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Estado de Minas

"O modo de funcionamento da humanidade entrou em crise", opina Ailton Krenak

Em entrevista exclusiva, o l�der ind�gena reflete sobre o significado da pandemia de coronav�rus e faz um alerta: "Se voltarmos � chamada 'normalidade', n�o valeram de nada as mortes de milhares de pessoas"


03/04/2020 04:00 - atualizado 03/04/2020 10:24

Ailton Krenak: 'Terra está falando para a humanidade: 'silêncio'. Esse é também o significado do recolhimento'
Ailton Krenak: "Terra est� falando para a humanidade: 'sil�ncio'. Esse � tamb�m o significado do recolhimento" (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)

O mundo est� em suspens�o. O momento � de recolhimento, de sil�ncio. A experi�ncia do isolamento social, para enfrentar o horror do novo coronav�rus, pode trazer li��es valiosas � humanidade. “Se essa trag�dia serve para alguma coisa � mostrar quem n�s somos. � para n�s refletirmos e prestar aten��o ao sentido do que venha mesmo ser humano.  E n�o sei se vamos sair dessa experi�ncia da mesma maneira que entramos. Tomara que n�o”, afirma o escritor Ailton Krenak, de 66 anos, um dos mais destacados ativistas do movimento socioambiental e de defesa dos direitos ind�genas e doutor honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora. 

Recolhido em sua aldeia no Rio Doce, o autor de Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras) observa que o ser humano descolou-se da natureza e da sintonia com a terra, “devorada” por grandes corpora��es que controlam os recursos financeiros do planeta e persistem na concep��o europeia colonizadora de que exista uma “humanidade”, enclausurada na maior parte de sua vida em ambientes artificiais. “Essa chamada humanidade, na verdade, constitui um grupo seleto que exclui uma variedade de sub-humanidades, cai�aras, �ndios, quilombolas, abor�genes, que vivem agarradas � terra, aos seus lugares de origem, que s�o coletivos vinculados � sua mem�ria ancestral e identidade. Esse grupo exclui tamb�m 70% das popula��es arrancadas do campo e das florestas, que est�o nas favelas e periferias, alienadas do m�nimo exerc�cio do ser, sem refer�ncias que sustentam a sua identidade. S�o lan�adas nesse liquidificador chamado humanidade”, acredita. 

Para Ailton Krenak, os seres humanos t�m neste isolamento social pelo qual passa a maior parte do planeta uma oportunidade para a pausa e corre��o de rumos: “Todos precisam despertar. Se, durante um tempo, �ramos n�s, os povos ind�genas, que est�vamos amea�ados de ruptura ou da extin��o dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da imin�ncia de a terra n�o suportar a nossa demanda. Tomara que, depois de tudo isso, n�o voltemos � chamada ‘normalidade’, pois se voltarmos � porque n�o valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. A�, sim, teremos provado de que a humanidade � uma mentira”.

A seguir, mais trechos da entrevista exclusiva com o escritor.

No in�cio do livro Ideias para adiar o fim do mundo, o senhor introduz uma discuss�o que parte da indaga��o: Somos mesmo uma humanidade?.  O senhor poderia responder � esta provoca��o, particularmente mais intrigante nestes tempos de pandemia: somos uma humanidade?

 Eu penso que essa pergunta fica em suspenso. Vivemos esta experi�ncia de isolamento social, como est� sendo definida a experi�ncia do confinamento, em que o mundo inteiro tem de se recolher. Ao mesmo tempo, assistimos a uma trag�dia de gente morrendo em diferentes lugares do mundo, ao ponto de na It�lia os corpos serem colocados em caminh�es para incinerar, sem sequer ser identificados. Essa dor, talvez ajude as pessoas a responder a essa pergunta. N�s nos acostumamos com a ideia de que somos uma humanidade. Embora a ideia tenha sido naturalizada, ningu�m mais presta aten��o ao sentido do que venha mesmo ser humano. � como se tiv�ssemos v�rias crian�as brincando que, por imaginar essa fantasia da inf�ncia, continuassem a brincar por tempo indeterminado. Viramos adultos, estamos devastando o planeta, cavando um fosso gigantesco de desigualdades entre povos e as sociedades. De modo que h� uma sub-humanidade que vive uma grande mis�ria, sem chance de sair dela. Isso tamb�m foi naturalizado. O presidente da Rep�blica disse outro dia que brasileiros vivem no esgoto. Esse tipo de mentalidade doente est� dominando o planeta. E veja agora esse v�rus, um organismo do planeta, responder a essa aliena��o dos humanos com um ataque � forma de vida insustent�vel que adotamos por livre escolha, essa fant�stica liberdade que todos adoram reivindicar, mas ningu�m se pergunta sobre o seu pre�o. Veja que esse v�rus est� discriminando essa humanidade. Ele n�o mata p�ssaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Apenas a humanidade est� sendo discriminada. Quem est� em p�nico s�o os povos humanos, o modo de funcionamento deles entrou em crise. Consolidaram esse pacote que � chamado de humanidade, que vai sendo descolada de uma maneira absoluta desse organismo que � a Terra, vivendo numa abstra��o civilizat�ria que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de exist�ncia e de h�bitos. Os �nicos n�cleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra s�o aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na �frica, na �sia ou na Am�rica Latina. Esta � a sub-humanidade: cai�aras, �ndios, quilombolas, abor�genes. Existe, ent�o, uma humanidade que integra um clube seleto, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais r�stica e org�nica, uma sub-humanidade, que fica agarrada na terra. Eu n�o me sinto parte dessa humanidade. Eu me sinto exclu�do dela. Por isso digo, no livro, que � um clube, seleto, que n�o aceita novos s�cios.

