
Das Minas da terra para o mundo
Rog�rio Faria Tavares
Especial para o EM
Na longa entrevista biogr�fica que fiz com Jos� Murilo de Carvalho, em julho de 2016, na sede do Instituto Hist�rico e Geogr�fico Brasileiro (IHGB), ele se deteve longamente nas origens de sua fam�lia. Relembrando que os Ribeiros maternos e os Carvalhos paternos vieram para Minas Gerais no bojo da forte migra��o dos minhotos para o estado, ainda no s�culo 18, ele creditou a essa “onda” o poder de formar uma “segunda Minas”, a que chamou de “Minas da terra', suced�nea das 'Minas do ouro”. Essa nova configura��o gerou uma sociedade est�vel, baseada na agricultura de consumo (abastecia at� o Rio de Janeiro), de valores religiosos e morais fortes e de fam�lias s�lidas, nada tendo que ver com o per�odo anterior, marcado pela “tradi��o de rebeldia”. Envolvida no cultivo de cereais e na cria��o de gado leiteiro, sua linhagem se fixou no Campo das Vertentes, regi�o de que S�o Jo�o del-Rei e Barbacena s�o as principais cidades. Nascido no meio rural, Jos� Murilo n�o fez o curso prim�rio. Alfabetizado pelo pai, viveu na fazenda at� os 10anos, quando iniciou p�riplo por tr�s internatos franciscanos: o primeiro em Santos Dumont, o segundo perto de Garibaldi, no Rio Grande do Sul, e o �ltimo em Divin�polis.
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Seu pr�ximo passo foi tentar o vestibular para economia. Reprovado por n�o resolver uma equa��o matem�tica, prestou novo concurso para sociologia e pol�tica, alcan�ando a segunda coloca��o. Parte de "Contribui��es para a hist�ria do IHGB", livro que lancei em 2018, o depoimento de Jos� Murilo tamb�m incluiu passagens sobre sua experi�ncia universit�ria nos turbulentos anos do Golpe de 64, al�m de reflex�es sobre sua primeira pesquisa, de 1966, que resultou no texto publicado pelo professor Orlando de Carvalho na Revista Brasileira de Estudos Pol�ticos: "Barbacena: a fam�lia, a pol�tica e uma hip�tese".
Em fina an�lise sobre aquele momento hist�rico, n�o se esqueceu de mencionar sua atividade como membro da A��o Popular, quando, com o apoio da Igreja, percorreu o interior mineiro fomentando a forma��o de sindicatos rurais. Respons�veis por consolidar sua voca��o para a vida acad�mica, o mestrado e o doutorado em Stanford abriram caminhos para o intelectual que lecionou por d�cadas no Rio de Janeiro e nas melhores universidades do planeta, e escreveu artigos e livros fundamentais para a compreens�o da hist�ria brasileira. Seu legado � incontorn�vel e perene. De sua personalidade refinada, generosa e gentil ficar� uma saudade terna e eterna.
A seguir, leia alguns trechos do depoimento de Jos� Murilo de Carvalho.
Rog�rio Faria Tavares � jornalista, doutor em literatura e presidente em�rito da Academia Mineira de Letras
Origem da fam�lia
"A minha fam�lia ocupa a regi�o de Minas Gerais que se chamava Campos do Mantiqueira. Agora � a cidade de S�o Jo�o del-Rei, Barbacena... aquele (miolo). A fam�lia, tanto os Carvalhos quanto os Ribeiros, que tamb�m � de minha m�e, fazem parte de uma forte migra��o portuguesa para Minas, j� no s�culo 18. Na �poca j� existia a vila – em dire��o ao ouro, n�? Mas foram suficientemente espertos pra perceber que havia uma outra maneira de fazer, que n�o era minerar, mas alimentar os mineiros. Ent�o, come�aram a se expandir em torno de S�o Jo�o del-Rei e ocuparam ali uma regi�o vasta, com dezenas de fazendas de cereais e depois de gado leiteiro. Era uma segunda Minas que se formava, ao lado da Minas do ouro, o que eu chamei da 'Minas da terra', que come�ou a se formar ali, e que depois j� se tornou predominante com a queda da produ��o do ouro, j� final do s�culo 19, in�cio do s�culo 20. Essa Minas da terra se expandiu para o Sul de Minas tamb�m, Zona da Mata e toda essa regi�o que passou a abastecer o Rio de Janeiro, quando a corte veio (de Portugal). Ent�o, em propriedades de terra, tamanho m�dio das terras, havia, obviamente, escravid�o. Mas, e tem dados sobre isso, n�o se comparava com a escravid�o do a��car no Nordeste e nem � escravid�o do caf�. Eram plant�is pequenos de escravos. Quem tinha trinta escravos era muito, a maioria tinha menos. Porque era essa agricultura de consumo: cereais em geral e gado leiteiro."
