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Estado de Minas VERSOS

Carolina de Jesus � refer�ncia para jovens escritoras brasileiras

Autora de 'Quarto de despejo' inspirou revela��es da literatura nacional, reunidas na colet�nea "Carolinas" (Flup/Bazar do Tempo)


14/05/2021 04:00 - atualizado 14/05/2021 10:29

Carolina de Jesus e seus 'cadernos de sonhos': ''Quarto de despejo: diário de uma favelada', o primeiro livro, vendeu mais de 100 mil exemplares no primeiro ano do lançamento
Carolina de Jesus e seus 'cadernos de sonhos': ''Quarto de despejo: di�rio de uma favelada', o primeiro livro, vendeu mais de 100 mil exemplares no primeiro ano do lan�amento (foto: Audalio Dantas/O Cruzeiro/EM)
O escritor, poeta e jornalista Aud�lio Dantas descreveu a favela do Canind�, em S�o Paulo, como o “pequeno e (miser�vel) mundo de Maria Carolina de Jesus”. Na reportagem de junho de 1959 da revista O Cruzeiro, o jornalista apresentou ao mundo Carolina Maria de Jesus. Primeiro descreveu as condi��es do lugar: Carolina vivia mal, n�o tinha profiss�o, n�o tinha o que dar de comida aos filhos.

Em seguida, destacou o olhar de Carolina, que “aprendeu a ver al�m da alma da rua”. Por fim, introduz a escritora. “Escreve versos ing�nuos, enche cadernos de sonhos. Mas n�o se limita a sonhar.” Coube a ele apresentar, na edi��o de n�mero 36 da principal publica��o brasileira na �poca, a mulher negra de 45 anos que vivia em uma favela, sem ter o qu� dar de comer aos tr�s filhos, mas que, com a escrita, apesar de toda car�ncia material, criou um mundo simb�lico de uma riqueza sem fim.

As letras eram um universo inusitado para quem via na literatura espa�o de express�o de pessoas letradas, com alto padr�o de vida, homens e brancos. Portanto, a escrita de Carolina rompia a literatura, e vida brasileira, como um acontecimento.
 
A reportagem deu visibilidade aos di�rios de Carolina, que originaram o livro “Quarto de despejo: di�rio de uma favelada”, fen�meno de vendagem. Em apenas tr�s dias, vendeu 30 mil exemplares e viu a primeira edi��o esgotar. No ano de 1960, foram vendidos 100 mil exemplares. Em breve, ser� reeditado pela Companhia das Letras.

Aud�lio chegou at� Carolina quando fazia uma reportagem sobre remo��o na favela do Canind�, em S�o Paulo, para a constru��o da Marginal Tiet�. Quando conheceu Carolina, ele se surpreendeu com mais de 20 cadernos com os manuscritos dela. Nascida em Sacramento (MG), ela se mudou para S�o Paulo, onde criava os tr�s filhos com o trabalho de catadora de papel�o, mas mantinha uma vis�o cr�tica do mundo e principalmente descrevia a fome. “A fome aparece no texto com uma frequ�ncia irritante. Personagem tr�gica, inarred�vel. T�o grande e t�o marcante que adquire cor na narrativa tragicamente po�tica de Carolina (...) Carolina viu a cor da fome – a amarela”, escreveu na apresenta��o de “Quarto de despejo”.

Seis d�cadas depois da publica��o do primeiro livro, Carolina Maria de Jesus revoluciona e faz um reboli�o no universo editorial brasileiro. Os ecos de “Quarto de despejo” (1960) e “Casa de alvenaria” (1961) reverberam em textos autorais de 200 autoras negras de todas as idades, que se lan�am na literatura na colet�nea “Carolinas – A nova gera��o de escritoras negras brasileiras”, organizada por Julio Ludemir como resultado de uma parceria entre a Festa Liter�ria das Periferias (Flup) e a Editora Bazar do Tempo.

As mulheres que se lan�am como escritoras foram selecionadas entre 500 inscritas para participar do processo de forma��o com a orienta��o de Itamar Vieira J�nior, Alexandre Faria, Ana Paula Lisboa, Cristiane Costa, Eduardo Coelho, Eliane Alves Cruz e Milena Britto.

