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Estado de Minas PENSAR

Autora de 'Mata doce': "O Brasil est� fazendo an�lise"

Livro de Luciany Aparecida alterna brutalidade e delicadeza em hist�ria com protagonismo feminino no interior da Bahia


28/10/2023 04:00 - atualizado 27/10/2023 17:43
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Uma mulher se prepara para matar um boi na abertura de "Mata doce" (Alfaguara), primeiro romance que a autora baiana Luciany Aparecida assina com o pr�prio nome. "Ambos entendiam a hora chegada. A vontade da mulher era dar vaz�o � sua m�goa. A vontade do animal, agora preso para o abate, havia sido escapar." � uma passagem forte, escolhida pela autora para nos apresentar a personagem Maria Teresa, rebatizada como Filinha Mata-Boi, que "estreava uma nova tradi��o": "Ela tomou a dire��o do movimento e, com as costas do machado, acertou a primeira pancada na altura exata da cabe�a que tombaria � sua dor."

A mesma personagem cuida "do mais sublime roseiral" do vilarejo no interior da Bahia que batiza o livro. "Possuir um p� de rosa branca naquele lajedo s� poderia ser mesmo hist�ria de mulher valente", conta o livro, iniciando a altern�ncia entre matan�a e do�ura que chamou aten��o de escritores como Jeferson Ten�rio. "Entre a brutalidade e a delicadeza, Luciany constr�i um mundo sobre perdas, lutos e afetos", aponta o autor de "O avesso da pele", na apresenta��o da edi��o.

Vozes narrativas tamb�m se alternam em uma saga familiar que, a exemplo de "Torto arado" (do tamb�m baiano Itamar Vieira Junior), traz as mulheres para o protagonismo com for�a e identidade pr�prias. "Mata Doce" conta da vida de mulheres que fugiram do escravismo e de opress�es da heteronormatividade", afirma a autora ao Estado de Minas. "As mulheres desse romance s�o pessoas que, dentro de estruturas de opress�o, irrompem escolhas por caminhos de liberdade."

Nascida em 1982 no Vale do Rio Jiquiri��, Luciany Aparecida tem doutorado em Letras e pesquisas nas �reas de na��o, imigra��o, mem�ria e identidades. Com a assinatura Ruth Ducaso, ela publicou os livros "Contos ordin�rios de melancolia" e "Florim" (novela). Leia, a seguir, a entrevista da autora de "Mata doce" ao Pensar:

Como surge "Mata doce"?
A partir de uma reflex�o sobre a vida e a morte, e como a mem�ria pode estreitar esse desamparo, que � lidar com aus�ncias e presen�as. Por exemplo, se essa morte for o assassinato de uma pessoa amada, de um animal, a degrada��o ambiental alienada pela justificativa do consumo, qu�o terr�vel ser� conviver com a presen�a dos assassinos? E com as aus�ncias amorosas? "Mata Doce" nasceu da reflex�o sobre esses pensamentos. E, no Brasil, infelizmente, � quase cotidiano hist�rias que nos levam a pensar nesses temas. Qualquer pessoa aqui, mesmo que em diferente faixa-et�ria, poderia ter uma hist�ria dessa para narrar. 

Como encontrou as vozes narrativas do romance?
Para encontrar a voz narrativa desse romance eu alarguei meu ouvido, como uma concha marinha que foi desenterrada em �rea de terra firme, para melhor escutar hist�rias do mundo. E o que ouvi, de Minas Gerais, foi a dramaturgia "Mata teu pai" e "Vaga Carne" de Grace Pass�; os poemas "Vozes-mulheres", de Concei��o Evaristo e "Consolo na praia", de Carlos Drummond de Andrade. Toda essa escuta me comoveu muit�ssimo e dela parti, multiplicada, e desejosa de tamb�m realizar um trabalho de arte. 

"Estou hoje voltando a estas mem�rias como se n�o fosse eu." Como voc� emprestou suas mem�rias ou a de pessoas pr�ximas ou conhecidas para as personagens do livro?
Estas n�o s�o minhas mem�rias, s�o as mem�rias de uma senhora de noventa e dois anos, Maria Teresa, a personagem narradora do romance, que transita entre uma voz narrativa em terceira e primeira pessoa. Maria Teresa foi uma �rf� adotada por duas mulheres, numa comunidade rural chamada Mata Doce, que se tornou datil�grafa e matadora de boi, ap�s um grande trauma. Quando comecei a criar essa hist�ria pensei que a contaria apenas com uma voz narrativa cl�ssica, em terceira pessoa, onisciente, mas a personagem quis falar, p�s a m�o na m�quina e esse livro ent�o ficou sendo as mem�rias dela. Tudo que Maria Teresa lembra, ou que sup�e lembrar, e ou que lhe foi revelado da sua inf�ncia at� sua idade de noventa e dois anos e que ela um dia decidiu bater numa m�quina de datilografia � o romance "Mata Doce". Quem o l� compreender� melhor esse jogo narrativo. E espero que muita gente o leia, pois acho que essa � uma personagem que merece nossa escuta. 

