(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

Livro 'Rio antes do Rio' mostra que os cariocas originais eram tupinamb�s

O Rio antes do Rio, livro do jornalista Rafael Freitas da Silva, conta a hist�ria da etnia ind�gena que chegou � regi�o 1,5 mil anos antes dos portugueses


postado em 21/02/2020 06:00 / atualizado em 21/02/2020 12:04


Um Rio de Janeiro acabou. Sobre os escombros das aldeias e da identidade cultural de comunidades tupinamb�s como a Kari�ka, outro Rio de Janeiro emergiu. E cresceu carregando o nome de batismo da taba mais famosa do Brasil, localizada � esquerda da embocadura da ba�a de K��n�par�. N�o era a �nica. Embora nas anota��es do calvinista franc�s Jean de L�ry, em sua obra Viagem � terra do Brasil, escrita entre 1557 e 1558, constem pelo menos outras 34; as pesquisas recentes d�o conta de registros de ao menos 84 aldeias tupinamb�s que, ao longo de centenas de anos, resistiram aos portugueses e gravitaram no entorno da Ba�a de Guanabara e adjac�ncias.
O carioca nem sabe ao certo o que herdou dos habitantes originais; nem como herdou; nem sobre quais substratos se deitam as suas ra�zes culturais. Mas � certo que na g�nese de seu nome l� est� o povo, antes do in�cio de tudo que se ergueu sob o signo europeu: casa (ok) dos kari�s (carij�s) – kari�kas. Essa hist�ria dos vencidos, frequentemente n�o contada – da qual emergem as origens ancestrais do povo tupinamb�, g�nese da Guanabara e da personalidade carioca –, � ressuscitada na obra O Rio antes do Rio, do jornalista Rafael Freitas da Silva. Essa mesma hist�ria agora grita no Olimpo do samba, inspirando a escola de samba Portela, que vai cantar o Rio Tupinamb� com o enredo “Guajupi� – Terra sem males”.

Nada mais justo. A raiz do carnaval est� cravada na identidade cultural ind�gena, atesta Rafael Freitas da Silva. “O legado cultural do jeito carioca de ser tem muito a ver com os tupinamb�s. Eram brincalh�es, adoravam festa, gostavam de celebrar a vida, se embebedavam com cauim e se ornamentavam de penas. Nosso carnaval � de origem tupi”, afirma ele, que tamb�m anota o sincretismo cultural que se estabelece com a musicalidade africana e o cortejo europeu das festas da realeza. “Todas essas influ�ncias se fazem presentes em nosso carnaval. Mas a maior contribui��o � dos �ndios, que j� tinham festas empenadas, as chamadas festas antropof�gicas dos tupinamb�s, que duravam cinco dias, com m�sica e bebida � vontade. Todos eram convidados. O nosso carnaval tem essa forte marca ind�gena”, considera Rafael Freitas da Silva.

Foi em busca do Guajupi� que a grande civiliza��o tupinamb� migra da Amaz�nia, h� cerca de dois mil anos. Segundo Rafael Freitas da Silva, durante a pr�-hist�ria, em algum lugar entre os rios Madeira e Xingu, as comunidades do tronco lingu�stico tupi-guarani se separaram do tronco macrotupi. “Partiram em levas independentes, migrando em dire��es diversas, num arco de dispers�o que percorreu desde a bacia do Paraguai, ao Sul do Rio Amazonas, com uma grande leva de tupis-guaranis descendo pelo Rio Paran� em dire��o ao Sul, de onde vieram a se organizar nas tribos guaranis e karij�s”, revela o autor.

“Por sua vez, o ramo ancestral dos tupinamb�s kari�kas teria feito um caminho muito mais longo e penoso, seguindo o curso do Rio Amazonas at� a foz, de onde vieram combatendo e ocupando o litoral do Nordeste e expulsando as tribos dos tapu�as, n�o tupis, considerados gente de l�ngua estranha, seguindo ao longo dos anos em dire��o ao Sul at� alcan�ar a Ba�a da Guanabara”, explica Rafael Freitas da Silva.

