter�ria demarcado pelo uso da l�ngua oficial do pa�s, encenam, em seu fazer liter�rio, de forma peculiar, as tens�es decorrentes do uso da l�ngua oficial do pa�s na pr�tica liter�ria exercida em espa�os de predomin�ncia comunicacional oral”, explica ela.
� assim que as l�nguas africanas originais tensionam e provocam dispers�es no idioma portugu�s, sejam os crioulos, l�nguas de comunica��o em Cabo Verde, Guin�-Bissau e S�o Tom� e Pr�ncipe, sejam em Angola e Mo�ambique. Em cada localidade, sustenta Nazareth Soares Fonseca, a literatura se enriquece com apropria��es de recursos da fala e com as desestabiliza��es provocadas pelos embates interdiscursivos e experimenta��es requeridas pela escrita liter�ria.
S�o artigos de Angola: “Agostinho Neto (1922-1979), um escritor e intelectual org�nico angolano do s�culo XX”, por Lu�s Kandjimbo; “Alda Lara: poesia, conto e trabalho acad�mico”, por Fabio Mario da Silva; “ Viol�ncia, den�ncia e resist�ncia ancestral em Boaventura Cardoso”, por Jurema Oliveira; “ Notas sobre a trajet�ria liter�ria e pol�tica de Luandino Vieira”, por Maria Nazareth Soares Fonseca; “ Jo�o Melo, poesia e prosa: o espet�culo da vida a partir da literatura”, por Tania Mac�do; “Manuel Rui”, por Florentina da Silva Souza; “Ondjaki, um fazedor de (des)lembramentos”, por Renata Flavia da Silva; “Noite acesa de palavras: a po�tica de Paula Tavares”, por Assun��o de Maria Sousa e Silva; e “Pepetela: experi�ncia e fic��o”, por Rita Chaves.
De Cabo Verde, a revista traz os artigos: “Arm�nio Vieira”, por M�rio C�sar Lugarinho; “Do deserto das pedras � deser��o da pobreza: breve apresenta��o da poesia de Corsino Fortes”, por J�lio Machado;” A escrita de Dina Sal�stio: inten��o pol�tica e est�tica”, por L�lian Paula Serra e Deus; “Breve retrato do poeta Filinto El�sio (ou o “receitu�rio deste tabuleiro”)”, por Silvio Renato Jorge; “Germano Almeida, um contador de hist�rias ressignificadas”, por Roberta Maria Ferreira Alves; “Os percursos po�ticos de Jorge Barbosa”, por Luciana Brand�o Leal; “Orlanda Amar�lis: um olhar sens�vel �s experi�ncias de mulheres imigrantes”, por Simone Pereira Schmidt; “Apresentando Vera Duarte: de Cabo Verde para o mundo”, por Simone Caputo Gomes.
S�o artigos de Guin�-Bissau: “Abdulai Sila: letras que agenciam a esperan�a”, por Wellington Mar�al de Carvalho; “Odete da Costa Semedo, escritora guineense. E bem mais.”, por Moema Parente Augel; “Tony Tcheka: institui��o liter�ria, patriotismo e interven��o social”, por Pires Laranjeira.
De Mo�ambique, os textos versam sobre os escritores: “Eduardo White: a poesia em metamorfose iluminada”, por Ana Mafalda Leite; “Jo�o Paulo Borges Coelho: fic��o e frui��o”, por Nazir Ahmed Can; “Craveirinha: a palavra e o tempo”, por Natalino da Silva Oliveira; “L�lia Mompl�: letras que reinventam os compassos da Hist�ria”, por Franciane Concei��o da Silva; “Mia Couto, uma grandeza mi�da”, por Maria Zilda Ferreira Cury; “Cantos de insubordina��o e ancestralidade em No�mia de Sousa”, por Karina de Almeida Calado; “Paulina Chiziane, tecel� de est�rias, hist�ria e liberdade”, por Carmen Lucia Tind� Secco; “Ungulani Ba Ka Khosa e a escrita do ‘n�o’”, por Vanessa Ribeiro Teixeira.
De S�o Tom� e Pr�ncipe, os artigos versam sobre os escritores: “Dona Alda Esp�rito Santo: li��es de resist�ncia e felicidade”; por Maria Teresa Salgado Guimar�es da Silva; “Concei��o Lima: uma po�tica da descoloniza��o”, por Inoc�ncia Mata; e “Francisco Jos� Tenreiro, um poeta insular e da negritude”, por Agnaldo Rodrigues da Silva.
Revista da Academia Mineira de Letras
• N�mero 81
• 472 p�ginas
• Inclui os dossi�s “Literaturas africanas de l�ngua portuguesa” – organizado por Maria Nazareth Soares Fonseca e Rog�rio Faria Tavares – e “Poesia ind�gena de Minas Gerais” – organizado por Ailton Krenak e Maria In�s de Almeida.
