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Estado de Minas PENSAR

S�rgio Abranches: 'Escrever sobre o �dio foi quase uma imposi��o'

No terceiro romance, 'O int�rprete das borboletas', o soci�logo recorre � fic��o para mostrar o impacto das discuss�es pol�ticas nas fam�lias brasileiras


22/07/2022 04:00 - atualizado 28/07/2022 21:13

Um dos int�rpretes do Brasil contempor�neo, S�rgio Abranches recorreu � fic��o para retratar os dias desleais que vivemos. O novo romance do soci�logo e escritor, “O int�rprete das borboletas” (Record) � um livro escrito no calor da hora sobre a invas�o das emo��es pol�ticas na vida familiar dos brasileiros, como define o autor.

 

 Sérgio Abranches
Abranches: 'A linguagem do aniquilamento do outro invadiu o cotidiano afetivo e produz dor, medo e raiva' (foto: Rafaela Cassiano/Divulga��o)
“J� havia escrito um ensaio sobre �dio e polariza��o. Mas faltava expressar os efeitos emocionais dessas paix�es extremadas na vida das pessoas. Conclu� que este era um exerc�cio para a fic��o”, conta, em entrevista ao Pensar do Estado de Minas.


Mineiro de Curvelo, Abranches mora no Rio de Janeiro desde 1978. Mas ambientou boa parte de sua narrativa em bairros de S�o Paulo e nos arredores da metr�pole paulistana.
 
“Eu queria esse cen�rio hiperurbano de S�o Paulo, sem o respiro do mar. Al�m disso, precisava do distanciamento entre minhas personagens e meu ambiente mais dom�stico. Queria, tamb�m, um contraste entre o modo paulista de ser e o carioca. Essa diferen�a de esp�ritos, definidos por ecologias urbanas distintas, tamb�m interfere no modo como esses �dios atuam nas pessoas”, acredita.

Estruturado a partir de dois n�cleos familiares, “O int�rprete de borboletas” apresenta conflitos nascidos da divis�o provocada pela radicaliza��o na pol�tica brasileira.
 
“Politizamos as emo��es”, constata um dos personagens. “Hoje, em fam�lia, o mais importante � escolher o momento de se calar: � um ato de toler�ncia amorosa”, complementa. “Mas o sil�ncio � conformista”, rebate outro personagem. E assim se inicia outro impasse em um livro dolorosamente atual. A seguir, a entrevista que Abranches concedeu, por e-mail, com algumas perguntas formuladas a partir de trechos do terceiro romance (os anteriores s�o “Que mist�rio tem Clarice?” e “O pelo negro do medo”).
  
Como surge “O int�rprete de borboletas”?
 
J� estava atento para a invas�o das emo��es pol�ticas na vida familiar desde que vi uma entrevista da M�riam Leit�o (jornalista e mulher do autor) com um casal na Venezuela dividido pela ades�o de um, e oposi��o de outra, � nova constitui��o chavista. Era diferente do que vivi por exemplo, durante a ditadura militar, ou das divis�es na hist�ria pol�tica da rep�blica de 1946. Agora vivemos uma politica de �dio e polariza��o.
 
Tentei analisar o fen�meno em um breve ensaio para uma colet�nea da Companhia das Letras: “Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje”. Um ensaio de sociologia pol�tica e psicologia social. Mas faltava expressar os efeitos emocionais dessas paix�es extremadas na vida das pessoas, no cotidiano.
 
Conclu� que este era um exerc�cio para a fic��o. O gatilho para iniciar a escrita veio da observa��o de uma adolescente deprimida porque foi cancelada pelas melhores amigas no col�gio, por pensar diferente delas sobre o resultado das elei��es de 2018.
 
Acabou tendo que mudar de col�gio. Comecei a escrever e pesquisar para construir os flagrantes dessa invas�o do cotidiano pelos �dios pol�ticos e as personagens que fariam sentido. 

� um romance que se passa no tempo presente, reproduzindo discuss�es atuais. O que o fez levar esses temas para a fic��o?
 
Eu me dei conta de que esse dom�nio da pol�tica pelas emo��es extremas tipo devo��o versus �dio, essa linguagem do aniquilamento do outro que carrega a morte virtualmente desejada dos opostos, n�o invadia apenas a vida social, mas o cotidiano afetivo das pessoas individualmente. Produzia dor, medo, raiva reais.
 
N�o me pareceu poss�vel tratar disso com a frieza da sociologia e da psicologia social. Era necess�rio entrar nas almas das pessoas, dar-lhes voz, pesquisar seus sentimentos pessoais, suas d�vidas, suas afli��es.

Uma das palavras que mais aparecem no livro � “�dio”, definido em uma das passagens “n�o como um oposto do amor, mas a sua nega��o absoluta”. Por que escrever sobre o �dio? Como buscar um ant�doto para essa nega��o?
 
Escrever sobre o �dio foi quase uma imposi��o. Est�vamos em plena pandemia. Imaginei que esses sentimentos negativos, essa nega��o, seria arrefecida pela trag�dia coletiva e particular, pelos corpos empilhados, pela priva��o de ar. Mortes terr�veis.
 
