
O mundo est� em suspens�o. O momento � de recolhimento, de sil�ncio. A experi�ncia do isolamento social, para enfrentar o horror do novo coronav�rus, pode trazer li��es valiosas � humanidade. “Se essa trag�dia serve para alguma coisa � mostrar quem n�s somos. � para n�s refletirmos e prestar aten��o ao sentido do que venha mesmo ser humano. E n�o sei se vamos sair dessa experi�ncia da mesma maneira que entramos. Tomara que n�o”, afirma o escritor Ailton Krenak, de 66 anos, um dos mais destacados ativistas do movimento socioambiental e de defesa dos direitos ind�genas e doutor honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora.
Para Ailton Krenak, os seres humanos t�m neste isolamento social pelo qual passa a maior parte do planeta uma oportunidade para a pausa e corre��o de rumos: “Todos precisam despertar. Se, durante um tempo, �ramos n�s, os povos ind�genas, que est�vamos amea�ados de ruptura ou da extin��o dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da imin�ncia de a terra n�o suportar a nossa demanda. Tomara que, depois de tudo isso, n�o voltemos � chamada ‘normalidade’, pois se voltarmos � porque n�o valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. A�, sim, teremos provado de que a humanidade � uma mentira”.
A seguir, mais trechos da entrevista exclusiva com o escritor.
No in�cio do livro Ideias para adiar o fim do mundo, o senhor introduz uma discuss�o que parte da indaga��o: Somos mesmo uma humanidade?. O senhor poderia responder � esta provoca��o, particularmente mais intrigante nestes tempos de pandemia: somos uma humanidade?A seguir, mais trechos da entrevista exclusiva com o escritor.
Eu penso que essa pergunta fica em suspenso. Vivemos esta experi�ncia de isolamento social, como est� sendo definida a experi�ncia do confinamento, em que o mundo inteiro tem de se recolher. Ao mesmo tempo, assistimos a uma trag�dia de gente morrendo em diferentes lugares do mundo, ao ponto de na It�lia os corpos serem colocados em caminh�es para incinerar, sem sequer ser identificados. Essa dor, talvez ajude as pessoas a responder a essa pergunta. N�s nos acostumamos com a ideia de que somos uma humanidade. Embora a ideia tenha sido naturalizada, ningu�m mais presta aten��o ao sentido do que venha mesmo ser humano. � como se tiv�ssemos v�rias crian�as brincando que, por imaginar essa fantasia da inf�ncia, continuassem a brincar por tempo indeterminado. Viramos adultos, estamos devastando o planeta, cavando um fosso gigantesco de desigualdades entre povos e as sociedades. De modo que h� uma sub-humanidade que vive uma grande mis�ria, sem chance de sair dela. Isso tamb�m foi naturalizado. O presidente da Rep�blica disse outro dia que brasileiros vivem no esgoto. Esse tipo de mentalidade doente est� dominando o planeta. E veja agora esse v�rus, um organismo do planeta, responder a essa aliena��o dos humanos com um ataque � forma de vida insustent�vel que adotamos por livre escolha, essa fant�stica liberdade que todos adoram reivindicar, mas ningu�m se pergunta sobre o seu pre�o. Veja que esse v�rus est� discriminando essa humanidade. Ele n�o mata p�ssaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Apenas a humanidade est� sendo discriminada. Quem est� em p�nico s�o os povos humanos, o modo de funcionamento deles entrou em crise. Consolidaram esse pacote que � chamado de humanidade, que vai sendo descolada de uma maneira absoluta desse organismo que � a Terra, vivendo numa abstra��o civilizat�ria que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de exist�ncia e de h�bitos. Os �nicos n�cleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra s�o aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na �frica, na �sia ou na Am�rica Latina. Esta � a sub-humanidade: cai�aras, �ndios, quilombolas, abor�genes. Existe, ent�o, uma humanidade que integra um clube seleto, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais r�stica e org�nica, uma sub-humanidade, que fica agarrada na terra. Eu n�o me sinto parte dessa humanidade. Eu me sinto exclu�do dela. Por isso digo, no livro, que � um clube, seleto, que n�o aceita novos s�cios.