Filosoficamente, como interpreta a pandemia que acomete o mundo?

Estamos h� muito divorciados desse organismo vivo que � a Terra. Do nosso div�rcio das integra��es e intera��es com a nossa m�e, a Terra, resulta que ela est� nos deixando �rf�os, n�o s� os que em diferente gradua��o s�o chamados de �ndios, ind�genas ou povos ind�genas, mas todos. Enquanto a humanidade est� se distanciando do seu lugar, um monte de corpora��es espertalhonas tomam conta e submetem o planeta: acabam com florestas, montanhas, transformam tudo em mercadorias. Fomos, durante muito tempo, embalados com a hist�ria de que somos a humanidade e nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele � uma coisa e n�s, outra: a Terra e a humanidade. Eu n�o percebo onde tem alguma coisa que n�o seja natureza. Tudo � natureza. O cosmos � natureza. Tudo em que eu consigo pensar � natureza. N�s, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corpora��es, que s�o os donos da grana. Agora, j� imaginou que esse organismo, o v�rus, possa tamb�m ter se cansado da gente e nos “desligado”? Sabe como faz isso? Tirando o nosso oxig�nio. Dizem que a Covid-19, quando evolui para os pulm�es, se n�o tiver bomba, aparelho para alimentar de oxig�nio, a pessoa morre. Quantas m�quinas dessa vamos ter de fazer? Para 6 bilh�es de pessoas na terra? A nossa m�e, a Terra, d� de gra�a o oxig�nio, p�e a gente para dormir, desperta de manh� com sol, d� oxig�nio, deixa p�ssaros cantar, as correntezas, as brisas, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele?  Isso pode significar uma m�e amorosa, que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. N�o � porque n�o goste dele, mas quer ensinar alguma coisa para ele. Filho, sil�ncio. A Terra est� falando isso para a humanidade. E ela � t�o maravilhosa que n�o � ordem imperativa. Ela simplesmente est� dizendo para a gente: sil�ncio. Esse � tamb�m o significado do recolhimento.

Os idosos, chamados de grupo de risco, em algumas abordagens s�o lembrados como algo descart�vel – do tipo, “alguns v�o morrer”, como algo inevit�vel. Como avalia esta abordagem que parece arrancar toda e qualquer humanidade do indiv�duo, tornando-o uma estat�stica?

Esse tipo de abordagem cria uma inseguran�a afeta as pessoas que amam os idosos, que s�o av�s, pais, filhos, irm�os de outras pessoas, que est�o na idade �til de trabalho. � uma palavra insensata, n�o tem sentido que algu�m em s� consci�ncia fa�a comunica��o p�blica dizendo ‘alguns v�o morrer’. � uma banaliza��o da vida, mas tamb�m � uma banaliza��o do poder da palavra. Pois algu�m que faz uma emiss�o dessa est� pronunciando a condena��o. Seja diretamente dirigida a algu�m em idade avan�ada, com 80, 90, 100 anos. Sejam os filhos, netos, ou todas as pessoas que t�m afeto uns com outros. Imagine se vou ficar em paz pensando que minha m�e ou meu pai podem ser descartados. Eles s�o o sentido de eu estar vivo. Se eles podem ser descartados eu tamb�m posso. Olhando para al�m do Brasil, mirando o mundo, Foucault tem uma obra fant�stica: Vigiar e punir. Nesse livro, diz que essa sociedade de mercado que vivemos, essa coisa mercantil, s� considera o ser humano �til quando est� produzindo. Com o avan�o do capitalismo, foi criado um instrumento que � o de deixar viver e o de fazer morrer: quando deixa de produzir, passa a ser um custo. Ou voc� produz as condi��es para voc� ficar vivo ou produz as condi��es para voc� morrer. Essa coisa que conhecemos como a Previd�ncia, que existe em todos os pa�ses com economia de mercado, ela tem um custo. Os governos est�o achando que, se morressem todas as pessoas que representam custo, seria �timo. Isso significa dizer: pode deixar morrer os que integram os grupos de risco. N�o � ato falho de quem fala, a pessoa n�o � doida, � l�cida, sabe o que est� falando.