Longe da tradi��o
"Essa Minas (da fam�lia) � marcada por certos tra�os que �s vezes s�o incorporados. Outro que se chama mineiridade – eu n�o gosto muito da express�o –, mas que n�o tem nada a ver com a tradi��o mineira do s�culo 18. Que era essa uma tradi��o rebelde, revolucion�ria e tudo. Quer dizer, n�o havia praticamente fam�lia naquela regi�o. Essa nova, n�o. � est�vel, com fam�lias s�lidas, com valores religiosos muitos fortes... E um tra�o que � muito interessante, que � extrema honestidade nas negocia��es. A hist�ria do fio da barba (bigode) como garantia do neg�cio."
Da fazenda ao internato
"At� os dez anos de idade eu fiquei na fazenda. N�o fiz..., nunca fiz o ensino prim�rio, nunca fui � escola. O meu pai, que era dentista, nos ensinou a ler e a escrever l� no meio das vacas. Fomos aprendendo dessa maneira, at� que nos mandaram para o internato. A� foi outra hist�ria e come�a outra vida. Fiz o internato em Santos Dumont. Era um semin�rio franciscano. Quando me deixaram l� com o meu irm�o mais velho, meu tio nos levou e foi embora. N�s choramos uma semana. Fiquei bastante tempo, cheguei a ir para o Rio Grande do Sul, no mesmo esquema, morei l� uns tr�s anos, perto de Garibaldi, depois para Divin�polis e depois sa�. E fiz vestibular para a Faculdade de Ci�ncias Econ�micas da UFMG."
Chegada � UFMG
"Visitei a Faculdade de Ci�ncias Econ�micas, que era modelo, certamente, em termos de funcionamento. Nossas universidades, nossas faculdades em Belo Horizonte eram modelo. O dono dela era um d�spota esclarecido... (Ivon) de Magalh�es, que era um d�spota esclarecido, a faculdade funcionava uma beleza, n�? Os funcion�rios de uniforme, alunos chegavam na hora, todos chegavam na hora, havia papel higi�nico nos banheiros... Tentei o vestibular para economia, primeira tentativa. Mas eu tinha feito equivalente ao cl�ssico. Ent�o havia prova oral. E quando o professor mandou resolver uma equa��o de segundo grau na prova oral, eu naufraguei. E o professor foi at� gentil, ele falou: 'Olha, assim n�o d�'. A�, logo a seguir, houve segunda chamada, a� eu fiz para sociologia e pol�tica. A� eu tirei de letra. Ganhei uma bolsa e, com isso, eu pude terminar o curso e fazer como aluno bolsista. E foi como obriga��o dessa bolsa que eu escrevi um trabalhinho ('Barbacena antes de Barbacena', publicado em 1966). Eu tenho saudades desse tempo. No Brasil, foi a �nica escola que realmente me deixou saudades. Porque realmente funcionava bem. Al�m disso, eram tempos agitados, n�? Tempo agitados. Eu entrei l� em 1961 e formei no final de 1965. Uma agita��o muito grande estudantil, os grupos de esquerda e de direita se enfrentando, mas tamb�m a esquerda contra a esquerda. Me formei em 65, e logo aconteceu o qu�? Como consequ�ncia da revolu��o cubana, os Estados Unidos passaram a dar mais aten��o ao Brasil. E a Funda��o Ford, que n�o era do governo, era coisa particular, tinha decidido, dar bolsas de estudos para brasileiros. Fui selecionado para fazer o doutorado na Universidade de Stanford. E l� fui eu, do Curral da Santa Cruz, fazenda, para Stanford (onde fez mestrado e doutorado em ci�ncia pol�tica)."