Mas, n�o, o �dio seguiu seu curso, o presidente frio, debochando das mortes, via as v�timas da doen�a como fracos, pessoas invadindo hospitais para impedir o tratamento, movimentos para impedir que as pessoas tomassem vacina. Era como negar a boia salva-vidas aos afogados. O tema atravessou a escrita ficcional em que me empenhava na pandemia. Havia escrito um conto sobre a pandemia para um projeto da Amazon reunindo autores das tr�s principais ag�ncias liter�rias.
 
Estava dedicado a escrever uma fic��o que nada tinha a ver com os �dios da pol�tica nem com a pandemia. Mas minha cabe�a estava povoada de casos sobre essas emo��es extremadas. Os personagens come�aram a surgir, a imagem da adolescente deprimida n�o me abandonava. Comecei a escrever notas, a esbo�ar cenas e personagens, da� comecei a pesquisar fatos e pessoas. Logo passei a escrever a primeira vers�o.

Como buscar um ant�doto para essa nega��o?
 
Essa nega��o surgiu na pol�tica, invadiu as igrejas, os locais de trabalho, as fam�lias, as rodas de amigos. N�o sei por onde come�ar a erradic�-la. No discurso de aceita��o da vit�ria para a presid�ncia da Col�mbia, Gustavo Petro come�ou dizendo que a sua seria a pol�tica do amor e da vida.
 
Do amor, porque buscaria o entendimento nacional, o abandono dos �dios, um consenso nacional, com o objetivo de pacificar a Col�mbia, erradicar as armas. Da vida, porque queria paz, justi�a social e justi�a ambiental.
 
Talvez este seja o caminho do ant�doto, combater os �dios, onde eles come�aram, buscando um novo entendimento pol�tico para que cada pa�s encontre um novo rumo. Talvez deva come�ar nos templos e nas escolas. Talvez, nas fam�lias, reconciliando irm�os em posi��es polares na pol�tica. Realmente, � um labirinto para o qual n�o tenho o fio que conduz � sa�da.

O livro come�a em um “t�nel escuro, que acaba no abismo da pura escurid�o”. O Brasil est� nesse t�nel?
 
O Brasil e o mundo est�o nesse t�nel. N�s estamos passando por uma metamorfose social global. Sabemos o que fomos e somos, mas n�o sabemos o que seremos depois dessa metamorfose.
 
Sairemos um animal nojento, como na metamorfose de Kafka? Ou sairemos lindas borboletas? Depende das escolhas que fizermos ao longo dessa travessia metam�rfica.  

Como foi o processo de dar voz a personagens mais jovens e que se expressam por meio de outras linguagens, como o graffiti e o slam? Chegou a fazer algum tipo de pesquisa?
 
Fiz muita pesquisa para construir personagens desse universo do grafite, do slam e do rap. Tenho um filho designer que circula muito nesse mundo e conhece v�rios personagens daqui e de outros pa�ses. Rodrigo me ajudou a comp�-los tanto nas conversas que temos h� anos sobre esse mundo, quanto lendo a pen�ltima vers�o para checar a corre��o do que escrevi. Al�m disso, mergulhei nos slams, ouvi muito rap.
 
Eu j� estava interessado nesta cultura urbana cheia de talento e sentimentos fortes do rap e do hip hop e da extraordin�ria arte urbana mural que � o grafite. Li alguns livros. Ilustro muitos posts de minha p�gina com graffitis.
 
Tanto o grafite, quanto o rap e o slam s�o express�es muito aut�nticas, muito viscerais da sociedade contempor�nea, seus conflitos e seus apartamentos. Eu queria, por outro lado, retratar esse mundo do meu lugar de fala, como homem branco. Tentar mostrar como a branquitude encara e discrimina a negritude.

Um dos personagens cita “Os dem�nios”, de Dostoi�vski. Quais outros livros da fic��o t�m personagens que poderiam estar vivendo nos dias de hoje?
 
Falo dos livros que me marcaram e que t�m ecos das quest�es que trato hoje e, por isso tenho revisitado. Uma parte de “Os Irm�os Karamazov” poderia ser trazida para agora. Certamente os personagens de “Pais e filhos”, de Turgu�niev, poderiam ser atualizadas.
 
Acho o mesmo de “O homem sem qualidades” de Musil. Com certeza, situa��es de “Os son�mbulos”, de Hermann Broch. De “O lobo da estepe”, de Hermann Hesse.
 
De “O Ateneu”. de Raul Pompeia. S�o personagens e enredos que lidam com divis�es entre gera��es e pessoas, com as afli��es das travessias de �poca, do mal se enredando entre as pessoas. N�o por acaso s�o, de algum modo, romances de travessia.

“Toda transi��o assusta”, afirma um dos personagens. E a sua transi��o da n�o-fic��o para a fic��o chegou a assust�-lo?
 