Como est� a sua rotina, agora com o isolamento social?

Parei de andar mundo afora, suspendi compromissos. Estou com a minha fam�lia na aldeia krenak, no M�dio Rio Doce. J� est�vamos aqui de luto com o nosso Rio Doce. N�o imaginava que o mundo faria esse luto conosco. Est� todo mundo parado. Todo mundo. Quando os engenheiros me disseram que iriam usar a engenharia, a tecnologia para recuperar o Rio Doce, perguntaram a minha opini�o. Eu disse: a minha sugest�o � imposs�vel de colocar em pr�tica. Pois ter�amos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a 100 quil�metros na margem direita e esquerda do rio, at� que voltasse a ter vida. O engenheiro me disse: ‘Mas isso � imposs�vel’. O mundo n�o pode parar. E o mundo parou. Desde muito tempo a minha comunh�o com tudo o que chamam de natureza � experi�ncia que n�o vejo muita gente que vive na cidade valorizando. J� vi pessoas ridicularizando, ele conversa com �rvore, abra�a �rvore, conversa com o rio, contempla a montanha, como se isso fosse uma esp�cie de aliena��o. Essa � a minha experi�ncia de vida. Se � aliena��o, sou alienado no sentido comum que as pessoas. H� muito tempo n�o programo atividades para depois. Temos de parar de ser convencidos. N�o sabemos se estaremos vivos amanh�. Temos de parar de vender o amanh�.

Agora o progn�stico, ou algo do tipo: se continuarmos ao ritmo de sempre, em sua avalia��o, que fim nos aguarda?

O ritmo de hoje n�o � o da semana passada nem o do ano novo, do ver�o, de janeiro ou fevereiro. O mundo est� agora numa suspens�o. E n�o sei se vamos sair dessa experi�ncia da mesma maneira que entramos. Desconfio que n�o vai ser a mesma coisa depois. Se tiver depois. Tem muita gente que suspendeu projetos, atividades que estavam fazendo. As pessoas acham que basta mudar o calend�rio. Est�o enganadas. Pode n�o haver o ano que vem. Em artigo que li sobre a pandemia, o soci�logo italiano Domenico de Masi cita a obra prof�tica A peste, de Albert Camus: a peste pode vir e ir embora sem que o cora��o do homem seja modificado. Ele cita trecho inteiro do romance em que o personagem diz, aquele bacilo que trouxe aquela mortandade, que parece que tinha sido dominado, podia continuar oculto em alguma dobra, algum corrim�o, janela, poltrona, s� esperando o dia em que, infort�nio ou li��o aos homens, a peste acordar� seus ratos para mand�-los morrer numa cidade feliz. Este v�rus que nos amea�a n�o � o mesmo na China, na It�lia, nos Estados e no Brasil. Ele muda. E se muda, n�o sabemos o que �. Ent�o seria muito bom parar de fazer projetos para amanh�, para o ano que vem e nos ater ao aqui e agora. N�o tenho certeza nenhuma se no ano que vem tudo vai continuar a acontecer como se nada tivesse mudado. E tomara que n�o voltemos � normalidade, pois se voltarmos � porque n�o valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. A�, sim, teremos provado que a humanidade � uma mentira. Se essa trag�dia serve para alguma coisa, � nos mostrar quem n�s somos. Estamos em suspens�o. Vamos ver o que vai acontecer.

Quais s�o as suas ideias e inspira��es para adiarmos o fim do mundo?

Precisamos ser cr�ticos a essa ideia plasmada de humanidade homog�nea em que o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. Para que cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira cr�tica e consciente, se voc� pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experi�ncia de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovis�es. Boaventura de Sousa Santos nos ensina que a ecologia dos saberes deveria tamb�m integrar nossa experi�ncia cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experi�ncia como comunidade. Nosso tempo � especialista em criar aus�ncias: do sentido de viver em sociedade, do pr�prio sentido da experi�ncia da vida. Isso gera uma intoler�ncia muito grande com rela��o a quem ainda � capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dan�ar, de cantar. E est� cheio de pequenas constela��es de gente espalhada pelo mundo que dan�a, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar n�o tolera tanto prazer, tanta frui��o de vida. Ent�o, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos pr�prios sonhos. E a minha provoca��o sobre adiar o fim do mundo � exatamente sempre poder contar mais uma hist�ria. Se pudermos fazer isso, adiaremos o fim. Como os povos origin�rios do Brasil lidaram com a coloniza��o, que queria acabar com o seu mundo? Quais estrat�gias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao s�culo 21 ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resist�ncia desses povos.

Ideias para adiar o fim do mundo
Ailton Krenak
Companhia das Letras
88 p�ginas
R$24,90


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