Londres e Princeton
"Foi em Londres (no p�s-doutorado) que passei realmente a estudar a hist�ria da Am�rica Latina. L�, sim, a� eu comecei a fazer uma guinada da circunst�ncia pol�tica para a hist�ria. Mas foi uma coisa curta. O que me marcou realmente foi a experi�ncia de um ano como visitante no Instituto de Estudos Avan�ados de Princeton. � um instituto com um grupo pequeno de pesquisadores, que anualmente chama vinte, trinta pessoas no mundo inteiro. Fiquei absolutamente encantado com essa experi�ncia. Um historiador que ficou muito conhecido, Robert Darnton, do famoso texto 'O massacre dos gatos', apresentou l� a primeira vers�o. Clifford Geertz, o antrop�logo, que ficou depois tamb�m muito conhecido, influente, estava l�, assim como Albert Hirschman, economista dedicado � Am�rica Latina. Colegas indianos, holandeses, franceses... Convivi um ano com essas pessoas. Abriu a cabe�a al�m da sociologia e da pol�tica, para a hist�ria, para a hist�ria das artes, para uma s�rie de coisas."
De volta ao Brasil
"Voltei ao Brasil no finalzinho de 1968, logo depois do golpe no golpe. J� tinha sido inaugurado o Departamento de Ci�ncia Pol�tica (da UFMG) como consequ�ncia dessa doa��o da Funda��o Ford Nessa disputa l�, acabou ficando na Faculdade de Filosofia (e Ci�ncias Humanas da UFMG, Fafich), n�o na Faculdade de Ci�ncias Econ�micas, porque o pessoal da Ci�ncias Econ�micas expulsou... Eles expulsaram o curso de sociologia e pol�tica de l�, porque os alunos criavam muito problema. Ent�o o departamento foi localizado na Fafich. Funcionou um tempo na reitoria, depois foi pra Fafich ali na Rua Carangola. Voc� pode imaginar o choque que eu senti. Porque (a faculdade de) Ci�ncias Econ�micas era muito organizada, a Fafich realmente nem tanto, n�? Nem tanto. Al�m disso, eram os anos do AI-5. E foi um choque enorme. Enorme. Porque era o oposto inclusive do que eu tinha vivido na Ci�ncias Econ�micas. Os alunos n�o chegavam, ou chegavam e sa�am na hora que queriam, ficavam conversando em sala de aula... E a parte pol�tica. Que quando eu estava na Ci�ncias Econ�micas, aluno que queria ter lideran�a estudantil, ele tinha que ser o primeiro aluno na sala de aula. Sen�o, ele n�o tinha autoridade. Quando eu cheguei l� na Faculdade de Filosofia, era o oposto: aluno que queria ter lideran�a estudantil n�o podia... n�o convinha nem ir � sala de aula. Porque ir � sala de aula significava que ele estava ‘assim’ com os homens. Quer dizer, ele era conivente com as pessoas que representavam o poder, alguma coisa. Ent�o, era um inferno para trabalhar. Foi realmente uma experi�ncia muito dif�cil."
