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Estado de Minas LITERATURA

Aly Muritiba filma as estradas da vida em 'Deserto particular'

Em artigo, o escritor Andr� de Leones destaca que o filme brasileiro � um road movie apaixonado pelos deslocamentos geogr�ficos e �ntimos


26/11/2021 04:00 - atualizado 26/11/2021 11:02

Cena do filme 'Deserto particular'
'Deserto particular': percurso do Paran� � Bahia em um filme enamorado pelos deslocamentos geogr�ficos e �ntimos (foto: Divulga��o)

O cinema brasileiro est� muito bem inserido na longa e rica tradi��o dos road movies ou “filmes de estrada”. Basta pensar em filmes como “Iracema – Uma transa amaz�nica”, “Mar de rosas”, “Bye bye Brasil”, “Sargento Get�lio”, “Central do Brasil” e “Cinema, aspirinas e urubus” para constatar isso. Na medida em que o nosso pa�s, al�m de geograficamente enorme, � marcado por toda sorte de deslocamentos internos, � natural que diretores recorram com frequ�ncia a esse g�nero ou subg�nero cinematogr�fico. H� espa�o de sobra para se perder e se reencontrar no Brasil. E “Deserto particular”, novo longa-metragem de Aly Muritiba (“Para minha amada morta”, “Ferrugem”), baiano radicado no Paran�, reitera isso de forma exemplar.

Para um filme que se mostrar� t�o enamorado pelos deslocamentos, tanto exteriores quanto interiores, � curioso como o in�cio situa o espectador em um ambiente de extrema imobilidade. Daniel � policial militar curitibano. Suspenso por ter agredido um colega durante o treinamento, ele aguarda o resultado da investiga��o interna fazendo bicos como seguran�a, cuidando do pai enfermo, lidando com a irm� e se relacionando virtualmente com Sara.

Tudo est� em compasso de espera. O futuro profissional de Daniel � incerto. O v�deo da agress�o circula pela internet. A doen�a degenerativa do pai piora a cada dia. Ele n�o se permite compreender as escolhas da irm�. Quando Sara deixa de responder as mensagens que ele envia, Daniel decide cair na estrada, viajar at� a cidade baiana de Sobradinho, em que ela vive, para descobrir o que est� acontecendo.

A aproxima��o f�sica n�o se dar� sem surpresas e distanciamentos. Para al�m do deslocamento exterior, estrada afora e adentro, est� o deslocamento interior e, de tantas formas, inesperado. Daniel n�o est� preparado para o que encontrar�. E, de certa forma, tampouco Sara est� — ela � elusiva tamb�m para se proteger, pois n�o � quem Daniel esperava que ela fosse.


Surpresa e indecis�es

Mas, seja pelas circunst�ncias, seja pelo que sentem um pelo outro, Daniel e Sara precisar�o superar a surpresa e o desencontro (de ambos) para que consigam efetivamente se encontrar.

Os problemas de Daniel s�o mais evidentes: ele n�o sabe o que �, e precisa descobrir e se aceitar como tal. Os problemas de Sara s�o mais urgentes: vivendo no interior nordestino, admoestada pela av� repressora, pela igreja, pela lembran�a e pela expectativa da viol�ncia paterna (infligida justamente por ela ser quem �), precisa encontrar uma sa�da ou, pelo menos, um respiro.

Muritiba e o roteirista Henrique dos Santos lidam com esses personagens de forma impec�vel, apresentando primeiro Daniel e depois Sara. � como se, para chegar a Sara, o espectador precisasse fazer um esfor�o similar ao de Daniel, lan�ando-se na estrada e no imponder�vel. Gra�as a essa divis�o narrativa, quando chegamos a Sobradinho e � outra vida que se descortinar�, estamos melhor preparados para compreender as indecis�es e dificuldades de Sara.

