
“a pandem�nia”
2021
Pois �, sa� fininho por a� como um rato
amedrontado mascarado se esgueira
pelas sobras do mundo: terra plana.
Nem monturos de lixo nem baga�os de farra
nem destro�os de guerra se avistavam
nos espa�os desertos da cidade.
Andei sem sombra, pois nada a mim se contrapunha,
carros n�o corriam como baratas tontas
(pilotados pelo estrondoso furor dos motoristas)
e as motos temer�rias que antes saracoteavam nas pistas
como corc�is medievais cumprindo seus belicosos pap�is
n�o tinham na desola��o dos cen�rios
mais vez nem voz. Nenhum de n�s, a n�o ser eu, h�las,
que era minha pr�pria e impr�pria testemunha,
se aventurava nesse dia
a ver que a m�quina do mundo engui�ou.
Alguma coisa estava acontecendo...
Os soberbos edif�cios calados
enfileiravam-se inertes tristemente.
As torres industriais n�o vomitavam
a fumaceira encardida dos seus venenos.
� falta de fi�is, ningu�m vendia salva��o nas esquinas.
Fecharam-se os bord�is, os bares e os bazares, os bancos.
Ningu�m se atropelava, mas quem se arriscaria a namorar,
se a contamina��o da pandem�nia estava � solta e invis�vel?
Pol�ticos art�sticos n�o se dispunham
(talvez enfim de si envergonhados)
a sacar na sacada os microfones blindados
que filtram seus discursos pomposos de ursos de circo treinados
para enganar multid�es de anestesiados ot�rios.
Pude olhar para o ar, que estava limpo
e onde os passarinhos de sempre dedilhavam
seus trinados alegres pespontados
nos sadios arabescos do voo em liberdade.
Pude olhar para as nuvens, que avi�es n�o rasgavam,
desenhando no fundo do infinito, t�o maior do que tudo,
suas formas de sonhos que se consolidam e esgar�am.
Alguma coisa estava acontecendo
porque um fio de luz, t�o de manh�
no cora��o das trevas, iluminou minha presen�a,
bateu asas nos olhos e sumiu.
“justifica��o de deus”
1981
o que eu chamo de deus � bem mais vasto
e �s vezes muito menos complexo
que o que eu chamo de deus. Um dia
foi uma casa de marimbondos na chuva
que eu chamei assim no hospital
onde sentia o sofrimento dos outros
e a paci�ncia casual dos insetos
que lutavam para construir contra a �gua.
Tamb�m chamei de deus a uma porta
e a uma �rvore na qual entrei certa vez
para me recarregar de energia
depois de uma estrondosa derrota.
Deus � o meu grau m�ximo de compreens�o relativa
no ponto de desespero total
em que uma flor se movimenta ou um c�o
danado se aproxima solid�rio de mim.
E � ainda a palavra deus que atribuo
aos instintos mais belos, sob a chuva,
notando que no ch�o de passagem
j� brotou e feneceu v�rias vezes o que eu chamo de alma
e � talvez a calma
na qu�mica dos meus desejos
de oferecer uma coisa.
“contempla��o dos seios das beterrabas”
1986manh� de chuva banheira
na horta sabi�s
cantando
em volta
de uma enorme figueira
cujas ra�zes abra�am
uma pedra enorme
que parece um ovo
de musgo cristalizado
depositado pela pr�pria
�rvore galin�cea
fenomenal
parada entre os canteiros
de alface
e depois uma tira
de terra vermelha
na qual despontam afundados
os seios quase roxos
de beterraba
“introdu��o � arte das montanhas”
1995
Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o f�lego
mas n�o desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esfor�o se torna
Um organismo em movimento reagindo a passadas,
e s�. N�o sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal � um �m�,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas n�o sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.
Os poemas acima fazem parte de “Poesia reunida (1968-2021)”, de Leonardo Fr�es. A antologia re�ne os livros do escritor, nascido em 1941 em Itaperuna (RJ). Na orelha, Ricardo Domeneck destaca a pluralidade da obra de um “homem plural: sua zombaria nos poemas sat�ricos contra nossas imposturas nacionais, a contempla��o da natureza tamb�m humana, nas belezas e viol�ncias do desejo”, e afirma: “A poesia de Leonardo Fr�es faz tamb�m da linguagem um animal, um organismo, algo vivo.” Respons�vel pela edi��o do livro, Cide Piquet considera “meditativa” a poesia de Fr�es, “aberta a m�ltiplos atravessamentos”: “� como se, vinda da terra, dessa conex�o mais funda do poeta com a natureza, ela passasse pelo corpo antes de chegar � linguagem.” Leonardo Fr�es � um dos convidados da 19ª edi��o da Festa Liter�ria Internacional de Paraty (Flip) e participar�, com J�lia de Carvalho Hansen e Cecilia Vicu�a, da mesa “Fios de palavras” (1º/12, �s 18h).
“Poesia reunida (1968-2021)”
• Leonardo Fr�es
• Apresenta��o de Cide Piquet
• Editora 34
• 424 p�ginas
• R$ 84