Estudo do Imp�rio
"Fui para Stanford j� com um projeto de dar continuidade ao que tinha come�ado a fazer em Minas, que � o estudo de poder local. Mas mudei totalmente o meu tema. Decidi estudar a elite pol�tica do Imp�rio. E, com isso, eu ficava dependendo muito de atividades no Rio, que tinha a Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional... Ent�o resolvi deixar a UFMG e ficar no Rio em uma institui��o particular, que era o Iuperj (Instituto Universit�rio de Pesquisas do Rio de Janeiro). A� continuei dando mais ou menos as mesmas aulas. E a� era uma institui��o que funcionava no modelo americano, s� tinha p�s-gradua��o. Ent�o n�o tinha gradua��o e quase todo mundo era formado nos Estados Unidos. E o Iuperj teve um impacto enorme na �rea de sociologia e ci�ncia pol�tica, sobretudo. Terminei a tese 'A constru��o da ordem', que saiu em dois volumes. A segunda parte, 'Teatro de sombras', saiu depois. E somente depois � que os dois livros foram fundidos em um s�."
Do Imp�rio � Rep�blica
"Uma ex-aluna do Iuperj estava dirigindo o Centro de Pesquisa da Casa Rui Barbosa, a� ela me convidou para l�. Estava ali o arquivo do Rui Barbosa, que � muito grande, e tem uma parte razo�vel do per�odo imperial, mas o forte do arquivo � a atua��o dele na Rep�blica, a partir do ministro da Fazenda, ministro da Rep�blica, enorme. Ent�o, cronologicamente, fui seguindo e passei a estudar a Rep�blica. E dessas pesquisas sa�ram dois livros: ‘Os bestializados’ e ‘Forma��o das almas’. Fiz tamb�m a reda��o de um outro ensaio, que era o 'Cidadania no Brasil'."
Perplexidade com o golpe militar
"Quando veio (o golpe militar de) 1964, a sensa��o que eu tive foi de perplexidade. Eu me lembro de a gente andar por Belo Horizonte, no dia 1º de abril, perplexo. N�o � que as pessoas n�o esperassem o golpe. Havia uma expectativa. Expectativa havia. Pessoas que falavam na viabilidade do golpe. Mas ningu�m previu o tipo de golpe que foi dado. Isso �... Os militares tomaram o poder e ficaram no poder. Isso era in�dito no Brasil. Em 1930 n�o foi assim, em 1937 n�o foi assim, em 1945 n�o foi assim, em 1954 n�o foi assim. A� comecei a me perguntar: 'Mas por que ningu�m previu isso?' Como aluno eu comecei (a pensar): ‘N�o, ent�o eu vou ver que tipo de gente � essa, o que aconteceu no Ex�rcito que fez eles mudassem de posi��o em rela��o � interven��o pol�tica’. E a� comecei a estudar os militares. O Boris Fausto tamb�m havia me pedido um estudo sobre militares. No CPDOC (Centro de Pesquisa e Documenta��o de Hist�ria Contempor�nea do Brasil) eu expandi essa pesquisa para o per�odo de 1930 e um pouquinho... pelo menos at� 1945, expandi muito essa pesquisa, que deu um trabalho sobre os militares nesse per�odo, e que depois deu um livro ('For�as armadas e pol�tica no Brasil')."
Estudo da elite
"Resolvi realmente enfrentar esse tema (estudo das elites) porque me atra�a, mas era politicamente ingrato. Naquele momento, j� durante a ditadura, estudar a elite era uma coisa que n�o ca�a bem. Nem hoje. O que estava estudado eram personagens, biografias, pessoas. Mas n�o a elite como um coletivo. Resolvi fazer isso em duas partes da tese. Uma realmente � o papel dessa elite e a outra parte � a pol�tica desenvolvida, a pol�tica imperial. Acho que pela primeira vez eu botei isso tamb�m em n�meros. Que a� realmente vinha da minha forma��o de ci�ncias sociais. E uma hip�tese central que dirigia. Ent�o, voc� pode dizer que realmente � uma tese que � tanto hist�ria, mas � de hist�ria pol�tica. Porque o gancho da coisa � uma teoria: o papel da elite em determinado tipo de pa�s. Estudei at� a Turquia pra ver esse tipo de impacto. A pesquisa foi hist�rica, mas tamb�m com esse vi�s um pouco estat�stico. Tanto que tem muita tabela. Historiador n�o fazia tabela. Nem sabia fazer. At� hoje, a maioria n�o sabe fazer."
