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Jos� Murilo de Carvalho: o homem que nos ajudou a decifrar o Brasil

Historiador mineiro que morreu no dia 13/8 deixou obras fundamentais para a compreens�o dos desacertos entre as classes dominantes e os desfavorecidos


18/08/2023 04:00 - atualizado 17/08/2023 23:26
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José Murilo de carvalho
Jos� Murilo de carvalho (foto: Daniel Bianchini/Divul�gacao)

 

Naquele estu�rio em que a sociologia, a ci�ncia pol�tica, a hist�ria e a literatura se juntam antes de se lan�ar ao mar, Jos� Murilo de Carvalho navegou com desenvoltura na grande aventura de descobrimento sobre o Brasil. No mapa dessa viagem, de t�o amplas e in�ditas paisagens descortinadas, a historiadora Heloisa Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), busca no poeta  Carlos Drummond de Andrade a s�ntese que talvez melhor defina este que tamb�m foi membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 2004 para a cadeira n�mero 5, de Rachel de Queiroz, e integrante da Academia Brasileira de Ci�ncias (ABC): 

 

“Meu pa�s, essa parte de mim fora de mim

constantemente a procurar-me. (...)” 

(Brasil, rima viril de liberdade)

 
Leia: Em entrevista de 2016, Jos� Murilo de Carvalho relembra suas origens

Leia: Conhe�a os livros que tornaram Jos� Murilo de Carvalho uma refer�ncia

“Foi um grande pensador do Brasil, est� entre os maiores historiadores de qualquer tempo”, define a historiadora Heloisa Starling.

 

 “Intelectual permanentemente inquieto. Exercitou o que de melhor se espera do historiador: a indaga��o sobre o sentido e o modus operandi do processo hist�rico”, afirma o historiador Caio Boschi, ex-professor da UFMG, atual professor da PUC Minas e membro da Academia Mineira de Letras.

 

Jos� Murilo de Carvalho publicou 10 t�tulos, organizou 13 outros e escreveu mais de 120 cap�tulos de livros e artigos em revistas especializadas. Morto no �ltimo domingo, aos 83 anos, no Rio de Janeiro, colecionou pesquisas in�ditas em assuntos variados e o respeito e admira��o dos colegas. 

 

De olho na din�mica da Independ�ncia do Brasil, em que um povo nem t�o “bestializado” como se supunha encetava uma guerra liter�ria contra os lusos, estudou os grupos especiais de elites para compreender a op��o pol�tica por um projeto de independ�ncia que manteve a ordem escravista e a unidade no Imp�rio. Mapeou o Primeiro Reinado e enfrentou, no Segundo Reinado, a biografia de D. Pedro II, submergindo nas dores de um governante que oscilava entre a austeridade da coroa e as paix�es mundanas.

 

“Com sua forma��o interdisciplinar, Jos� Murilo foi um historiador que revolucionou o estudo sobre o Imp�rio brasileiro, at� ent�o, considerado sem import�ncia. Mas Jos� Murilo mostrou como muito das bases, da estrutura institucional brasileira, veio do contexto imperial, sobretudo a partir do Segundo Reinado”, avalia Lilia Moritz Schwarcz, historiadora, antrop�loga e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ci�ncias Humanas da Universidade de S�o Paulo (USP). 

 

 

Estudo de iconografia

 

Navegando � procura das origens do radicalismo na pol�tica brasileira, Jos� Murilo de Carvalho encontrou nos anos 1860 as confer�ncias radicais. Eram, segundo Heloisa Starling, pronunciadas em teatros da Corte, de S�o Paulo e do Recife, expandindo a esfera p�blica, em nova arena de debate, de radical agenda reformista liberal que influenciaria as discuss�es nas d�cadas seguintes em torno da Rep�blica que germinava. Com o prop�sito de explorar a funda��o da Rep�blica, Jos� Murilo de Carvalho tamb�m explorou a constru��o de um mito de origem e de s�mbolos que aproximassem Estado e na��o, Rep�blica e Brasil. “Ele anota como faltava � Rep�blica uma iconografia p�tria, e como foi importante a inser��o de Tiradentes como um her�i ao mesmo tempo c�vico e religioso, que se aproxima de um Jesus Cristo”, aponta Lilia Moritz Schwarcz, considerando que, ao faz�-lo, destacou a relev�ncia da iconografia pol�tica para a an�lise e a pr�pria popularidade da Rep�blica, que nascia em 1889.

