(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

'Caderno proibido' faz da escrita um ato de liberdade

Refer�ncia de Elena Ferrante, a italiana Alba de C�spedes mostra uma possibilidade de supera��o da opress�o feminina na Roma dos anos 1950


22/07/2022 04:00 - atualizado 21/07/2022 23:28

Alba de Céspedes
Alba de C�spedes (1911-1997): nascida em Roma, autora de 'Caderno proibido' � influ�ncia assumida de Elena Ferrante
Alba de C�spedes foi uma escritora italiana, nascida em 1911 e filha de pai cubano. Em espanhol, c�sped significa relva, pasto. A prosa de “Caderno proibido”, publicado na It�lia em 1952, remete de imediato a “Um teto todo seu”, ensaio de Virginia Woolf escrito originalmente como palestra sobre as mulheres e a fic��o.
 
Proferido na Universidade de Cambridge, em 1928, o texto traz uma curiosa passagem, em que a autora inglesa relata que, perdida em pensamentos, caminhava pelo gramado do campus da universidade. De repente, surge diante dela um bedel, advertindo-a que somente estudantes homens e professores eram admitidos na grama. O lugar das mulheres era o cascalho. 

Pouco mais de vinte anos separam as reflex�es de Woolf das de C�spedes, mas a mesma discuss�o se imp�e: na trama do livro, a autora italiana cria um personagem que ousa se insinuar em um espa�o tradicionalmente masculino, o da escrita. Valeria Cosatti n�o quer pisar o cascalho, mas a grama.
 
A narrativa se inicia no gesto impensado da protagonista, uma dona de casa comum, que ao sair para comprar cigarros a pedido do marido, decide adquirir um caderno na tabacaria. O objeto lhe remete aos antigos cadernos escolares, em que escrevia com orgulho seu nome na capa.
 
Casada h� vinte anos, m�e de dois filhos adultos, ela trabalha em um escrit�rio e acredita que o ato de registrar o cotidiano ser� uma forma banal de passar o tempo. Nada diz ao marido e aos filhos e resolve manter o volume escondido pelos cantos da casa, fazendo-o migrar entre gavetas, roupas de cama e m�veis trancados. 

No entanto, algo impensado se d� � medida que preenche aquelas p�ginas. A cada entrada do di�rio, o ato de escrever modifica e impulsiona sua exist�ncia, pondo em marcha uma mudan�a.
 
Lugar de liberdade, o caderno propulsiona tamb�m a grafia das frustra��es e muita perturba��o. C�spedes constr�i com habilidade a travessia de Valeria por uma sucess�o de n�o acontecimentos: quase nada sucede do lado de fora; por dentro a revolu��o est� instalada. Uma cis�o identit�ria se inicia, e na clandestinidade do gesto a personagem encontra pela primeira um espa�o somente seu.

Valeria vive na Roma dos anos 1950, momento em que uma Europa empobrecida se refaz ap�s a guerra, certezas s�o abaladas e as institui��es se fragilizam diante de novas possibilidades de vida individual e coletiva. Uma mulher como ela trabalha por necessidade, nunca por realiza��o pessoal.
 
A protagonista olha ao redor e percebe as novas gera��es dando as costas para todo o alicerce at� ali constru�do – fam�lia, casamento, virgindade, fidelidade. Tudo est� em xeque e a transforma��o � lenta: “Quanto mais me conhe�o, mais me perco”. 

Ela � agora algu�m que escreve, nada mais natural que tenha um “amor de escrivaninha”. Apaixona-se pelo chefe e entre a frieza dos memorandos, cartas e telefonemas surge o desejo, que s� floresce, vale dizer, quando come�a a se dedicar ao di�rio.
 
Como voyeurs, visitamos sua intimidade, acessando um conte�do negado �queles que lhe s�o pr�ximos. O caderno surge como confession�rio, ninho de segredos contendo emo��es e percep��es jamais admitidas do lado de fora.
 
Acompanhamos a engenhosa constru��o dessa escrita, vislumbrando o percurso de algu�m que se inicia com sinceridade na aventura do pensamento, fermento que permite suportar o vazio dos dias, a repeti��o in�til das tarefas e a sensa��o de gratuidade diante das tantas sopas servidas e camisas passadas. 

Mas seu mundo n�o desmorona, pois carece de for�as para assumir grande risco. Mais vale a certeza provida pela fam�lia, ainda que o lar esteja capenga e as rela��es impregnadas de ressentimento.
 