• Lan�amento neste s�bado (23/7), �s 11h, na Biblioteca P�blica Municipal de Ouro Preto (Rua Xavier da Veiga, 309, Centro). Conte�do integral dispon�vel, a partir de 1º de agosto, no site da AML.
Lan�amento em Ouro Preto
O n�mero 81 da revista da Academia Mineira de Letras (AML) ser� lan�ado neste s�bado na Biblioteca P�blica de Ouro Preto. A sede da Academia ser� simbolicamente transferida para a cidade amanh� e domingo. Al�m do lan�amento, a sess�o tamb�m homenagear� os 150 anos de nascimento do poeta e patrono Alphonsus de Guimaraens, e os cem anos da revista, fundada em 1922, quando o presidente da institui��o era o poeta M�rio Franzem de Lima (irm�o de Augusto de Lima). O acad�mico Caio Boschi, vice-presidente da AML, falar� sobre M�rio de Lima e o neto de M�rio, Luiz Ot�vio de Lima Pereira, agradecer� a homenagem em nome da fam�lia. Entre as presen�as confirmadas, est�o os organizadores dos dois dossi�s inclu�dos na revista: as professoras Nazareth Soares Fonseca, Maria In�s de Almeida, o acad�mico Ailton Krenak e Rog�rio Faria Tavares, presidente da AML.
TRECHO
“Takruk Mik, “O livro da V� Laurita”, de Ailton Krenak
(“Para continuarmos a ouvir as hist�rias de Laurita Krenak, a matriarca que liderou sua fam�lia na beira do Rio Eme”)
“Foi esta dupla formada por Funai e pol�cia local a servi�o dos fazendeiros que transformou um lugar que tinha sido reservado como terra ind�gena em col�nia penal em um verdadeiro centro de tortura, como mais tarde ficou revelado. Voltar para casa para estes �ndios era ir para a cadeia, mas, mesmo assim, nunca desistiram. E, depois de uma breve parada na aldeia do Itariri, como h�spedes do Xeram�i Ant�nio Branco, a mo�a pegou o caminho de volta para casa, agora s� com seu pai e sua m�e, pois tinham perdido para sempre aquele irm�o que ela tanto amava.
(...)
Depois de peregrinar pelas esta��es de trem que ligavam Minas a S�o Paulo e Rio, sem dinheiro e falando portugu�s de �ndio, esta fam�lia chegou � beira do Rio Doce. Descendo na pequena esta��o da EFVM21 chamada Krenak, atravessaram o rio na barca que fazia o servi�o e dormiram nas lajes de pedra, que mantinham um calor reconfortante quando anoitecia. Uma �nica fam�lia de �ndios tinha conseguido permanecer naquela terra invadida por posseiros e de arrendamentos feitos pela Funai. Com a chegada de Laurita e seus pais, agora eram duas fam�lias resistindo � extin��o da aldeia.
Esta aldeia vem resistindo �s investidas dos inimigos quase desde a sua cria��o, em 1926, para abrigar os �ndios das florestas do Rio Doce. Muitos pequenos grupos de sobreviventes das invas�es de colonos andavam perdidos pelas serras mineiras e alguns guerreiros ainda insistiam em chefiar ataques a s�tios e fazendolas que vinham sendo abertas nas vilas pr�ximas ao curso do Rio Doce e seus afluentes. Eram recha�ados a tiros de espingarda e ca�ados por grupos de colonos armados de fac�es e cartucheiras at� a morte. Isto levou o governo a criar uma reserva ind�gena no M�dio Rio Doce, perto de Aimor�s, descendo para o Esp�rito Santo. Mesmo assim, nem todos os �ndios ficavam dentro desta reserva, pois ainda eram livres, como seus antepassados ca�adores, e n�o podiam aceitar uma vida de gado, dentro de quatro linhas demarcando uma terra. Os brancos, inclusive funcion�rios do governo que eram pagos para proteger e dar assist�ncia para os �ndios, aproveitavam-se disto. Usavam as terras para criar bois, derrubavam a mata para vender madeira e arrendavam terras para fazendas dentro das terras ind�genas. Isto na d�cada de 1930 e 40. E isto foi se repetindo at� Laurita e sua fam�lia serem tamb�m despachadas, dando lugar aos arrendamentos e � titula��o fajuta de terras feitas pelo estado de Minas Gerais, atrav�s da Rural Minas. Foi uma terra invadida e loteada pelo estado que os �ndios tiveram que abra�ar e fazer virar uma aldeia ind�gena. E por ela Laurita e seus pais tiveram que lutar mais uma vez para que fosse respeitada como sua aldeia Krenak. Uma luta para a vida inteira.”