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Estado de Minas PENSAR

Carol Bensimon ficcionaliza crime que abalou Porto Alegre em 'Diorama'

No seu quarto romance, escritora revira fantasmas familiares entre pai e filha que possui carreira profissional incomum


23/12/2022 04:00 - atualizado 29/12/2022 15:22

Escritora Carol Bensimon
Carol Bensimon: crime hist�rico no Rio Grande do Sul foi inspira��o para o novo romance (foto: marco antonio filho)
Stefania Chiarelli
Especial para o EM

O poeta Coleridge, profundamente interessado na ci�ncia, afirmava visitar laborat�rios toda vez que precisava renovar seu estoque de met�foras. A provoca��o do escritor ingl�s, que viveu no final do s�culo 18, sinaliza uma ponte entre literatura e ci�ncia e a rela��o nem sempre �bvia entre duas formas de conhecimento sobre o mundo e as coisas. “Diorama”, romance da escritora ga�cha Carol Bensimon, explora de modo muito produtivo a inter-rela��o entre esses dois discursos que somente na apar�ncia andam em separado.
 
Bensimon estreou em 2009 com “Sinuca embaixo d’�gua” e j� publicou “Todos n�s ador�vamos caub�is” (2013) e “O clube dos jardineiros de fuma�a” (2017), vencedor do Jabuti e finalista do Pr�mio S�o Paulo de Literatura. Neste seu quarto romance, a narradora e protagonista Cec�lia tem 40 anos e um relacionamento em crise. Ela vive h� quase duas d�cadas na Calif�rnia e trabalha como taxidermista, of�cio que envolve tarefas como retirar a pele e reconstruir animais mortos, para depois exp�-los em museus ou cole��es particulares.

A montagem de dioramas (modo de apresenta��o em tr�s dimens�es, em que surgem figuras iluminadas, em uma representa��o c�nica) � uma de suas atividades. A afinidade com a natureza come�ara ainda crian�a, com a fam�lia em Porto Alegre junto aos dois irm�os, a m�e e o pai. M�dico de profiss�o, ele porta armas e � ca�ador desde jovem. Nos anos 1980, decide entrar para a pol�tica, o outro grande eixo do romance, que gira em torno de um crime envolvendo seus familiares quando a filha tinha 9 anos. D�cadas depois, o pai sofre um AVC, obrigando Cec�lia a retornar ao sul do Brasil, o que movimenta antigos fantasmas e dores disfar�adas.
 
Dividido em quatro partes, com idas e vindas no tempo, a narrativa traz uma discuss�o necess�ria sobre o mundo natural a partir de uma perspectiva antropoc�ntrica, em que o ser humano h� muito tempo protagoniza a��es como matar, conservar, coletar e colecionar.

O ato de empalhar um animal, estabelecendo a dualidade entre vida e morte nessa paisagem artificial, � o motor de muitas a��es: “Na sala das rel�quias, fico parada diante dos animais at� que me pare�a impratic�vel suportar tanta beleza e tanta perda. Sinto os olhos de todos em cima de mim”. Tamb�m vislumbrar o n�cleo familiar se desmanchando a partir de um assassinato � t�pico determinante do romance. Em ambos os gestos, a import�ncia da escolha de como enxergar o que se posta diante de n�s, e todo o fasc�nio e horror que isso encerra.
 
Vidra�as, telas, janelas e espelhos foram presen�a constante em muitas narrativas brasileiras dos anos 1980, como sinalizou a cr�tica Flora Sussekind, que apontava em “Pap�is colados” a dimens�o de uma prosa marcada pela mescla da literatura com o cinema, a fotografia e a publicidade. Na mesma d�cada, Bensimon nascia em Porto Alegre, e seu romance encena forte rela��o com a mesma simbologia: estamos de frente a uma importante janela e ela se chama diorama – “(...) os animais que negam a presen�a do espectador s�o t�o fundamentais quanto os que olham para al�m do vidro. Ambos fazem parte do mesmo artif�cio. A cena, em resumo, deve sempre parecer um flagrante”. Entre transpar�ncias e flagrantes, crimes e olhares artificiais, esses para�sos fake explicitam sua rela��o com segredos guardados na inf�ncia.
 
Bensimon apresenta uma reflex�o sobre a pr�pria no��o do tempo: os dioramas proporcionam uma viagem nost�lgica em dire��o ao passado, pois carregam com eles a ideia de destrui��o. “Objetos s� v�o parar em vitrines ou caixas quando sentimos que � urgente nos lembrarmos deles.” Cec�lia � uma colecionadora que desde crian�a l� o comp�ndio “O naturalista amador” e se diverte agrupando em caixas de sapatos sementes, conchas, flores secas, fragmentos dispersos de um mundo que v� de forma �nica.
 
