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Estado de Minas CARTAS

Livro re�ne cartas de Fran�oise Ega para Carolina de Jesus

Desigualdade social e racismo e opress�o est�o na correspond�ncia endere�ada a brasileira quando a escritora da Martinica trabalhou como faxineira na Fran�a


14/05/2021 04:01 - atualizado 14/05/2021 10:42

Se, em maio de 1962, Fran�oise Ega gastava 25 minutos de �nibus para chegar � casa onde trabalhava como faxineira, em Marselha, foram quase seis d�cadas para que suas palavras chegassem � l�ngua e ao pa�s da destinat�ria de seu “Cartas a uma negra”, em tradu��o de Vin�cius Carneiro e Mathilde Moaty.

A escritora nascida na Martinica conheceu Carolina Maria de Jesus nesse trajeto at� o emprego, n�o como uma passageira do mesmo coletivo, mas a figura nas p�ginas da revista Paris Match, lida durante a viagem e que tratava do sucesso de “Quarto de despejo” (1960). A identifica��o com a brasileira e o desejo de estabelecer um di�logo liter�rio foram imediatos e se estenderam em cartas escritas e datadas at� junho de 1964. Mas jamais postadas.

J� nas linhas iniciais dessa narrativa, tanto epistolar quanto romanesca, tamanha a unidade e o encadeamento dos acontecimentos que alinhava, a narradora-remetente faz quest�o de destacar o qu�o pr�xima sente-se de sua destinat�ria. “Pois �, Carolina, as mis�rias dos pobres do mundo inteiro se parecem como irm�s. Todos leem voc� por curiosidade, j� eu jamais lerei; tudo o que voc� escreveu, eu conhe�o.”

A proximidade estabelecida entre as duas escritoras acentua-se pela escolha formal que Fran�oise Ega (1920-1976) faz pelas cartas. O g�nero �ntimo torna-se o pretexto para trazer � tona injusti�as que remetem ao legado colonial a atravessar vidas que n�o se limitam �s delas, sempre a partir de um ponto de vista interno e testemunhal. Denuncia a explora��o de imigrantes a partir do relato de situa��es concretas e vividas por pessoas de quem ela conhece a proced�ncia e o nome, de modo que o car�ter autobiogr�fico de sua escrita apenas refor�a o efeito de pacto horizontal entre duas mulheres, e todas as outras que com elas se identificam.

Semelhan�as e distin��es

Apesar das dist�ncias no mapa, o �ngulo de ambas nos locais onde vivem se assemelha e se refor�a mutuamente tamb�m pelas diferen�as, o que torna a voz de cada uma �nica e dona da pr�pria hist�ria. Fran�oise Ega n�o � a Carolina Maria de Jesus � francesa ou vice-versa. Um dessas distin��es est� no fato de a brasileira ter abandonado os servi�os dom�sticos e sobreviver principalmente como catadora de papel, atividade que lhe for�a a estar a maior parte do tempo a p� pelas ruas.

J� a pot�ncia dos relatos da antilhana tem como base o que vivencia e observa no interior das casas burguesas, entre outros espa�os onde trabalhou. Datil�grafa de forma��o, com muito custo encontra um escrit�rio onde n�o a recebem com preconceito e a contratam, caso raro que n�o faz com que ela perca de vista jamais as rela��es marcadas pela subalternidade (leia trecho).

As condi��es a que s�o submetidas as empregadas, faxineiras e bab�s negras revelam o perfil perverso das patroas europeias. O leitor est� diante de megeras e filhos malcriados, com uma ou outra exce��o. O autoritarismo e o abuso presentes nos gestos mais corriqueiros s�o ressaltados por uma pr�tica identificada como uma atualiza��o do tr�fico de pessoas. O pagamento das passagens para que mulheres se desloquem das Antilhas at� a Fran�a para trabalhar para as fam�lias gera uma d�vida comparada � compra de uma carta de alforria, quitada por meio de trabalho n�o remunerado e sem qualquer amparo legal.

A situa��o de Fran�oise Ega, que imigrou no contexto da Segunda Guerra, entretanto, � menos brutal que a da maioria de suas compatriotas. Casada desde 1946 com um ex-militar antilhano, com quem teve cinco filhos, sua fam�lia � pobre, mas tem alguma estabilidade. Nesse sentido, tamb�m distinta da situa��o de Carolina, m�e de tr�s filhos de pais diferentes, todos ausentes.

Seguidas vezes, Ega reconhece se submeter a certas situa��es nas casas das madames para saber at� que ponto elas chegam, como uma forma de empirismo a determinar tanto o car�ter de sua literatura como o de sua atua��o como ativista social, mais do que uma quest�o de sobreviv�ncia a todo custo.

“H� outras, e s�o a maioria, que se dobram ao jugo. Esta aqui me conta como, sob pena de san��o, � for�ada a limpar as roupas �ntimas da dona da casa. Outra come de p�. Outra � levada a um chal� na montanha e obrigada a buscar �gua na fonte, a qual encontra apenas depois de remover a neve com picareta. Meu marido resmungou: eu deveria ter ficado em casa. ‘Por que engrossar as fileiras desse gado humano?’, ele disse. � bem simples: nunca poderei falar sobre isso com conhecimento de causa se n�o souber do que se trata.” Em outro epis�dio, no qual, desavisada, � contratada como costureira em um hotel que funciona como prost�bulo, mais uma vez o marido se revolta e ela conclui: “S� podemos falar com propriedade sobre o que presenciamos”.