Qual a import�ncia de "�rsula", de Maria Firmina dos Reis, para a literatura e para o seu livro?
Para a literatura brasileira tem v�rias import�ncias, uma delas � ser o primeiro romance publicado no Brasil, por uma mulher negra, nordestina, que temos not�cia. Para o mundo � um important�ssimo trabalho abolicionista, que noticia o escravismo na Am�rica. Para os estudos da teoria liter�ria � um dos principais textos contempor�neos do 19 para pensar voz narrativa. Para o meu livro � uma inspira��o. E o excepcional de uma pe�a de arte, sendo ela um livro, uma m�sica, uma fotografia, � ela nos inquietar a desejar mais do mundo. Saber da exist�ncia da escritora Maria Firmina dos Reis me faz desejar viver, escrever, publicar - � aquela como��o m�gica que chamamos de representatividade. 

Como a f� move os personagens de "Mata doce"?
Move no sentido promotor da esperan�a. A f� � o simb�lico que os faz erguer a cabe�a e seguir em frente. Eu sou uma mulher de f� e quis levar isso para o livro. Entendendo que esse � um espa�o de disputa no Brasil. E compreendendo que a literatura pode contribuir para esse debate, nos desvelando a encarar o pa�s com mais responsabilidade social. Acredito que a literatura encanta, mas tamb�m faz pensar. 

H�, em "Mata doce", disputas de terra, assassinatos e um estupro. Mas ao mesmo tempo h� tamb�m uma liga��o t�o forte entre as personagens que se sobressai e sobrevive � viol�ncia. Podemos afirmar que "Mata doce" � uma saga na qual prevalecem os la�os familiares?
Acho que para responder primeiro temos que nos perguntar, o que � um la�o familiar? Vivemos em um pa�s absurdamente violento com mulheres negras, LGBTs, oriundas de comunidades rurais (o que pode querer dizer, por exemplo, ter outra posi��o em rela��o ao consumo e a devasta��o do meio ambiente, e isso incomoda). Nesse contexto, que o violentador � a sociedade, ou seja, a fam�lia, o tempo inteiro podemos falar de amparo e de viol�ncia, num mesmo la�o. Dito isso, sim pode ser que em "Mata Doce" o que prevale�a sejam os la�os das fam�lias que decidem agir na mobilidade do amor. Mas � indispens�vel destacar que essa � uma posi��o. Uma escolha. Logo nessa perspectiva a express�o "la�os de fam�lia" deve ser lida higienizada de preconceitos estruturais como o racismo, machismo e LGBTfobia. O que quero dizer � que: as mulheres desse romance encontram amparo em suas redes de amizade quando elas est�o em movimento pela vida e nesse jogo reconstituem enlaces familiares.  

Romance contempor�neo brasileiro de maior vendagem dos �ltimos anos, "Torto arado" � de autoria de um escritor baiano. A que atribui o encantamento do leitor com a hist�ria criada por Itamar Vieira Junior? Poderia citar outros autores e autoras baianas que tamb�m merecem id�ntico reconhecimento?  
Existe um marco geogr�fico de come�os do Brasil na Bahia e acho que isso faz desse estado um ponto indispens�vel atrav�s do qual podemos entender o pa�s. E nos �ltimos oito a sete anos temos vivido situa��es pol�tico-sociais que nos impulsionam para um desejo de nos compreender melhor. Revisitar nossos traumas. Sabe, eu diria que o Brasil est� fazendo an�lise. Ele precisa se reconhecer. Existem muitas pessoas leitoras nesse pa�s e no mundo, e o sucesso editorial dos livros de Itamar s�o provas disso, desejosas de consumir um produto que lhes possa oferecer perspectivas mais amplas sobre a "na��o" brasileira. Acho que nossa literatura tem oferecido isso. A cena liter�ria na Bahia � pungente e n�o s� na prosa, tamb�m na poesia. Mas, ainda na prosa, cito Aidil Ara�jo Lima, no livro "Mulheres sagradas". 

Quais os autores e autoras brasileiros que voc� mais admira, entre os contempor�neos e os de s�culos anteriores?
Eu sou leitora da literatura brasileira, aprendi esse gosto com minha av� e av�, na minha comunidade, e ser uma pessoa leitora � minha grande gl�ria nessa vida-ingl�ria (hahaha), logo essa � uma pergunta dif�cil de responder com brevidade, por isso, responderei dentro de um recorte. Vou citar romancistas que usaram o di�logo entre a literatura e a hist�ria do Brasil como procedimento de escrita. Primeiro, para fazer refer�ncia ao s�culo 19, Maria Firmina dos Reis, que escreve em di�logo com o escravismo, exemplo, em "�rsula" e "A escrava", apresentando personagens que passaram por esse horror e assim deixando para n�s registros abolicionistas desse conden�vel sistema econ�mico. Para citar o s�culo 20, Lygia Fagundes Telles, por exemplo, no romance "As meninas", e como ela enla�a a trama com enredos da ditadura militar; e, no s�culo 21, a obra romanesca de Eliana Alves Cruz, ("�gua de Barrela", "O crime no Cais do Valongo", "Solit�ria"), que tem apresentado diferentes narrativas resultantes de pesquisas em arquivo p�blico, acervo pessoal e relatos orais.  



Servi�o

"Mata doce"
De Luciany Aparecida.
Alfaguara.
304 p�ginas.
R$ 79,90.


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