A protagonista tamb�m busca se relacionar com suas pr�prias rel�quias, refazendo no presente da narrativa os acontecimentos do passado para recompor o envolvimento do pai no crime. O epis�dio � inspirado no caso real do assassinato de Jos� Antonio Daudt, deputado estadual e radialista morto em 1988 com tiros de espingarda, na frente do pr�dio onde vivia. O suspeito era outro deputado, que portava armas de ca�a, absolvido depois de v�rios dias de julgamento televisionado ao vivo e acompanhado como novela na m�dia ga�cha. Em “Diorama”, tamb�m uma encena��o move a reconstitui��o da morte do deputado Jo�o Carlos Satti, um circo envolvendo pol�cia, r�dio e fofocas sobre a vida �ntima dos envolvidos.
 
A dimens�o de espet�culo surge duplicada no romance, tanto no julgamento do pai – exposto de todas as formas na televis�o e nos jornais –, quanto no pr�prio espa�o do diorama, que une em si aspectos da ci�ncia e do teatro. Dessa jun��o, Bensimon extrai rico questionamento ao aproximar a dedica��o da narradora em recompor o tempo pret�rito e o empenho na profiss�o que exige constantes formas de encena��o: montar um diorama e representar uma fam�lia se justap�em. Afinal, � tudo constru��o. 
 
Presente em outras de suas obras, retorna a quest�o homoer�tica, vivenciada em um sul conservador e moralista, abordando os muitos sil�ncios familiares. Bensimon alterna com acerto o peso de algumas passagens com a leveza trazida pela ironia. Cec�lia vive com o marido Jesse, mas deseja a mo�a do caixa do supermercado. O irm�o adora rock ingl�s e se sente deslocado na escola at� descobrir os reais sentimentos pelo melhor amigo.

O deputado Satti parece suscitar em sua m�e sentimentos que ultrapassam a admira��o, causando desconforto geral. A vida privada n�o deveria estar no jornal, mas ao se jogar luz na intimidade dos envolvidos a vis�o fica ofuscada pelas mentiras cotidianas. Nesse quesito, Bensimon brilha certeira na condu��o de di�logos afiados e ritmo �gil da narrativa, que prima pela visualidade das imagens – em v�rios momentos temos a sensa��o de estar vendo um filme, e isso � muito bom.
 
Cec�lia h� anos pulou fora do diorama familiar e maneja bisturis. O pai matava animais; ela os disseca. Convicta da culpa dele no crime nunca solucionado, guarda desde a adolesc�ncia recortes de jornal da �poca e depoimentos de pessoas pr�ximas dos envolvidos. Compilar e colecionar seguem sendo modos de estar no mundo – tudo isso ganha espessura nessa narrativa sobre o conhecido tema da viagem de volta. O jogo entre ocultar e revelar nos joga de modo brutal dentro dessas estranhas vitrines, espa�o claustrof�bico em que animais, mulheres e homens se revezam em busca de espa�o para respirar.

Stefania Chiarelli, professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF, publicou o volume “Partilhar a l�ngua – leituras do contempor�neo” (7Letras, 2022)

Entrevista/Carol Bensimon 


“N�o sabia se ia dar conta de entrela�ar um crime 
com o universo esquisito dos animais empalhados”


Carlos Marcelo

Como surge “Diorama”? 
Para mim, um romance nunca surge de uma �nica fagulha, mas de um conjunto de ideias soltas, cenas, impress�es enterradas no fundo da minha mente, assuntos que quero explorar etc. O desafio inicial � tentar criar conex�es, reais ou simb�licas, entre esse emaranhado de coisas. Mas, dito isso, um dos pilares fundadores do projeto foi a vontade de ficcionalizar um crime ocorrido em Porto Alegre em 1988, sob o ponto de vista da (inventada) filha do acusado. Sempre me interessei pelas figuras que assistem a grandes acontecimentos da hist�ria – o Caso Daudt teve realmente esse peso no Rio Grande do Sul – de um lugar que �, ao mesmo tempo, perto e distante: Cec�lia tem 9 anos no momento em que seu pai ganha a capa dos jornais, mas obviamente n�o consegue entender muito bem o que est� acontecendo, e seus pais far�o de tudo para que ela n�o entenda mesmo. Cec�lia s� vai conseguir juntar as pe�as do crime muito tempo depois.