(foto: Audalio Dantas/O Cruzeiro/EM)

Carolina Maria de Jesus em fotos publicadas pela revista O Cruzeiro, em junho de 1959: na favela do Canindé, em São Paulo, a mineira 'aprendeu a ver além da alma da rua', nas palavras do autor da reportagem, o jornalista Audálio Dantas
Carolina Maria de Jesus em fotos publicadas pela revista O Cruzeiro, em junho de 1959: na favela do Canind�, em S�o Paulo, a mineira 'aprendeu a ver al�m da alma da rua', nas palavras do autor da reportagem, o jornalista Aud�lio Dantas (foto: Audalio Dantas/O Cruzeiro/EM)

Lara e Luzia

Uma das Carolinas � a sete-lagoana Lara de Paula, autora de “Do trema � crase”, conto no formato de uma carta de Luzia, a mulher mais antiga da Am�rica do Sul, que viveu h� 12 mil anos, para Carolina Maria de Jesus. Ela recebeu a orienta��o do escritor Itamar Vieira J�nior que sugeriu �s mulheres que escrevessem contos no formato de carta que tivessem aproxima��o com o universo de Carolina. A op��o de estabelecer a correspond�ncia entre Luzia e Carolina foi motivada pela profiss�o de Lara, que � arque�loga.

Em meio ao processo de orienta��o, ocorreu em 15 de junho do ano passado um inc�ndio no Museu de Hist�ria Natural da UFMG, em Belo Horizonte. Lara participou das atividades de resgate do material e se lembrou do inc�ndio do Museu Nacional, quando o f�ssil de Luzia quase se perdeu em meio �s chamas. Embora temporalmente t�o distante, Luzia seria, na atualidade, lida como uma pessoa fenotipicamente negra – aspecto esse que a conecta com Carolina, tamb�m uma mulher negra e ambas abridoras de caminhos para jovens negras como Lara de Paula.

“Venho da �rea cient�fica, ci�ncias humanas, da arqueologia, que n�o � t�o pr�xima assim da literatura. Foi muito importante ter o Itamar como orientador, ele pr�prio � ge�grafo”, relata. A identifica��o com o escritor n�o foi apenas por ambos serem oriundos da academia. “� muito bom ter o espelhamento em outra pessoa negra, que est� se enveredando pelos caminhos da literatura, por esse universo das publica��es onde ainda falta muito espa�o para abarcar as narrativas de pessoas negras. Ter esse exemplo auxiliando na produ��o dos textos e nas interpreta��es das nossas pr�prias escritas foi m�gico”, avalia Lara.
Lara de Paula, de Sete Lagoas (MG): autora de 'Do trema à crase', um dos contos da coletânea 'Carolinas'
Lara de Paula, de Sete Lagoas (MG): autora de 'Do trema � crase', um dos contos da colet�nea 'Carolinas' (foto: Arquivo Pessoal)

As 200 mulheres, conforme caminharam nos encontros, tiveram oportunidade de conhecer obras de outras mulheres negras, como Concei��o Evaristo, e puderam saber ainda mais sobre Carolina com a filha Vera Eunice, que fez uma das palestras, e com pesquisadoras da obra da escritora, como Fernanda Miranda.

Para o t�tulo do conto, Lara prop�e uma brincadeira com os sinais do trema e da crase. Ela lembra que essa brincadeira com as palavras � uma caracter�stica da escrita de Carolina, que transitava entre palavras muito rebuscadas e, �s vezes, fora do uso cotidiano, e constru��es rotineiras, mais presentes nesse linguajar.

“Pensei nessa brincadeira do trema � crase por conta de serem esses recursos lingu�sticos. No caso do trema se tornou ultrapassado, obsoleto, do esquecimento que remete a Luzia. E a crase que junta duas palavras numa letra s�, que aglutina, ent�o as parecen�as, aquelas que s�o semelhantes, simbolizando assim o encontro entre Luzia e Carolina.”

O primeiro contato de Lara com Carolina foi na escola, no ensino fundamental, quando leu uma men��o de “Quarto de despejo” num trecho do livro did�tico. Ela lembra que, na �poca, n�o era usual encontrar refer�ncias positivas de autores negros e que Carolina mudou essa percep��o.