Dessa jornada trata o enredo da Portela, batizado de “Guajupi�, terra sem males”, explica Rafael Freitas da Silva. “A busca do Guajupi� era o ideal da vida espiritual de um tupinamb�. Tinha para si que apenas as almas dos que valorosamente lutaram contra seus inimigos � que seguiam em companhia de v�rias outras para lugares deliciosos – os bosques, os jardins”, afirma o autor. Ao se aproximar do destino, o esp�rito deveria marcar o ritmo com marak�, a fim de assinalar sua presen�a ao ancestral mitol�gico, o her�i-civilizador Ma�ram�ana, explica ele.

� assim que a ideia do Guajupi� norteou n�o s� o ideal daquilo que os tupinamb�s encontrariam depois da morte, mas, tamb�m, o ideal de vida, que justificaria as migra��es constantes: se as aldeias estavam em determinado tempo em certos lugares, quando os recursos naturais se exauriam as tribos migravam em busca de novo Guajupi�, novas �reas onde pudessem ter o estilo de vida que tinham”, diz ele. Os tupinamb�s representavam esse para�so como um lugar id�lico, recoberto de flores e regado por um maravilhoso rio, em cujas margens viam-se enormes �rvores. “Foi justamente com o que se depararam ao chegar na Ba�a de Guanabara. Nenhum outro lugar poderia ser t�o parecido com as descri��es do Guajupi� eterno tupinamb� do que as terras abundantes de recursos naturais de um Rio de Janeiro ainda intacto”, narra o autor.

Tendo se instalado na id�lica Ba�a de Guanabara 1.500 anos antes da chegada dos europeus, os tupinamb�s t�m mais tempo de hist�ria na Ba�a de Guanabara do que qualquer civiliza��o que se pretende moderna, afirma Rafael Freitas da Silva. Em cr�tica � “tese” difundida de que a origem do nome carioca seria refer�ncia � “casa do homem branco”, o autor sustenta: “Essa lenda infelizmente acabou por transmitir ao nome relativo � cidade do Rio de Janeiro uma no��o hist�rica bastante deturpada do processo que levou � constitui��o da pr�pria cidade. � como se nada aqui existisse ou n�o tivesse import�ncia antes da chegada dos portugueses. Por isso, o termo ‘carioca’ precisa ser recolocado na sua verdadeira origem. Ou seja, ele nada mais � do que o nome da mais importante taba nativa tupinamb�, que se localizava �s margens do rio que herdou seu nome. Suas terras ficavam onde hoje est�o os bairros do Flamengo, Laranjeiras, Largo do Machado, Catete e Gl�ria”.

PRIMEIROS CONTATOS FORAM AMISTOSOS

Os primeiros contatos dos �ndios com europeus foram muito amistosos. Viviam na Ba�a da Guanabara pelo menos 84 aldeias j� documentadas, que tinham, cada uma, entre duas mil e 10 mil pessoas, segundo relatos dos franceses, os que primeiro tiveram contato com os tupinamb�s. “Os estudiosos modernos acham, contudo, que esses n�meros possam ter sido exagerados pelos cronistas”, afirma Rafael. Contudo, inegavelmente, ali estava uma civiliza��o populosa, em intera��o harmoniosa com a natureza.

“Quando as naus colonizadoras adentravam a Ba�a da Guanabara, a taba da Kari�ka era a primeira a ser avistada”, escreve o autor. “Tiros de canh�es eram disparados para avisar da chegada, e as ygaras (canoas) acorriam ao encontro das naus com peixes, farinhas, frutas e mantimentos em geral”, narra Rafael. Segundo ele, Iapir�-ij�b (o chefe morubixaba), interessava-se sobretudo pelas novidades que os europeus traziam – facas, machados e anz�is –, instrumentos que eram essenciais em suas rotinas e intera��o com a natureza, tecnologia que facilitava muito as tarefas.