Os filhos s�o estranhos com alguma intimidade; o marido, um tanto inerte diante das aspira��es dessa pessoa em plena metamorfose – j� h� alguns anos, ele a chama de “mam�e”. Para complicar as coisas, o catolicismo traz um ros�rio de culpas e o medo do pecado bate � porta. 

Nuances da protagonista

Um dos muitos m�ritos dessa escrita privada � nos colocar diante de uma personagem repleta de nuances. Sens�vel, a protagonista est� sintonizada com a mudan�a dos tempos e as aspira��es familiares. Mas sua perspectiva se mostra conservadora, moralista, reprovando com viol�ncia o relacionamento da filha Mirella com um homem mais velho. Ao filho, reserva dose maior de benevol�ncia. Em suma, reproduz comportamentos que a oprimem. E sofre. 

Como frisa Virginia Woolf, as mulheres desde sempre foram centrais na fic��o de autoria masculina – basta lembrar de Ant�gona, Medeia, Lady Macbeth, Emma Bovary, Anna Kari�nina, entre tantas. Enquanto isso, na vida, eram trancadas, espancadas e jogadas de um lado para o outro. Sempre foi dur�ssima a conquista feminina do espa�o para escrever.
 
De objeto do olhar masculino a sujeito do discurso os passos foram penosos. O romance de C�spedes, que morreu em Paris em 1997, desvela essa �rdua tarefa de inventar um lugar para si, na constru��o da subjetividade de uma mulher confinada em um universo opressivo.
 
H� insubordina��o diante de alguns padr�es, mas tamb�m muito fracasso pelo caminho. A for�a dessa prosa elegante reside justamente na capacidade de C�spedes de criar essa figura t�o dilacerada entre a p�gina e a vida, desejosa de pisar o gramado, mesmo quando tudo ainda insiste que o lugar certo � o cascalho.

* Stefania Chiarelli � professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF)

Influ�ncia para Elena Ferrante

Filha de uma italiana com um embaixador cubano, Alba de C�spedes nasceu em Roma em 1911 e � considerada uma das principais romancistas europeias do s�culo 20. Entre os livros que publicou est�o os romances “Ningu�m volta atr�s” (1935), “Dalla parte di lei” (1949) e “A rebolona” (1967). No livro “Frantumaglia: os caminhos de uma escritora”, Elena Ferrante comenta “Caderno proibido” (publicado originalmente em fragmentos em uma revista italiana) e admite que C�spedes foi uma de suas influ�ncias. 

Trechos

(De “Caderno proibido”, de Alba de C�spedes)

Eram cadernos pretos, luzidios, grossos, daqueles que eu levava para a escola e nos quais – antes de inici�-los – eu logo escrevia, na primeira p�gina, com entusiasmo, o meu nome: Valeria. “Me d� tamb�m um caderno”, eu disse, remexendo na bolsa para pegar mais dinheiro. Mas, quando ergui os olhos, percebi que o mo�o da tabacaria havia assumido uma express�o severa para me dizer: “N�o pode, � proibido”. Ele me explicou que o fiscal ficava de guarda na porta, todo domingo, para que ali s� se vendesse tabaco, nada mais. Eu era a �nica cliente. "Mas eu preciso", pedi novamente, “preciso mesmo.” Falei baixinho, agitada, estava disposta a insistir, a suplicar. Ent�o ele olhou ao redor e depois, rapidamente, pegou um caderno e o deslizou sobre o balc�o, dizendo: “Esconda embaixo do casaco”.
 
Agora, por tr�s de qualquer coisa que eu fa�a ou diga, existe a sombra deste caderno. Nunca poderia acreditar que tudo o que me acontece ao longo do dia merecesse ser anotado. Minha vida sempre me pareceu meio insignificante, sem acontecimentos not�veis al�m do casamento e do nascimento das crian�as. Mas desde que, por acaso, comecei a manter um di�rio, percebo que uma palavra, um tom, podem ser t�o importantes, ou at� mais, quanto os fatos que estamos habituados a considerar como tais. Aprender a compreender as coisas m�nimas que acontecem todos os dias talvez seja aprender a compreender realmente o significado mais rec�ndito da vida. Mas n�o sei se isso � um bem, temo que n�o. 

capa do livro 'Caderno proibido'
 
“Caderno proibido”
• Alba de C�spedes
• Tradu��o de Joana Ang�lica D’Avila Melo
• Companhia das Letras
• 288 p�ginas
• R$ 79,90


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)