Poderia explicar o que chamou a sua aten��o no que voc� chama no livro de “colis�o de duas trajet�rias”?
No romance, o deputado Raul Matzenbacher mata um de seus colegas de partido, Jo�o Carlos Satti, por motivos de natureza �ntima, mas, em algum grau, esse crime tamb�m � resultado do choque entre dois sistemas de valores, um de matriz conservadora, outro mais progressista. No assassinato de Satti, h� uma tentativa de silenciar um estilo de vida, mas tamb�m uma nova possibilidade de Brasil (estamos falando do per�odo imediatamente posterior � ditadura). A pr�pria hist�ria real que inspirou “Diorama” deu margem para explorar esse choque de trajet�rias: por exemplo, a v�tima do famoso Caso Daudt fora o criador de uma lei que proibia o uso de produtos com clorofluorcarbonetos no Rio Grande do Sul devido ao dano que causavam � camada de oz�nio. Foi ousado defender uma pauta ambiental nos anos 1980. Mais de 30 anos depois e ainda engatinhamos nisso. 

“Eu adoro esse trabalho meticuloso, a ideia de que � preciso ser uma mistura de cientista, pintora, escultora e artes� para criar o que a natureza gerou ao longo de milh�es de anos de aleatoriedade e evolu��o.” E qual foi a “mistura” que voc� precisou fazer para criar este livro?
Acho que a pr�pria cria��o liter�ria tem algo de “mistura”: � preciso pesquisar – hist�ria, pol�tica, ci�ncia –, � preciso entender um pouco de psicologia para fazer as personagens pararem em p�, � preciso colocar uma trama em movimento, e h� ainda o artesanato da frase, do par�grafo... Mas, para al�m disso, esse livro mistura um crime com o universo esquisito dos animais empalhados. Eu n�o sabia se ia dar conta de entrela�ar as duas coisas. Esse foi o maior desafio da escrita.

O Brasil vive h� alguns anos sob forte discurso pr�-armamento, assim como os Estados Unidos. Seu romance traz personagens ligados a essa cultura da viol�ncia. Considerou esse aspecto ao escrever?
Sim, inclusive foi um dos nortes da narrativa. Enxergo a viol�ncia como uma esp�cie de elo entre o passado e o presente da Cec�lia. No passado, temos o crime. No presente, porque Cec�lia trabalha como taxidermista, aparecem hist�rias e reflex�es ligadas a uma esp�cie de embate entre civiliza��o e natureza. Em comum, h� a ideia de aniquilamento do outro. 

“A ideia de fam�lia � uma ideia poderosa.” Como essa ideia aparece em “Diorama”?
O Brasil passou os �ltimos quatro anos sob um governo ancorado no lema ‘Deus, p�tria e fam�lia’, uma trinca que n�o � exatamente uma novidade em movimentos de tend�ncia fascista. Essas ideias quase sempre se desmancham no ar: fala-se em Deus, mas a espiritualidade � oca, o amor pelo pa�s se resume a uma camisa verde e amarela e, em rela��o � fam�lia, uma casca de harmonia muitas vezes esconde estruturas desfeitas, desrespeito, viol�ncia. Em “Diorama”, os Matzenbacher s�o um retrato disso, e seu valores tortos de “defesa da fam�lia” tentam justificar um ato de viol�ncia. Ao fim e ao cabo, ficar� evidente que o mal que a fam�lia causa � muito maior do aquele que supostamente est� do lado de fora.

O que mudou na sua literatura depois que voc� passou a morar nos EUA?
Minha vida mudou muito nos �ltimos cinco anos e, por consequ�ncia, minha literatura. Acredito que isso tenha menos rela��o com morar nos Estados Unidos e mais com ter vivido a vida toda em um contexto urbano e agora morar no meio do mato. Meu cotidiano virou do avesso, tenho uma sensa��o de que estou reaprendendo tudo, nada est� dado. Gosto demais dessa sensa��o. O olhar se reconfigura, as coisas a serem percebidas ao redor s�o outras, e ent�o a natureza come�a a entrar com for�a nas minhas narrativas. Embora minhas hist�rias sejam muito calcadas na imagina��o, sinto necessidade de colocar nelas, de algum modo, essas novas experi�ncias, interesses e questionamentos.

Trecho

(De “Diorama”, de Carol Bensimon)

“Foi um ano-limbo, 1989. Passou inteiro sem que marcassem o julgamento do meu pai. Ainda no in�cio do ano, minha m�e pediu para ser afastada do gabinete do deputado Ferrari, transformando-se em pouco tempo em uma caricatura psic�tica de dona de casa. Todos os dias, no mesmo hor�rio, ela se maquiava para ent�o ficar sentada na frente da televis�o. Isso durava a tarde toda e parte da noite. �s vezes eu ia me sentar ao lado dela, mas detestava quando de repente sentia sua m�o cheia de outro e pedras e unhas afiadas apertar a minha com for�a. Eu n�o sabia exatamente o que significava aquele gesto, mas tinha certeza de que n�o se parecia em nada com amor.”
capa do livro Diorama


  • “Diorama”
  • Carol Bensimon
  • Companhia das Letras
  • 288 p�ginas
  • R$ 69,90


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