Elite social, elite pol�tica
"A elite definida como eu defini: ministros, deputados, senadores, conselheiros de Estado. N�o elite social, elite pol�tica. E as duas nem sempre coincidiam. Esse inclusive � um grande ponto. At� que ponto elas (as duas elites) coincidem ou n�o coincidem? Cheguei �s conclus�es e descobri esse impacto tremendo de Coimbra (escola portuguesa). At� metade do s�culo 20, boa parte da elite tinha sido ainda formada em Coimbra. At� a forma��o da cria��o das escolas (de direito), em 1928, que � s� a partir de 1928, 1929, 1930, a partir do in�cio... j� na Reg�ncia que este pessoal de S�o Paulo come�ou a entrar na pol�tica, n�? Alguns como o pr�prio Visconde de Uruguai, que come�ou em Coimbra e terminou em S�o Paulo. As evid�ncias s�o bastante fortes nessa dire��o. E a segunda parte � a pol�tica. A� entra a pol�tica, (pesa) a aboli��o, problema do or�amento imperial, etc. Eu mostro realmente que embora, n�o h� d�vida, a economia fosse dominada pela escravid�o, latif�ndio, com�rcio, etc., mas na elite, nas decis�es, havia uma mistura grande. Que havia realmente um grupo de burocratas, sobretudo, o pessoal em torno do imperador, que essas posi��es se chocavam. Ao ponto que o Ventre Livre foi uma batalha extraordin�ria no Congresso, talvez a maior batalha no Congresso brasileiro, em termos inclusive de dura��o e intensidade dos debates, manifesto dos populares brasileiros, etc. Foi um debate interessante, em que, no final, claramente a vontade do imperador, via (Visconde) Rio Branco, acabou derrotando os interesses de suas elites."
De baixo para cima
"(Com os livros 'Os bestializados' e 'A forma��o das almas') Eu inverti um pouco a postura, em vez de olhar de cima pra baixo, eu passei a olhar de baixo pra cima. Ou pelo menos como � que os de baixo se relacionavam com os de cima. Isso est�, sobretudo, em 'Os bestializados'. Com a Rep�blica foi proclamada essa rela��o entre povo e pol�tica... Nesta pesquisa, eu, de novo, para surpresa minha, encontrei os positivistas como atores pol�ticos. Na faculdade, positivismo era uma palavra feia. Era o oposto da dial�tica. Ent�o, dial�tica era bom, positivismo era ruim. Mas n�o encontrei positivismo como doutrina, mas encontrei com os positivistas. E os positivistas s�o ortodoxos, n�? E isso me abriu muito a cabe�a. E a� j� com a influ�ncia de Princeton, da �rea das artes, etc., para o lado, digamos, efetivo da pol�tica. Que o Comte p�s-Clotilde levou, que... Comte da Religi�o da Humanidade, n�o o Comte do Curso de Filosofia Positiva, mas o Sistema de Pol�tica Positiva, ele passou a valorizar muito o lado afetivo na pol�tica. Da� que ele colocou a mulher como o centro de tudo, a mulher como s�mbolo da humanidade, a humanidade como mulher. Quer dizer, fez uma religi�o laica. Tirou a Nossa Senhora, cortou a transcend�ncia e botou a imagem, que � a imagem de Clotilde como a deusa, a deusa da humanidade. Ent�o, a humanidade se transformou em deusa. E eles levavam isso a extremos. Tanto que, por exemplo, em enterros, eles n�o falavam "a deusa", eles falavam "adeusa". A incorpora��o do proletariado, a valoriza��o da mulher, a prote��o aos �ndios, o pacifismo... Eles fizeram quase tudo certo, n�? Certo, do ponto de vista de hoje. Com algumas exce��es... Porque o positivismo tinha essa ideia da ditadura republicana. N�o � a ditadura no sentido de hoje, mas era um Executivo muito forte. Isso a� foi