
O ato de educar � um ato pol�tico, pelo qual os marginalizados alcan�am a compreens�o de sua realidade, aprendem a lutar por seus direitos e vislumbram a supera��o das rela��es de opress�o. Portanto, a educa��o deve ser emancipadora. Assim pensava Paulo Freire (1921-1997), desde 2012 patrono da educa��o brasileira. Mentor de um programa de alfabetiza��o que se tornou refer�ncia internacional e respons�vel pelo Programa Nacional de Alfabetiza��o do governo Jo�o Goulart (1961-1964), ele foi perseguido pela ditadura militar e exilado por 16 anos, per�odo em que esteve no Chile, foi convidado a ministrar aulas em Harvard (EUA) e, mais tarde, a partir de Genebra (Su��a), como consultor do Conselho Mundial de Igrejas, fez campanhas de alfabetiza��o na Nicar�gua, Guin�-Bissau, S�o Tom� e Pr�ncipe, Cabo Verde e Tanz�nia. Recebeu ao longo de sua trajet�ria dezenas de doutorados honoris causa e uma lista de pr�mios, entre os quais, em 1986, o da Paz, da Unesco.
Morto h� mais de duas d�cadas – perto de completar o centen�rio de seu nascimento –, Paulo Freire tem sido alvo de ataques pelo ministro da Educa��o, Abraham Weintraub, e por parlamentares da base bolsonarista. Para eles, Freire � um “fil�sofo de esquerda”, cujo m�todo se basearia na “materializa��o do marxismo cultural”. Por isso, tentam revogar, via projeto de lei, a Lei 12.612/12, que o declarou patrono da educa��o brasileira.
Discuss�es ideol�gicas � parte, Freire � estudado nas 20 melhores universidades do mundo, segundo o World University Ranking. Sua obra Pedagogia do oprimido se encontra entre as 100 mais consultadas no banco de dados The Open Syllabus Project – que inclui mais de um milh�o de programas de universidades de l�ngua inglesa – nos �ltimos 10 anos. Com 72 mil cita��es, a obra � a mais referenciada do mundo na �rea da educa��o – e � a terceira mais citada no conjunto das produ��es no campo das ci�ncias sociais, segundo pesquisa realizada em 2017 no Google Scholar por Elliot Green, professor da London School of Economics and Political Sciense. Pesquisa da C�tedra Paulo Freire da PUC-SP mostra que, entre 1991 e 2012, foram 1.852 trabalhos de p�s-gradua��o s� no Brasil em refer�ncia ao pensamento freiriano. As mais de duas dezenas de livros do educador est�o publicadas em 20 idiomas.
“Assim, para o bem ou para o mal, a gosto ou a contragosto do pr�prio Paulo Freire, ele acaba se tornando um �cone, um mito, um s�mbolo que extrapola e muito o Brasil”, afirma Walter Kohan, pesquisador e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, autor da obra Paulo Freire mais do que nunca – Uma biografia filos�fica.
Em depoimento pessoal, o autor relata a sua experi�ncia em 2013, no Jap�o, quando convidado a participar de atividades nas universidades de Osaka e Sophia, em T�quio. “No aeroporto, me esperavam tr�s estudantes da Universidade de Osaka: uma delas tinha uma placa com o meu nome; outra uma placa com a express�o 'filosofia como liberta��o' (assim, em portugu�s) e um desenho-caricatura muito expressivo e benfeito do rosto de Paulo Freire”, registra o autor, deixando claro que n�o havia programado fazer nenhuma atividade espec�fica com refer�ncia a Freire, mas, sendo ele do Brasil, do campo da filosofia e da educa��o, a associa��o com Freire era imediata.
“Esse lugar simb�lico t�o significativo de Paulo Freire n�o � apenas produto de um trabalho acad�mico, mas de um compromisso militante cont�nuo em toda a sua vida. � resultado de um compromisso militante com as camadas oprimidas-exclu�das e de ter feito de sua pr�pria vida uma causa a favor de suas convic��es e ideias, a imagem de Paulo Freire n�o resulta indiferente a ningu�m e se torna geradora dos mais profundos amores e desamores, paix�es alegres e tristes, animosidades e rancores... Tudo numa dose s� e muitas vezes misturado e confundido. E, sobretudo, exagerado”, considera Kohan.
A bibliografia filos�fica de Kohan tratada na obra � ampla, e aborda a rela��o entre educa��o e pol�tica: “Filosoficamente, pensar com Paulo Freire a especificidade do valor pol�tico da tarefa de educar”. Nos termos do autor, a rela��o entre educa��o e pol�tica � um dos eixos fundamentais que estruturam o pensamento de Freire, que segue como uma das principais refer�ncias do mundo no campo da filosofia da educa��o. Kohan demarca cinco princ�pios em que encontram os sentidos pol�ticos da tarefa de educar, uma tarefa “emancipadora, liberadora e democr�tica”, que s�o os pilares sobre os quais se sustenta a vida p�blica e privada de Freire.