N�o senti como uma transi��o abrupta. Eu comecei escrevendo fic��o, contos, muito jovem. Cheguei a publicar alguns em suplementos liter�rios. Depois, tive que me dedicar � minha forma��o acad�mica e passei um tempo sem escrever fic��o, mas jamais sem ler fic��o. Retomei a escrita de contos, ap�s terminar o doutorado, publiquei alguns esporadicamente.
 
Dois, por exemplo, sa�ram na revista “Intelig�ncia”, ent�o editada por meu amigo Wanderley Guilherme dos Santos, polit�logo que tamb�m escrevia fic��o.
Publiquei outro na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras. Mas, nesse tempo, eu me dediquei mesmo a obras acad�micas. Quanto retomei a fic��o, promovi uma mudan�a tamb�m na minha n�o-fic��o, levando-a para o ensa�smo e me afastei do formato acad�mico.

 Voc� tamb�m sente vontade de largar tudo e se dedicar �s borboletas e brom�lias, como o Velho, o personagem que tenta apontar caminhos para sair da trilha de �dio e ressentimento? Como o contato com a natureza o ajuda a enfrentar os dias que vivemos?
 
Nunca pensei em largar tudo e me dedicar �s borboletas e brom�lias, embora as ame, como aos p�ssaros. N�s mantemos uma pequena reserva de Mata Atl�ntica em Santos Dumont (MG) e temos muitas borboletas e uma popula��o significativa de p�ssaros.
 
A natureza me acalma. Aprendo muito com ela tamb�m. Ela tem do�ura e amargura, tem mel e ferr�o.  P�ssaros, borboletas e v�boras. Tem presas e predadores. N�o obstante, sem a interven��o destrutiva dos humanos, ela tem equil�brio e harmonia.   

“S� h� sa�da em um novo come�o”, aponta um dos personagens. Quais seriam as bases para um recome�o?
 
N�s temos um mundo novo a construir. N�o consigo imagin�-lo constru�do sobre as mesmas bases que o nosso. Pensando no Brasil em particular, por um momento, nossa sociedade foi constru�da sobre dois pilares fundamentais que precisamos superar, o patriarcalismo e a escravatura, ambos sintetizados na casa grande. Deles nasceram o machismo e o racismo como elementos estruturais da nossa vida social.
 
Quando olhamos outros pa�ses, encontramos, em muitos deles, certamente em todos do continente americano, funda��es ign�beis. Estamos em uma metamorfose que levar� necessariamente a novos come�os. Mas o resultado n�o est� dado, temos que constru�-lo. Minha utopia pessoal � de uma rep�blica cosmopolita, sem fronteiras, que respeite as especificidades e a diversidade humanas, igualit�ria nos direitos e nas oportunidades, fundada nessa igualdade e na paz. Sem sonhar e pensar para al�m do que somos, n�o construiremos nada de bom, n�o estar�amos no bom caminho, como diria este personagem.

Como um dos int�rpretes da realidade brasileira interpreta a fic��o que vem sendo produzida nos �ltimos anos no pa�s?
 
Vejo muito bem. Temos autores consagrados publicando obras excelentes. Destaco, por exemplo N�lida Pi�on, com “Um dia chegarei a Sagres”, Antonio Torres, com “Querida cidade”. Autores de grande qualidade em plena atividade criativa, como Crist�v�o Tezza, que ali�s acaba de lan�ar “Beatriz e o poeta”, Noemi Jaffe, que me impressionou muito com “O que ela sussurra”, de 2020.
 
Alberto Mussa, Luiz Ruffato, Socorro Acioli. Temos uma safra extraordin�ria, de autores novos como Itamar Vieira Jr, cujo extraordin�rio “Torto arado” tem uma qualidade narrativa impec�vel, que ocorre raramente. Jefferson Ten�rio, de “O avesso da pele”, Eliana Alves Cruz, que acaba de publicar o excelente romance “Solit�ria”.
 
Al�m do resgate de autores extraordin�rios que estavam postos de lado pelo preconceito, pelo racismo, como � o caso de Concei��o Evaristo e que al�m de ter sua obra mais divulgada, continua em plena forma criativa. H� muitos outros. A literatura brasileira passa por uma fase espl�ndida.

TRECHO 
 
“Sabia que este sentimento o condenava a ferir-se tanto quanto iria ferir os outros. Saciar o desejo de vingan�a tamb�m destr�i o vingador. N�o h� palavras pesadas demais para descrever os sentimentos que o sufocavam. O �dio n�o � o oposto do amor, � a sua nega��o absoluta. Odiar elimina qualquer empatia, n�o reconhece atenuantes. De tudo isto ele sabia; quantas vezes usou estes argumentos para aplacar a raiva de clientes e persuadi-los a negociar um acordo. Agora, eram apenas palavras que n�o serviam de nada. A natureza autodestrutiva do impulso vingador de repente havia perdido a import�ncia.” 

Capa do livro 'O intérprete de borboletas'
 
“O int�rprete de borboletas”
• S�rgio Abranches
• Record
• 239 p�ginas
• R$ 49,90


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