Parte de cena do filme 'Deserto particular'
(foto: Divulga��o)


A surpresa de Daniel � t�o grande quanto aquela que os espectadores (e o protagonista) tiveram com “Tra�dos pelo desejo” (t�tulo brasileiro infeliz para “The crying game”), obra-prima de Neil Jordan lan�ada no come�o da d�cada de 1990. Embora sejam filmes bem diferentes, � interessante notar como toda a conversa sobre a “natureza” de cada indiv�duo que pontua o premiado longa de Jordan possa ser aplicada a “Deserto particular”. Nesse sentido, a sequ�ncia da conversa de um dos protagonistas com um “ex-gay” � de uma viol�ncia muito peculiar e perturbadora. Vemos ali algu�m cuja individualidade foi estripada, um sujeito divorciado da pr�pria natureza, morto em vida.

Na estrada, a resposta

A coisa sempre passa ou come�a pelo indiv�duo. � ele quem pode ter (ou n�o) a coragem de se lan�ar na estrada (real ou figurativamente) e de descobrir e de aceitar (ou n�o) a pr�pria natureza, por assim dizer. Todos somos desertos particulares, nesse sentido. Claro que seria estupidez ignorar ou minimizar a for�a e os efeitos que a viol�ncia do outro tem sobre muitas pessoas em diversos contextos — e, dada a atmosfera reinante no Brasil, em contextos cada vez mais comuns e generalizados.

Mas, em se tratando de Sara, a estrada est� aberta, e os primeiros passos j� foram dados. Parafraseando a can��o de Bonnie Tyler (“Total eclipse of the heart”) que comparece na trilha-sonora, o cora��o de Sara n�o resta eclipsado por nada, nem mesmo pelo medo ou pela viol�ncia f�sica ou simb�lica. H�, claro, a necessidade de investir em um novo deslocamento, na procura de um ambiente um pouco menos intolerante, por mais que ela saiba que, desgra�adamente, n�o existem o�sis no Brasil. Nada disso pode ser menosprezado. Mas, em muitos casos, a resposta est� mesmo na estrada.

Por fim, � curioso como “Deserto particular” concentra-se sobretudo nos efeitos interiores dos deslocamentos que enseja, at� porque os efeitos exteriores s�o muito evidentes e j� foram abordados � exaust�o.

Talvez seja l�cito pensar que enquanto filmes como “Bye bye Brasil” devassam o Brasil ou uma certa ideia de Brasil, “Deserto particular” devassa o brasileiro ou, mais especificamente, dois brasileiros, dois desertos poss�veis, duas pessoas t�o diferentes entre si que acabam se apaixonando.

'Deserto particular': cena do filme
(foto: Divulga��o)


Andr� de Leones � autor do romance “Eufrates” (Jos� Olympio), entre outros.

Tr�s perguntas para Aly Muritiba (diretor de “Deserto particular”)

“O filme pode ser considerado um road movie de amor”

Como nasce “Deserto particular”?
Estava com uma vontade muito grande de falar sobre os afetos masculinos contempor�neos, mas de uma perspectiva diferente. J� tinha trabalhado o tema sob a �tica da vingan�a e do arrependimento; no caso de “Deserto particular”, queria falar de amor. Queria compartilhar o que estava sentindo na minha vida e, neste momento dif�cil que vive nosso pa�s, no qual o discurso de �dio ressoa tanto, seria importante para a audi�ncia entrar em uma sala escura e sentir um pouco de carinho.

“Deserto particular” pode ser considerado um road movie?
Do ponto de vista formal, “Deserto particular” tem uma parte que � road movie, com o deslocamento do protagonista de Curitiba para a Bahia. Mas pode tamb�m ser considerado um road movie porque, emocionalmente, os personagens fazem viagens nas quais os contato deles com outras pessoas, outros ambientes, provocam transforma��es. Nesse sentido, “Deserto particular” pode ser considerado um road movie de amor.

O que “Deserto particular” tem a dizer ao p�blico brasileiro?
Que a toler�ncia, o afeto, a escuta podem transformar, destruir barreiras e preconceitos. No fim das contas, se n�s quisermos, o amor vence. E n�o precisa ser apenas na fic��o.

“Deserto particular”
• Aly Muritiba
• Brasil, 2021, 120 minutos.
• Com Antonio Saboia, Pedro Fasanaro, Thomas Aquino, Laila Garrin e      Cynthia Senek.
• Em cartaz �s 16h, no Cine Una Belas Artes 3


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