 

“Jos� Murilo abriga uma longa, incisiva e surpreendente narrativa sobre o Brasil – e sobre o desencontro do Brasil consigo mesmo. Transita em temas diferentes, mas h� sempre, implicitamente ou explicitamente, a tentativa de entender, pensar sobre o Brasil e sobre os seus desacertos”, sustenta Heloisa Starling, orientada em seu doutorado em ci�ncia pol�tica, nos idos dos anos 2000, por Jos� Murilo, por quem foi estimulada a explorar o mar das grandes veredas dos sert�es mineiros, l� onde Minas, Bahia e Goi�s se misturam, em companhia de Jo�o Guimar�es Rosa. 

 

Nada mais certeiro apostar no pulsar da literatura para entender o Brasil: afinal, talvez nenhum escritor mineiro tenha sido, nos anos 1950, t�o atual em suas preocupa��es sobre o pa�s que confrontamos hoje: Medeiros Vaz luta pela liberdade como princ�pio da vida pol�tica; Z� Bebelo lida com a mis�ria e a exclus�o; Joca Ramiro discute a constru��o da cidadania. 

 

A tem�tica da cidadania foi, na avalia��o de Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ci�ncia, mais um dos grandes legados de Jos� Murilo de Carvalho introduzidos na discuss�o pol�tica brasileira.

 

 “Ele emplacou o tema da cidadania, destacando os direitos cidad�os. Com seu livro “Os bestializados”, prop�e a tese de que a vacina��o obrigat�ria promovida em come�os da Rep�blica n�o teria sido simplesmente uma vit�ria da raz�o sobre a doen�a e a supersti��o, mas tamb�m um ato de viol�ncia contra as popula��es. Foi uma campanha de vacina��o muito dif�cil de ser levada a cabo, em decorr�ncia de uma s�rie de supersti��es e mitos que resistiam”, afirma Renato Janine, que aponta para o destaque dado por Jos� Murilo ao aspecto da viol�ncia em que a vacina��o foi imposta. “Assim ele trouxe a tem�tica do desprezo do Estado brasileiro por suas popula��es. Foi nesse mesmo ritmo que cunhou o neologismo ‘estadania’, para dizer que o Estado brasileiro � mais forte na defesa de si pr�prio do que no respeito aos direitos de quem deveriam ser seus cidad�os, mas a quem ele trata como subordinados que devem ser reprimidos. Por isso mesmo, Jos� Murilo deixa, al�m de sua obra, uma forte inspira��o democr�tica”, sustenta Janine, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ci�ncia (SBPC).

 

Ao analisar os direitos civis, sociais e pol�ticos para a forma��o de uma cidadania plena, Jos� Murilo tra�a uma cronologia hist�rica de suas ocorr�ncias no Brasil, assinala a professora em�rita da Universidade Federal de Pernambuco, Socorro Ferraz. “Entre a Independ�ncia, em 1822, e a Revolu��o de 1930, per�odo da forma��o do Estado nacional, os direitos pol�ticos vieram � frente, mas os direitos do cidad�o est�o em negativo, frase muito forte e boa dele. Entre 1930 e 1964, os direitos sociais est�o na dianteira dos direitos pol�ticos, exatamente o per�odo Vargas, uma ditadura que fez grande abertura para os direitos dos trabalhadores urbanos”. 