 O dia a dia da narradora � marcado por muitas dificuldades, sim, mas sem jamais abrir m�o do elogio constante � liberdade como condi��o que lhe distingue e que reconhece em sua destinat�ria. Al�m da compra semanal da revista onde leu os trechos dos escritos de Carolina, d�-se ainda a outro “luxo”, como ela mesmo define, o de comprar um cafezinho. “Custa somente quarenta centavos. Para ganhar quarenta centavos preciso dar duro por doze minutos. Em doze minutos lavo um monte de lou�a! Como � gostoso o caf� batalhado! E como s�o infelizes aquelas cujas vidas s�o reduzidas a esse c�lculo. Quem tem dinheiro em abund�ncia n�o pensa nisso. As que, como eu e voc�, n�o conhecem nada al�m de um futuro incerto, mas que s�o livres, que t�m a possibilidade de se rebelar, de recusar a condi��o de escrava, s�o aben�oadas. Como tenho pena das pobres meninas a quem se diz: ‘Fique � vontade para tomar caf� o quanto quiser depois de acabar o servi�o’.”

Chama a aten��o tamb�m a recorrente compara��o que a narradora de “Cartas a uma negra” faz entre a panela cheia em sua casa quando comparada � das patroas, sempre obcecadas com dietas para emagrecer e em negar comida aos empregados. O contraste com a escassez de alimento que se l� em “Quarto de despejo” � evidente. A fome � das palavras com as quais mais se topa nas p�ginas sa�das dos cadernos de Carolina. Refr�o do que a linguagem carece de dizer do atravessado no corpo e talvez por isso mesmo a escritora precisa pint�-la, para que seja vista e nunca ignorada: “A cor da fome � amarela”.  

Quando, � certa altura, Ega sonda vagas para dom�sticas, e observa a demanda “procuram-se pessoas, ‘alimenta��o e alojamento’”, faz quest�o de refor�ar: “J� tenho ‘alimenta��o e alojamento’, ent�o voltei para casa”. O direito do retorno ao pr�prio lar tamb�m sobressai quando comparada � situa��o de quem precisa se sujeitar aos c�modos destinados �s empregadas nas casas francesas com seus por�es equiparados a calabou�os.

Uma idosa identificada como zeladora surge da penumbra e aponta o compartimento em que habita, em tudo parecido com a no��o do c�modo que d� t�tulo ao livro de Carolina, que escreve: “Quando estou na favela tenho a impress�o que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. Em Ega, ouvimos a senhora contar: “Antes, eu era a governanta, mas fiquei velha, e fui alojada aqui. Eu limpo as escadas [...]. Cada vez tenho menos trabalho, sou muito velha, me disseram para morrer em outro lugar!”.

A quem ser� que se destina

A op��o pelas cartas remetidas a um destinat�rio a condensar tantos destinos me remeteu ao recente “O avesso da pele” (2020), de Jeferson Ten�rio, no qual o filho escreve ao pai, mas se dirige a um voc�/tu que � tamb�m o leitor do livro. Essa forma imp�e no m�nimo duas posi��es: espiar uma troca �ntima que n�o se aparta do que � p�blico sem se deixar tocar; reconhecer na intimidade estabelecida entre os pares o que afeta todos e se implicar.

H� ainda uma tens�o constante entre o testemunho de a��es que buscam aniquilar os sujeitos dessas hist�rias – como desdobramento da a��o colonial em diferentes momentos hist�ricos –, e o da luta pela sobreviv�ncia, por n�o se deixar matar. Falam os mortos por meio do que segue vivo. No romance de Ten�rio, sabemos de cara que o destinat�rio-pai est� morto, enquanto as narrativas antilhanas de Ega, publicadas originalmente em 1978, t�m um duplo registro do que � p�stumo, uma vez que sua autora morre em 1976 e aquela a que se dirige em 1977. 

As cartas, tais como escritas, assemelham-se a um di�rio que prev� um leitor, como � o caso do pr�prio “di�rio de uma favelada”, subt�tulo do livro de Carolina. Se as cartas n�o chegaram ao seu destino em termos de um registro documental, envolvendo envelopes e selos, a correspond�ncia efetiva se d� no plano do “e se” da fic��o, atravessado pela media��o do autobiogr�fico e alcan�ado gra�as ao epistolar como um efeito est�tico do que agora se endere�a tamb�m a n�s e �s tantas Carolinas que, qui��, podem se dar ao luxo de ler sobre Fran�oise Ega nesta p�gina de jornal.

*Luciana Araujo Marques � jornalista, mestre em teoria liter�ria (USP) e doutoranda em teoria e hist�ria liter�ria (Unicamp)

Trecho

“Aqui � triste! Somente as pessoas da frente mudam esse cen�rio, a senhora est� certa em relaxar!” Eu n�o podia acreditar! Faz dezoito meses que ningu�m me diz isso, muito pelo contr�rio!
 
Carolina, preciso repensar minha maneira de ver as coisas, mas antes gostaria de saber se o doutor agiria do mesmo jeito comigo se um dia eu varresse a casa dele!

Agora, para escrever a voc�, Carolina, tenho um sistema: no �nibus, uso minha bolsa como suporte para o caderno e pego uma Bic. � quase uma hora de trajeto, e uso esse tempo perdido como posso, escrevendo sem parar. A mulher de cinza que sempre senta na minha frente ficou intrigada. Ela me perguntou a quem eu escrevia, e emendei:

“Para a Carolina!”

“� sua filha?”

“N�o, � minha irm�!”.


“Cartas a uma negra”
Fran�oise Ega
Tradu��o de Vin�cius Carneiro e Mathilde Moaty
 Todavia Livros
256 p�ginas
R$ 59,90


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