“Era uma narrativa de uma pessoa negra que, mesmo tendo passado por muitas quest�es, conseguiu ampliar a voz e atingir outros espa�os, ser publicada, e ter outro tipo de inser��o social”, recorda-se. Mas, apesar da import�ncia de Carolina, o livro n�o foi indicado para leitura pela professora.

Anos depois, j� na faculdade, Lara foi relembrada de “Quarto de despejo” quando participou de Preta poeta, projeto idealizado por Julia Elisa. Em 2018, como parte do projeto, foram realizados encontros entre mulheres negras para discutir literatura e compartilhar experi�ncias e discutir as pr�prias escritas. Os encontros ocorreram na Biblioteca P�blica de Minas Gerais. “As bibliotec�rias, muito sol�citas, quase todas negras, tamb�m separavam, gentilmente, as obras de escritores negros para que a gente tivesse, antes do encontro, um vislumbre. Nessa �poca, retomei e conheci a fundo a obra de Carolina Maria.”

A sete-lagoana veio para Belo Horizonte para estudar na UFMG. Ela percebe uma maior inser��o de autores e autoras negras no mercado editorial brasileiro. Para ela, esse movimento muda a literatura e aproxima ainda mais os leitores.

“Escrever nada mais � do que descortinar imagin�rio. Voc� pode reiterar imagin�rios j� postos de opress�o e estere�tipos, ou dar vaz�o � constru��o de outros imagin�rios que � algo de pot�ncia gigantesca no que tange � produ��o de mulheres negras. A gente est� apresentando n�o s� as nossas pr�prias viv�ncias e escreviv�ncias, para citar a Concei��o (Evaristo). A gente apresenta outros olhares � arte, ao cotidiano, e isso traz sabores mais diversos � literatura brasileira, que s� tem a ganhar com essas contribui��es”, diz. Os universos descortinados, por sua vez, se tornam mais tang�veis a outros p�blicos que se aproximam, conquistando leitores.
(foto: Bazar do Tempo/Divulga��o )
 
“Carolinas – a nova gera��o de escritoras negras brasileiras”
• Organiza��o de Julio Ludemir
• Bazar do Tempo
• 548 p�ginas
• R$ 60 


Biografia 
A hist�ria da vida de Carolina de Jesus foi contada em biografia assinada pelo jornalista Tom Farias. Em trabalho de impressionante reconstitui��o hist�rica, Farias narra a trajet�ria da escritora.  O livro "Carolina: uma biografia" tem 402 p�ginas e foi lan�ado pela editora Mal� em 2018.

Colet�nea reflete
diversidade de vozes

“Carolina Maria de Jesus � um signo. Uma mulher preta insubmissa. Altaneira. Um caminho luminoso que se abriu na mata fechada. Uma clareira. Uma revolu��o”, escreve, na apresenta��o de Carolinas, a pesquisadora Fernanda Miranda.

Vencedora do Pr�mio Capes de Tese 2020 na �rea de lingu�stica e literatura com a tese “Corpo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006): posse da hist�ria e colonialidade nacional confrontada”, Fernanda analisou como parte do corpus o romance “Peda�os da fome”, de 1963, escrito por Carolina. Pesquisadora da obra da autora no mestrado, Fernanda destaca a colet�nea “Carolinas” no movimento de pluralizar as vozes da literatura brasileira.

“� um livro hist�rico. Re�ne a produ��o liter�ria de muitas mulheres negras, quase 200 autoras. No cen�rio editorial brasileiro, � algo muito distante da realidade que a gente tem. � um livro que surge para romper esse silenciamento e dificuldade que autoras negras t�m de se lan�ar, principalmente autoras que est�o come�ando.”

A maioria delas se lan�a no universo da produ��o liter�ria com o primeiro texto publicado em uma colet�nea. “O livro re- presenta uma mudan�a de paradigma dentro do que a gente est� acostumado a ver, do que o mercado editorial oferece para os leitores brasileiros”, avalia.

Ao mesmo tempo, a colet�- nea cumpre a fun��o de mostrar como Carolina Maria de Jesus � uma autora contempor�nea. “A Carolina � o ponto de partida dos textos. A forma de mostrar que a autora � parte do cotidiano daquilo que constitui uma tradi��o de escrita. Ela promove o surgimento de outras autoras, possibilidade de romper com essa dificuldade de se lan�ar no mundo da escrita.”

