
O cineasta estava em Buenos Aires para se encontrar com o escritor cujo livro ele adaptaria para as telas. Aproveitou a visita � capital argentina para comprar um presente para a neta. “Entro na loja de roupas para crian�as; s�o dez horas da manh� e est� tocando Nina Simone, algu�m que voc� ouve quando quer cortar os pulsos. Este pa�s � impratic�vel.”
O cineasta indignado com a verve melanc�lica dos portenhos era Hector Babenco (1946-2016); argentino naturalizado brasileiro, que filmou “O passado” (2007), romance de Alan Pauls sobre um tradutor com perda de mem�ria, tendo o mexicano Gael Garc�a Bernal no papel principal.
Nada disso tem a ver com o recente lan�amento no Brasil de “Tua terapia” (Perspectiva), colet�nea de tiras de humor em torno do tema psican�lise, originalmente publicadas pelo artista gr�fico argentino Tute no di�rio “La Naci�n”.
Ou melhor, tem tudo a ver. Foi uma associa��o livre que me ocorreu quando encontrei na p�gina 120 do livro a tira em que o personagem diz: “Tomar consci�ncia � doloroso. Todos os finais s�o tristes. Um final feliz � um final que ainda n�o terminou”.
Come�o a entrevista com Tute - seria por videochamada, mas ele desligou a c�mera - abordando a tend�ncia depressiva dos argentinos? Melhor n�o. Posso inadvertidamente ro�ar algum complexo (com o perd�o de Jung por cit�-lo banalmente). Recorro ent�o a Alan Pauls e sua afirma��o de que � dif�cil exercer uma profiss�o quando h� “um g�nio na vizinhan�a”. Ele se referia a Borges, naturalmente.
Mas penso que Tute talvez se identificasse, j� que escolheu a mesma profiss�o do genial Quino (1932-2020) e, como se isso n�o bastasse, � filho de Caloi (1948-2012), provavelmente o segundo mais famoso cartunista argentino, que publicou durante d�cadas uma popular tirinha no “Clar�n”.
Ele n�o se identificou.
"Nunca foi um problema. Tive o inconveniente da influ�ncia em termos estil�sticos e em rela��o aos universos tem�ticos escolhidos para fazer humor. Queria me parecer com meu pai e com Quino. Nos meus primeiros anos, estava aprendendo sem saber. Tinha um professor em casa. Com o fato de v�-lo todos os dias pensar uma ideia e entregar a tira no jornal, quando tive que me sentar na prancheta, me dei conta de que estava me preparando a vida toda."
Dou voltas e voltas na conversa e fa�o da hip�tese da tend�ncia depressiva dos argentinos a minha pen�ltima pergunta. A �ltima � sobre a possibilidade da elei��o � presid�ncia do ultradireitista Javier Milei, convenhamos, um nocaute.
Tute pareceu n�o gostar da antessala do nocaute.
"N�o iria t�o longe falando em depress�o, mas, sim, em nostalgia. H� um exerc�cio de nostalgia muito mais frequente deste lado. De toda forma, essa � uma generaliza��o e, como toda generaliza��o, � injusta. Imagino que haja brasileiros e brasileiras melanc�licos. Mas, jogando com a generaliza��o, penso que h� na Argentina uma tend�ncia � melancolia. N�o me disponho a tentar explicar com o qu� isso tem a ver, se com o porto, as despedidas, a crise, a m�sica, n�o sei."
Fim da entrevista. Terei sido injusta? Superficial? Preconceituosa com os argentinos? Ou encontro uma resposta satisfat�ria para essas d�vidas ou as esque�o de vez. Um final amb�guo � um final que ainda n�o terminou.
Leia, a seguir, a entrevista do cartunista Tute (autor de “Tua terapia”) ao Pensar:
Por que decidiu fazer da psican�lise o tema de sua tira no jornal di�rio “La Naci�n”?
Os temas que me ocorrem s�o os que j� est�o na minha vida. Tudo o que aparece nos desenhos � produto do meu universo de interesses. Por um lado, me parece apaixonante a t�cnica psicanal�tica. (Sigmund) Freud (1856-1939) foi um dos homens mais revolucion�rios da hist�ria humana e, sem d�vida, do s�culo 20. Com 18 anos, comecei a fazer terapia e me pareceu um espa�o muito interessante. Tenho 30 anos de terapia e continuo achando esse espa�o muito interessante para baixar um pouco a bola e refletir. Al�m disso, acredito que humor e psican�lise t�m um parentesco muito �ntimo, em todos os sentidos - no uso da palavra, na relev�ncia da linguagem, nos sentidos que se escondem por tr�s da palavra. O tempo todo estamos brincando com o que se diz e com o que n�o se diz, com o que se esconde por tr�s do que se diz. H� tamb�m a s�ntese como elemento comum. � t�o importante produzir humor com s�ntese como � para os psicanalistas fazer uma interven��o que necessita da s�ntese para ser �til ao analisando. E �s vezes necessita tamb�m do humor, porque o humor viabiliza, possibilita, � habilitante. E � muito propenso ao humor esse espa�o de encontro entre dois estranhos, um na caminha e o outro escutando seus mist�rios inconfess�veis, em uma salinha. � realmente curioso o trabalho que ocorre a�, � muito chamativo.
Os assuntos mais constantes de “Tua terapia” parecem ser a identidade e as dificuldades do amor. Est� de acordo?
A solid�o, a morte, as dificuldades da comunica��o, a identidade, a dificuldade do amor… S�o esses os temas. Ao longo da vida, abandonamos fantasmas e incorporamos novos fantasmas.
H� humoristas que dizem que hoje s�o tantos os limites impostos ao humor que se tornou dif�cil faz�-lo. Qual � sua opini�o a respeito?