Filosoficamente, como interpreta a pandemia que acomete o mundo?Estamos h� muito divorciados desse organismo vivo que � a Terra. Do nosso div�rcio das integra��es e intera��es com a nossa m�e, a Terra, resulta que ela est� nos deixando �rf�os, n�o s� os que em diferente gradua��o s�o chamados de �ndios, ind�genas ou povos ind�genas, mas todos. Enquanto a humanidade est� se distanciando do seu lugar, um monte de corpora��es espertalhonas tomam conta e submetem o planeta: acabam com florestas, montanhas, transformam tudo em mercadorias. Fomos, durante muito tempo, embalados com a hist�ria de que somos a humanidade e nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele � uma coisa e n�s, outra: a Terra e a humanidade. Eu n�o percebo onde tem alguma coisa que n�o seja natureza. Tudo � natureza. O cosmos � natureza. Tudo em que eu consigo pensar � natureza. N�s, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corpora��es, que s�o os donos da grana. Agora, j� imaginou que esse organismo, o v�rus, possa tamb�m ter se cansado da gente e nos “desligado”? Sabe como faz isso? Tirando o nosso oxig�nio. Dizem que a Covid-19, quando evolui para os pulm�es, se n�o tiver bomba, aparelho para alimentar de oxig�nio, a pessoa morre. Quantas m�quinas dessa vamos ter de fazer? Para 6 bilh�es de pessoas na terra? A nossa m�e, a Terra, d� de gra�a o oxig�nio, p�e a gente para dormir, desperta de manh� com sol, d� oxig�nio, deixa p�ssaros cantar, as correntezas, as brisas, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele? Isso pode significar uma m�e amorosa, que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. N�o � porque n�o goste dele, mas quer ensinar alguma coisa para ele. Filho, sil�ncio. A Terra est� falando isso para a humanidade. E ela � t�o maravilhosa que n�o � ordem imperativa. Ela simplesmente est� dizendo para a gente: sil�ncio. Esse � tamb�m o significado do recolhimento.
Os idosos, chamados de grupo de risco, em algumas abordagens s�o lembrados como algo descart�vel – do tipo, “alguns v�o morrer”, como algo inevit�vel. Como avalia esta abordagem que parece arrancar toda e qualquer humanidade do indiv�duo, tornando-o uma estat�stica?Esse tipo de abordagem cria uma inseguran�a afeta as pessoas que amam os idosos, que s�o av�s, pais, filhos, irm�os de outras pessoas, que est�o na idade �til de trabalho. � uma palavra insensata, n�o tem sentido que algu�m em s� consci�ncia fa�a comunica��o p�blica dizendo ‘alguns v�o morrer’. � uma banaliza��o da vida, mas tamb�m � uma banaliza��o do poder da palavra. Pois algu�m que faz uma emiss�o dessa est� pronunciando a condena��o. Seja diretamente dirigida a algu�m em idade avan�ada, com 80, 90, 100 anos. Sejam os filhos, netos, ou todas as pessoas que t�m afeto uns com outros. Imagine se vou ficar em paz pensando que minha m�e ou meu pai podem ser descartados. Eles s�o o sentido de eu estar vivo. Se eles podem ser descartados eu tamb�m posso. Olhando para al�m do Brasil, mirando o mundo, Foucault tem uma obra fant�stica: Vigiar e punir. Nesse livro, diz que essa sociedade de mercado que vivemos, essa coisa mercantil, s� considera o ser humano �til quando est� produzindo. Com o avan�o do capitalismo, foi criado um instrumento que � o de deixar viver e o de fazer morrer: quando deixa de produzir, passa a ser um custo. Ou voc� produz as condi��es para voc� ficar vivo ou produz as condi��es para voc� morrer. Essa coisa que conhecemos como a Previd�ncia, que existe em todos os pa�ses com economia de mercado, ela tem um custo. Os governos est�o achando que, se morressem todas as pessoas que representam custo, seria �timo. Isso significa dizer: pode deixar morrer os que integram os grupos de risco. N�o � ato falho de quem fala, a pessoa n�o � doida, � l�cida, sabe o que est� falando.