S�o eles cinco princ�pios sintetizados pelo autor em cinco palavras: a vida, a igualdade, o amor, a err�ncia e a inf�ncia. “Neles encontramos os sentidos pol�ticos da tarefa de educar”, diz o autor, para quem o ato de educar � um ato pol�tico. � assim que Kohan reitera a dimens�o pol�tica da educa��o, inspirado em Paulo Freire, “confiando na presen�a e na pot�ncia dessas cinco palavras: uma forma, um lugar, um tempo, um ritmo, uma disposi��o para a educa��o se abrir � vida, � igualdade, ao amor, � err�ncia e � inf�ncia.
%u201CPaulo Freire diz que, escondendo a sua ideologia na anunciada aus�ncia de ideologia, o que acabam fazendo � reproduzir ou n�o questionar uma ordem estabelecida, em que justamente n�o querem que a escola p�blica seja palco de nenhum debate ou nenhum questionamento porque desejam que as coisas continuem sendo como s�o%u201D
Walter Kohan, professor da Uerj e p�s-doutor pelas universidades de Paris VIII e British Columbia (Canad�)
ENTREVISTA
WALTER KOHAN
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
“CONDI��ES DIGNAS PARA ENSINAR E APRENDER”
O que o motivou neste momento a trabalhar com Paulo Freire?
Na verdade, faz um tempo que quero escrever este livro e me levou bom tempo porque n�o � f�cil: tem muitos livros, muitas teses e disserta��es sobre Paulo Freire. E tamb�m n�o � f�cil escrever livro sobre Paulo Freire, pois h� duas tend�ncias que estabeleceram seja uma rela��o de idolatria, de rever�ncia ou rela��o de �dio e de recusa. Tentei estabelecer outra rela��o que � a que o pr�prio Paulo Freire sugere, de tentar dialogar com a obra dele, pensar junto, sobretudo sobre o problema muito crucial hoje que significa que a educa��o seja ato pol�tico, como pensar essa quest�o fora da l�gica dos partidos e do �dio e do amor que se tem em torno deles.
O que Paulo Freire diria para a proposta do Escola Sem Partido?
De fato, Paulo Freire j� disse algo para essas pessoas, porque esse movimento j� estava presente na vida de Paulo Freire, n�o com esse nome. Mostro no livro que, sobretudo nas �ltimas horas, Paulo Freire se refere �queles que alegam uma pretensa neutralidade na educa��o. E o que Paulo Freire diz � que, escondendo a sua ideologia na anunciada aus�ncia de ideologia, o que acabam fazendo � reproduzir ou n�o questionar uma ordem estabelecida, em que justamente n�o querem que a escola p�blica seja palco de nenhum debate ou nenhum questionamento porque desejam que as coisas continuem sendo como s�o. Mas n�o � por negar essa dimens�o pol�tica que a educa��o deixar� de s�-lo, pois os seres humanos s�o pol�ticos, vivem em comunidade, e as coisas que fazemos s�o produto de certas rela��es, da intera��o com o exerc�cio do poder. � uma fic��o pretender que a educa��o n�o seja pol�tica no sentido profundo e rico do termo, em que nos permite pensar em como estamos exercendo o poder uns com os outros dentro e fora das escolas. N�o � uma quest�o de partido pol�tico. Por isso minha pretens�o no livro � pensar a pol�tica fora do �mbito partid�rio. Mas diz respeito a como seres humanos exercemos o poder quando estamos juntos, e isso na educa��o � algo principal, pois disto se trata: experimentar certa maneira de estar juntos para depois lev�-la para fora da educa��o.
Quais s�o hoje os principais desafios que a educa��o brasileira enfrenta?
� uma quest�o complexa e dif�cil. S�o muitos. Mas diria os principais: um tem a ver com dar condi��es dignas aos professores para ensinar e aos estudantes para aprender. Coisa que n�o existe. Que as escolas sejam locais hospitaleiros, habit�veis, que os professores tenham condi��es salariais e materiais dignas para fazer o trabalho. Que os estudantes tenham espa�o em que se sintam acolhidos, onde as suas necessidades e interesses sejam escutados. Por outro lado, h� problemas end�micos. Cito no livro entrevista com grande educadora, alfabetizadora e amiga de Paulo Freire, que era secret�ria de Educa��o em Porto Alegre quando Paulo Freire era secret�rio de Educa��o em S�o Paulo. Lina comenta que segundo n�s entendemos o tema alfabetismo, analfabetismo, podemos entend�-lo de v�rias maneiras, mas ainda o Brasil tem 30 milh�es, 40 milh�es, 50 milh�es de analfabetos. Isso � uma quest�o inaceit�vel, deveria ser combatida urgentemente. Ali�s, de fato, � a quest�o pela qual Paulo Freire foi preso durante a ditadura de 64, porque estava coordenando o Plano Nacional de Alfabetiza��o, que foi cancelado, e Paulo Freire preso. Veja que em 1964, estamos em 2020. Passaram-se mais de 50 anos, os embates continuam e os problemas continuam os mesmos.
PAULO FREIRE MAIS DO QUE NUNCA – UMA BIOGRAFIA FILOS�FICA
De Walter Kohan
Editora Vest�gio
272 p�ginas
R$ 49,80