 

Socorro Ferraz prossegue registrando que com o golpe de 1964 e o longo inverno imposto pela ditadura militar, retornam direitos sociais e hibernam os direitos civis e pol�ticos. Mas a reconquista dos direitos pol�ticos n�o implicou em solu��o dos problemas sociais. Em busca das ra�zes da desigualdade brasileira, Jos� Murilo de Carvalho se orientou pela ess�ncia comercial da coloniza��o, que, introduzindo como exig�ncia a necessidade de capital e da m�o de obra, promoveu a escravid�o, quadro que segue se apresentando no Brasil atual, sob um outro formato.

 

 “Jos� Bonif�cio afirmou, em representa��o enviada � Assembleia Constituinte de 1823, que a escravid�o era um c�ncer que corro�a nossa vida c�vica e impedia a constru��o da na��o. A desigualdade � a escravid�o de hoje, o novo c�ncer que impede a constitui��o de uma sociedade democr�tica. A escravid�o foi abolida 65 anos ap�s a advert�ncia de Jos� Bonif�cio. A prec�ria democracia de hoje n�o sobreviveria a espera t�o longa para extirpar o c�ncer da desigualdade”, escreveu Jos� Murilo de Carvalho em uma de suas obras cl�ssicas, “Cidadania no Brasil: o longo caminho” (Civiliza��o Brasileira).

 

Jos� Murilo chamou a aten��o para o protagonismo militar na vida pol�tica brasileira desde a funda��o da Rep�blica, em golpes e contragolpes, chegando a indagar, ap�s 1964, cioso do fantasma que ronda a democracia brasileira: “Por que n�o estudamos os militares antes que protagonizassem o golpe?”.  O autor desenvolveu profundas reflex�es sobre a trajet�ria hist�rica das For�as Armadas e como estas saltaram da subordina��o ao poder civil ao protagonismo pol�tico na vida brasileira. Para Lilia Moritz Schwarcz, foi uma historiografia muito antenada com as fragilidades da democracia brasileira e com os temas da Rep�blica. “Sempre foi um historiador muito preocupado com a participa��o da popula��o e a falta dela em eventos de grande import�ncia no Brasil. Incluiu temas como a solidariedade, o bem comum, a �tica na pauta dos assuntos fundamentais para a historiadora e o historiador. Deixa obra fundamental, incontorn�vel para quem vai estudar os meandros da Rep�blica e tamb�m o per�odo atual: at� o final de sua vida, cobrou mais republicanismo para o Brasil”, lembra a historiadora

 

Soci�logo e cientista pol�tico de forma��o, mas historiador na a��o, Socorro Ferraz anota os fundamentos metodol�gicos de Max Weber na perspectiva anal�tica de Jos� Murilo de Carvalho. “Ao pesquisar a sociedade brasileira – e seus livros retratam isso –, a compreens�o sociol�gica de Weber vai aparecer na import�ncia que Jos� Murilo d� a determinados fatos, os fundamentos metodol�gicos que v�o na dire��o da constru��o de tipos ideais, nas evid�ncias apresentadas quando mostra a evolu��o da sociedade brasileira. Trabalha numa sociedade que n�o caminhou para uma revolu��o industrial. Nessa sociedade brasileira, com escravid�o, com libertos, com civis, pessoas muito ricas, o latif�ndio, uma sociedade como essa tem muitas nuances. E ele analisa as elites pol�ticas – os militares, os padres, entre outros –, tipos que fazem parte da sociologia compreensiva do Weber”, afirma Socorro Ferraz, pontuando a grande influ�ncia exercida por Jos� Murilo de Carvalho sobre historiadores a partir dos anos 1980, ap�s o potente diagn�stico do “pa�s formado �s avessas”, do jurista Raymundo Faoro (1925-2003) em “Os donos do poder – forma��o do patronato pol�tico brasileiro”.

 

 “Faoro leva o debate mais para as quest�es do estado. E Jos� Murilo, com sua forma��o, aperfei�oa e complementa esse debate em muitos dos seus livros e temas, que dizem respeito � constru��o da ordem, durante a forma��o do Estado nacional, do lento desenvolvimento da cidadania no Brasil, do papel das elites, da burocracia militar e civil na pol�tica brasileira”, afirma Socorro Ferraz.

 

 


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