N�o gosto dessa ideia de que j� n�o se pode fazer humor com nada porque n�o creio que esteja certa. Sempre houve limites para o humor. Essa � uma queixa que parte de um lugar com o qual n�o simpatizo, de pessoas que querem fazer aquele velho humor. Se a sociedade j� n�o ri dessas piadas, a sociedade mudou, e o humor tem que acompanhar. O humor � um espelho social, tem que seguir as mudan�as, e n�o ficar para tr�s. O pior que pode acontecer a um humorista � cair do seu tempo. Tamb�m n�o me agrada a ideia de que o humor n�o tem que ter limites. O humor sempre tem limites e � bom que seja assim. Todos estamos o tempo todo nos auto censurando para viver em sociedade. N�o se diz tudo o que se pensa. Se vou publicar num jornal que chega para toda a fam�lia, h� limites e n�o � preciso que ningu�m te diga isso. H� tamb�m o limite da linha editorial do �rg�o de m�dia, que tem interesses pol�ticos determinados. Temos que jogar dentro desse campo. A ast�cia do humorista � saber se mover em campo. � �bvio que o humor tem limites a saltar e a obedecer. � preciso que, dentro desses limites, voc� consiga provocar o sorriso e a reflex�o.
Num momento em que a vertente da Terapia Cognitivo Comportamental parece dominar o cen�rio e a psican�lise est� escanteada, voc� n�o se sente um pouco anacr�nico com sua tira eminentemente psicanal�tica?
J� declararam a morte da psican�lise tantas vezes e, felizmente, ela segue viva e quicando. Tenho a impress�o de que as terapias breves, as t�cnicas de coach, que est�o na moda, n�o t�m nada a ver com aquilo que a psican�lise faz, que � mais profundo e leva mais tempo. A psican�lise n�o aponta para a cura. A psican�lise diz respeito a conhecer a si mesmo, a entrar em contato com o inconsciente. Quem faz psican�lise n�o deve aspirar � cura, mas ao autoconhecimento. As terapias breves podem oferecer uma solu��o a curto prazo, mas nunca a longo prazo. E o que n�o se resolve na raiz volta a aparecer. Os trabalhos de coach me parecem muito atraentes, muito sedutores, mas muito pouco eficazes para as coisas mais profundas. Neste sentido, � um divisor de �guas. Ou voc� considera o inconsciente como uma parte fundamental da exist�ncia ou n�o. Estou ao lado dos que creem que o inconsciente � parte da vida.
Qual � sua familiaridade com o cartum brasileiro? H� artistas daqui que admira?
O Brasil tem grande tradi��o de humor gr�fico e caricatura. Voc�s t�m essa esp�cie de Quino brasileiro que � o Ziraldo, que tive o prazer de conhecer e encontrar em mais de uma ocasi�o. Gosto da Laerte, do Ad�o Iturrusgarai e gosto muito tamb�m de um caricaturista que tem uma linha muito fina, muito delicada, que � o Loredano.
O futuro do humor gr�fico � digital?
Em termos de divulga��o massiva acho que os canais v�o ser digitais. Estou convencido de que hoje tenho mais leitores nas redes sociais do que no papel. As redes s�o muito �teis profissionalmente. Publico um desenho e rapidamente tenho a resposta. Quando comecei, sonhava que isso acontecesse e n�o acontecia. Levava a tira (para o jornal), era publicada e, para ver a rea��o dos leitores, tinha que ir a um caf� e esperar ver algu�m lendo o jornal. Hoje isso � imediato. � quase como um ator que termina seu n�mero, cumprimenta o p�blico e recebe o aplauso. Nesse sentido, me parece uma grande not�cia tudo o que est� acontecendo. O desafio agora consiste em conseguir a migra��o para o digital que funcione tanto no papel quanto no digital; o desafio � n�o ficar estanque em nenhum lado. Mas acho
que o humor gr�fico tem muitas possibilidades.
A Argentina est� diante da perspectiva de eleger o ultradireitista Javier Milei � presid�ncia. O pa�s ter� que se deitar no div�?
� interessante levar isso para o campo da psican�lise porque acho que aquilo que nos ocorre individualmente se d� tamb�m no plano coletivo. O conflito entre a puls�o de vida e a puls�o de morte se verifica tamb�m socialmente. Coletivamente, h� uma tend�ncia preocupante (na Argentina). Cabe analisar o que est� acontecendo, por que nos inclinamos a uma op��o t�o perigosa. De toda forma, tenho esperan�a de que aquilo que se viu refletido nas prim�rias tenha sido apenas uma advert�ncia, e n�o o resultado final. Tomara que ganhe a puls�o de vida, e n�o a de morte, que votemos por uma op��o mais saud�vel. Mas � preciso colocar tudo sob an�lise. H� um grande descontentamento com os partidos populares, que n�o deram as respostas esperadas. � preciso rever o que acontece e come�ar a dar as respostas que o sistema democr�tico est� devendo.
PERSONAGENS CONSTANTES
Em “Tua terapia”, o personagem que mais aparece � um certo Hugo, que enfrenta diversas situa��es e, em determinado momento, se apresenta como um “suicida simp�tico”. Nos dois volumes seguintes da trilogia psicanal�tica de Tute - “Humor al div�n” (2017) e “Supery�” (2021) -, o autor concentrou as hist�rias em Ruben e Mabel. “Todos somos Ruben e todos somos Mabel em algum momento. Os personagens mudam, t�m inclusive idades diferentes. Um dia s�o v�timas, no outro s�o algozes”, diz o humorista. Ele afirma esperar que os dois volumes seguintes da trilogia tamb�m sejam lan�ados no Brasil.

“TUA TERAPIA”
Tute
Perspectiva
160 p�ginas
R$ 89,90