O processo de conquista da Ba�a de Guanabara pelos portugueses foi lento e violento, de in�meras batalhas entre portugueses e os tupinamb�s. A partir de 1530, a rela��o entre �ndios e portugueses fica tensa, quando portugueses n�o encontram os sonhados ouro e prata nas incurs�es pelo Rio da Prata. Passam a se dedicar, ent�o, �s fazendas de cana-de-a��car, para as quais precisam de m�o de obra escrava, que era ind�gena. “Os colonos portugueses que haviam se instalado em S�o Vicente (ao lado de Santos, em S�o Paulo) se aliaram aos povos locais, tupiniquins, inimigos dos �ndios da Ba�a de Gua- nabara. Assim, os tupinamb�s passaram a ser o alvo preferencial”, sustenta o autor. Nesse �nterim, contudo, os franceses, que eram aliados dos tupinamb�s e haviam com eles estabelecido contato antes dos portugueses, reapareceram e se instalaram na Ba�a da Guanabara e v�o tentar coloniz�-la.

As disputas no seio do Imp�rio Franc�s entre cat�licos e protestantes levaram ao fracasso dessa iniciativa. “As batalhas s�o frequentes e, em 1560, os portugueses destroem o forte franc�s. Mas como os �ndios tupinamb�s resistiram � domina��o portuguesa, estes n�o conseguiram fundar naquele momento uma cidade”, afirma Rafael Freitas da Silva. 

A principal batalha entre portugueses e tupinamb�s foi em 20 de janeiro de 1567. “Os tupinamb�s n�o se renderam. Foi um confronto t�o violento, que o capit�o das for�as portuguesas, o pr�prio Est�cio de S�, foi atingido por uma flecha no olho e morreu, pouco depois. Os �ndios perderam essa batalha, que teria acontecido pr�xima ao Morro da Gl�ria, local em que se instalava a aldeia conhecida como Kari�ca”, revela ele.

SAMBA-ENREDO DA PORTELA *

Guajupi� – Terra sem Males

Clamei aos c�us
A chama da maldade apagou
E num dil�vio a terra ele banhou
Lavando as mazelas com perd�o
Fim da escurid�o
J� n�o existe a ira de Mon�
No ventre h� vida, novo amanh�

Irim Mag� j� pode ser feliz
Transforma a dor
Na alegria de poder mudar o mundo
Mairamuana tem a chave do futuro
Pra nossa tribo lutar e cantar

Au�, au�, a voz da mata, ok�, ok� ar�
Se Guanabara � resist�ncia
O �ndio � arco, � flecha, � ess�ncia

Ao proteger karioka
Re�no a maloca na beira da rede
Cauim pra festejar, purificar
Borduna, tacape e ajar�
�ndio pede paz mas � de guerra
Nossa aldeia � sem partido ou fac��o

N�o tem bispo, nem se curva a capit�o
Quando a vida nos ensina
N�o devemos mais errar
Com a ira de Mon�
Aprendi a respeitar a natureza, o bem viver

Pro imenso azul do c�u
Nunca mais escurecer

�ndio � tupinamb�
�ndio tem alma guerreira
Hoje meu Guajupi� � Madureira
Voa �guia na floresta
Salve o samba, salve ela
�ndio � dono desse ch�o
�ndio � filho da Portela

* Personagens da mitologia tupinamb�: Mon�: o criador; Irim Mag�: o primeiro tupinamb�, o povoador de toda a etnia; Mairamuana: um dos filhos de Irim Mag�, que � o principal profeta, paj�, transformador, que orienta os tupinamb�s em todos os rituais, costumes, o que cria os animais, as lendas de cria��o dos animais passam por ele. Tem os poderes ilimitados de Mon�.

 
ENTREVISTA

Rafael Freitas da Silva, jornalista

‘‘Os �ndios s�o nossos gregos’’

O que o motivou a escrever a hist�ria do Rio antes do Rio?
O Rio antes do Rio � uma tentativa de fazer a hist�ria dos vencidos, porque dos vencedores j� conhecemos. Foram os portugueses que produziram a maior parte das fontes, s�o seus pr�ceres que contam a hist�ria de uma ba�a que conheceram apenas como conquistadores. O que antes parecia imposs�vel, hoje j� se pode remontar, pelo menos um pouco, esse passado obscuro de um Rio que come�ou antes da funda��o da cidade. Para tanto, � preciso revisitar as obras dos franceses que aqui estiveram antes dos lusos, das modernas pesquisas sobre as topon�mias do Rio de Janeiro que tanto avan�aram nos �ltimos anos e tamb�m por passagens reveladoras de obras jesu�ticas.