Como est� a sua rotina, agora com o isolamento social?Parei de andar mundo afora, suspendi compromissos. Estou com a minha fam�lia na aldeia krenak, no M�dio Rio Doce. J� est�vamos aqui de luto com o nosso Rio Doce. N�o imaginava que o mundo faria esse luto conosco. Est� todo mundo parado. Todo mundo. Quando os engenheiros me disseram que iriam usar a engenharia, a tecnologia para recuperar o Rio Doce, perguntaram a minha opini�o. Eu disse: a minha sugest�o � imposs�vel de colocar em pr�tica. Pois ter�amos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a 100 quil�metros na margem direita e esquerda do rio, at� que voltasse a ter vida. O engenheiro me disse: ‘Mas isso � imposs�vel’. O mundo n�o pode parar. E o mundo parou. Desde muito tempo a minha comunh�o com tudo o que chamam de natureza � experi�ncia que n�o vejo muita gente que vive na cidade valorizando. J� vi pessoas ridicularizando, ele conversa com �rvore, abra�a �rvore, conversa com o rio, contempla a montanha, como se isso fosse uma esp�cie de aliena��o. Essa � a minha experi�ncia de vida. Se � aliena��o, sou alienado no sentido comum que as pessoas. H� muito tempo n�o programo atividades para depois. Temos de parar de ser convencidos. N�o sabemos se estaremos vivos amanh�. Temos de parar de vender o amanh�.
Agora o progn�stico, ou algo do tipo: se continuarmos ao ritmo de sempre, em sua avalia��o, que fim nos aguarda?O ritmo de hoje n�o � o da semana passada nem o do ano novo, do ver�o, de janeiro ou fevereiro. O mundo est� agora numa suspens�o. E n�o sei se vamos sair dessa experi�ncia da mesma maneira que entramos. Desconfio que n�o vai ser a mesma coisa depois. Se tiver depois. Tem muita gente que suspendeu projetos, atividades que estavam fazendo. As pessoas acham que basta mudar o calend�rio. Est�o enganadas. Pode n�o haver o ano que vem. Em artigo que li sobre a pandemia, o soci�logo italiano Domenico de Masi cita a obra prof�tica A peste, de Albert Camus: a peste pode vir e ir embora sem que o cora��o do homem seja modificado. Ele cita trecho inteiro do romance em que o personagem diz, aquele bacilo que trouxe aquela mortandade, que parece que tinha sido dominado, podia continuar oculto em alguma dobra, algum corrim�o, janela, poltrona, s� esperando o dia em que, infort�nio ou li��o aos homens, a peste acordar� seus ratos para mand�-los morrer numa cidade feliz. Este v�rus que nos amea�a n�o � o mesmo na China, na It�lia, nos Estados e no Brasil. Ele muda. E se muda, n�o sabemos o que �. Ent�o seria muito bom parar de fazer projetos para amanh�, para o ano que vem e nos ater ao aqui e agora. N�o tenho certeza nenhuma se no ano que vem tudo vai continuar a acontecer como se nada tivesse mudado. E tomara que n�o voltemos � normalidade, pois se voltarmos � porque n�o valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. A�, sim, teremos provado que a humanidade � uma mentira. Se essa trag�dia serve para alguma coisa, � nos mostrar quem n�s somos. Estamos em suspens�o. Vamos ver o que vai acontecer.
Quais s�o as suas ideias e inspira��es para adiarmos o fim do mundo?Precisamos ser cr�ticos a essa ideia plasmada de humanidade homog�nea em que o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. Para que cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira cr�tica e consciente, se voc� pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experi�ncia de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovis�es. Boaventura de Sousa Santos nos ensina que a ecologia dos saberes deveria tamb�m integrar nossa experi�ncia cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experi�ncia como comunidade. Nosso tempo � especialista em criar aus�ncias: do sentido de viver em sociedade, do pr�prio sentido da experi�ncia da vida. Isso gera uma intoler�ncia muito grande com rela��o a quem ainda � capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dan�ar, de cantar. E est� cheio de pequenas constela��es de gente espalhada pelo mundo que dan�a, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar n�o tolera tanto prazer, tanta frui��o de vida. Ent�o, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos pr�prios sonhos. E a minha provoca��o sobre adiar o fim do mundo � exatamente sempre poder contar mais uma hist�ria. Se pudermos fazer isso, adiaremos o fim. Como os povos origin�rios do Brasil lidaram com a coloniza��o, que queria acabar com o seu mundo? Quais estrat�gias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao s�culo 21 ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resist�ncia desses povos.
Ideias para adiar o fim do mundo
Ailton Krenak
Companhia das Letras
88 p�ginas
R$24,90