Ela destaca que o t�tulo no plural (“Carolinas”) demonstra a diversidade de escritas, de mu- lheres de diferentes partes do Brasil, de todas as idades e forma��es, de catadoras de papel, como foi Carolina, a doutoranda, como � a escritora sete-lagoana Lara de Paula.  “Foi um processo profundo, longo, muito reflexivo de constru��o de texto e autoria. Algo que temos a celebrar. Espero que esse livro circule muito. Pode servir de est�mulo para que ou- tras autoras possam superar essa barreira de publica��o e se fa�am presentes e vis�veis no nosso cen�rio liter�rio.”

Fernanda Miranda, pesquisadora, fez a apresentação de 'Carolinas': a força das novas autoras negras
Fernanda Miranda, pesquisadora, fez a apresenta��o de 'Carolinas': a for�a das novas autoras negras (foto: Arquivo Pessoal)

Obra ganha nova edi��o

O livro “Peda�os da fome”, primeiro romance de Carolina, tinha o t�tulo original “A felizarda”. No entanto, a obra sofreu interven��o no processo de edi��o, assim como aconteceu com “Quarto de despejo”. “O romance passou por processo editorial violento, inclusive o pr�prio t�tulo foi modificado”, diz. A boa not�cia � que em breve os textos de Carolina, sem edi��o, devem ser publicados. Fernanda destaca que os direitos da obra de Carolina foram adquiridos pela Companhia das Letras, que deve publicar, em breve, “Casa de alvenaria”.

Carolina escreveu muito e em g�neros variados, manuscritos que est�o em Sacramento. As edi��es de Aud�lio Dantas ao texto de Carolina levantam debate. “O Aud�lio editou os dois primeiros, ‘Quarto de despejo’ e ‘Casa em alvenaria’, esses dois livros editados por Carolina. Tem um lado positivo. De fato, sendo ele homem letrado, com amplo acesso aos meios de comunica��o da �poca, ele tinha os caminhos de acesso para que Carolina tivesse possibilidade de existir no mundo p�blico. De fato, teve participa��o importante no processo dela de publica��o e visibilidade".

Fernanda aponta o lado ne- gativo: “A maneira como Aud�lio tratou o texto, a interven��o editorial dele � algo que n�o se pode deixar de mencionar. Ele realmente fez papel diferente do que se espera de um editor, de algu�m que deve ficar transpa- rente no texto. Ele se fez notar, se fez aparecer e modificou ques- t�es importantes da obra.”

Mas a produ��o liter�ria de Carolina n�o se restringe aos textos editados por Aud�lio. "Tudo de Carolina que foi publicado at� agora teve modifica��o. O jorna- lista n�o foi o �nico a fazer isso. Temos que ser justos. Todas as outras obras, quando olhamos os manuscritos, t�m diferen�as”, ressalta.

A pesquisadora destaca que mais importante que julgar Aud�lio � buscar o texto original de Carolina. Os di�rios s�o os textos que ficaram mais conhecidos, mas ela tem uma publica��o bastante variada, inclusive com obras com v�rias reedi��es e tradu��es para outras l�nguas. “Carolina tem uma escrita po�tica, uma escrita de romance. Gostava muito de prov�rbios, at� criava alguns. Os textos s�o muito variados e diversificados.”  

O consenso � que Carolina Maria de Jesus representa um ponto de inflex�o na literatura brasileira. “Ela � uma curva na hist�ria liter�ria brasileira, uma hist�ria sempre constru�da por um tipo espec�fico de autor, que est� num ciclo certo da elite. Ca- rolina traz outra experi�ncia de vida, de linguagem, de est�tica e escrita. A gente consegue acessar outro universo de representa��o e literariedade”, completa a pesquisadora.

A pesquisadora tamb�m des- taca a riqueza da escrita de Carolina e defende que haja uma descoloniza��o do olhar em rela��o � obra. “Ela manuseia uma s�rie de figuras de linguagem para elaborar um texto que em si � diverso. Em geral, as pessoas costumam ver como um texto homog�neo que fala da fome e da mis�ria, que traz o olhar de uma favelada. Recortes j� fixos. A gente precisa descolonizar esse olhar para perceber a potencialidade que Carolina tem. O tanto de diversidade dela.” Mas n�o restam d�vidas de que Carolina � uma das autoras mais importantes da nossa hist�ria liter�ria.


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