uma heran�a deles que talvez o Get�lio (Vargas) tenha juntado com a tradi��o ga�cha dos caudilhos e talvez tenha afetado. Mas afetou tamb�m a pol�tica trabalhista. Enfim. Na minha vis�o, o que h� de mais interessante tem um pouco de m�todo tamb�m. A imagem era usada sempre como ilustra��o do texto. Nisso eu aprendi, neste texto, a usar a imagem com o texto. Tem Monumento ao Floriano (Peixoto, no Centro do Rio de Janeiro). Voc� n�o bota l� a imagem... Voc� pega o monumento e l�. Inclusive o Movimento Positivista usava muito para isso, porque eram todos did�ticos. Isso foi realmente uma proposta dos positivistas, que, como diz um historiador portugu�s, o (Fernando) Catroga, que tamb�m, sem que eu soubesse, trabalhou muito nisso. Porque ele trabalhava sob o ponto de vista do afeto na pol�tica. Quer dizer, a pol�tica n�o apenas como convencimento racional, mas como mobiliza��o do sentimento. E produ��o do imagin�rio, que voc� faz pelas artes. Eles trabalhavam, sobretudo, pintura, escultura... Pintura, escultura e arquitetura e a cria��o de mitos, de her�is – Tiradentes – e de s�mbolos como a bandeira. A ideia de valoriza��o da ideia de p�tria e a ideia de Rep�blica como dedica��o ao bem p�blico. Eu costumo dizer que eles eram ETs ao valorizar o servi�o p�blico. Voc� tem que se dedicar ao coletivo: � humanidade, � p�tria e deixar em segundo lugar o seu interesse pessoal. Quer dizer, isso hoje no Brasil � um espanto, quem vai pensar dessa maneira?"
Vis�o da cidadania
"O meu livro ‘ A cidadania no Brasil: o longo caminho’ � uma panor�mica e foi feito por encomenda de um col�gio do M�xico. Foi publicado em espanhol em primeiro lugar. Parte de certos conceitos, dos tipos de direitos, civis, pol�ticos e sociais, e verifica como isso se verificou ao longo da hist�ria do Brasil. N�o � um texto acad�mico. Praticamente n�o tem notas de p� de p�gina. � para um p�blico amplo. A ideia realmente um pouco era essa: como, na descontinuidade, que � a marca da hist�ria, � poss�vel ver certos tra�os de continuidade, mas tra�os que s�o constantes e que sofrem altos e baixos. Depois saiu a edi��o em portugu�s e, pelo que eu ou�o das editoras, esse livro � usado bastante em curso de gradua��o. Inclusive nas faculdades de direito."
Finalidade da hist�ria
"Eu acho muito importante para a hist�ria alcan�ar um p�blico maior. � uma discuss�o que eu tenho com os colegas, h� uma certa m� vontade de alguns. Todo mundo hoje quer o monop�lio da hist�ria para quem tem diploma de curso de hist�ria. Nesse processo cria-se quase um dialeto do historiador. E com todo esse aparato de (anota��es), etc., realmente torna a leitura da maioria desses textos um tanto dif�cil mesmo, um tanto penosa. (Principalmente), o contexto que vai para as revistas acad�micas n�o atinge um p�blico geral. Eu acho que se pode fazer as duas coisas."
Livro de depoimentos
As declara��es de Jos� Murilo de Carvalho que o Pensar publica hoje est�o no depoimento que o historiador concedeu a Rog�rio Faria Tavares e foi publicado no livro “Contribui��es para a hist�ria do IHGB”. Lan�ado em 2018, o volume re�ne entrevistas de nomes como Angelo Oswaldo, Arno Wehling, Candido Mendes de Almeida, Marcos Azambuja e Pedro Corr�a do Lago, todos s�cios do Instituto Hist�rico e Geogr�fico Brasileiro. A �ntegra dos depoimentos est� dispon�vel, em v�deo, para consulta na Biblioteca do IHGB em sua sede, no Rio de Janeiro.