Entre 1530 e 1575, a conquista portuguesa da Ba�a de Guanabara vai se dar paulatinamente. Os �ndios tupinamb�s foram dizimados? 
A cidade do Rio passa a funcionar a partir dos lugares que tinham por refer�ncia as aldeias, at� porque, os primeiros caminhos eram aqueles que levavam de uma aldeia a outra. As tribos desapareceram enquanto unidade cultural e �tnica. Mas � fato que os tupinamb�s est�o na origem da popula��o do Rio de Janeiro. S�o os �ndios que formam o caldo gen�tico da popula��o carioca e brasileira. Estamos falando de nossos ancestrais. N�o estamos falando de um povo que desapareceu e n�o tem nada a ver conosco. Os tupinamb�s, esse povo que foi dominado pelos portugueses, somos n�s, � a nossa origem �tnica, cultural, a nossa raiz. Tanto � que todos os nomes do Rio de Janeiro s�o tupinamb�s. Do carioca (que vem da tribo K�rioca) � Ba�a de Guanabara (chamada K��n�par�). Os �ndios desaparecem enquanto identidade cultural. Aqueles que sobreviveram se transformam em colonos, se miscigenaram.

Qual li��o podemos aprender desse processo violento de coloniza��o e de perda da unidade �tnica cultural desses povos, ancestrais da na��o brasileira?
Os �ndios tupinamb�s tinham uma civiliza��o evolu�da e compar�vel � dos incas, dos astecas e dos maias, que viviam em regi�es de pedra, l� construindo pir�mides e legando s�tios arqueol�gicos magn�ficos. A civiliza��o tupinamb� era superevolu�da, tinha total dom�nio sobre a floresta atl�ntica, edificavam com paus e folhas. As aldeias n�o resistiram ao tempo, n�o t�m monumentos. Mas de fato deixaram tudo para n�s. Eles s�o nossos gregos, deram nome a tudo. Tudo o que conhecemos � tupi: nomes das cidades, dos animais, dos rios. Deixaram legado de amor � terra, de valentia, defenderam a terra at� a morte e deixaram a natureza intocada. Quando o europeu chegou aqui, sim, a primeira coisa que fez foi devastar para plantar cana-de-a��car.

Como os �ndios contribu�ram com o carnaval?
O legado cultural do jeito carioca de ser tem muito a ver com os tupinamb�s. Eram brincalh�es, adoravam festa, gostavam de celebrar a vida, se embebedavam com cauim, e se ornamentavam de penas. Nosso carnaval � de origem tupi. L�gico que temos a miscigena��o, a m�sica dos africanos, as festas da realeza europeias, que introduzem a ideia do cortejo das escolas de samba. Mas os �ndios j� tinham festas empenadas, as festas antropof�gicas dos tupinamb�s duravam cinco dias, com m�sica e bebida � vontade. Todos eram convidados. O nosso carnaval tem forte marca ind�gena.

Em sua avalia��o, o samba-enredo da Portela ganha especial relev�ncia no atual contexto pol�tico, em que atos e discursos do governo t�m trazido inseguran�a aos povos ind�genas?
O tema da Portela ganha especial relev�ncia em decorr�ncia do debate em torno da falta de pol�ticas p�blicas para as reservas ind�genas e o ataque que o governo faz �s �reas demarcadas. P�e o enredo em evid�ncia, pois salienta que os �ndios do Brasil s�o a g�nese de nossa popula��o, s�o de onde viemos. S� traz mais relev�ncia para o enredo, que mostra que nosso povo n�o se curva nem a bispo nem a capit�o. � uma refer�ncia, por um lado, � Igreja Cat�lica no per�odo da coloniza��o e dos capit�es portugueses que queriam submeter os �ndios. Mas, tamb�m, h� refer�ncia aos dias de hoje em que somos governados no rio por um bispo e no Brasil por um capit�o. N�o � por a� que vamos salvar o Brasil. S� o povo reconhecendo as suas origens � que podemos construir um modelo de na��o mais pr�spero e justo.

O rio antes do rio
De Rafael Freitas da Silva
Relic�rio
472 p�ginas 
R$ 59,90


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)