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Estado de Minas PENSAR

Religiosidade, mem�ria e possibilidades ditam 'Ora��o para desaparecer'

Novo romance da cearense Socorro Acioli retrata a hist�ria de uma brasileira que inicia nova vida ap�s ter o corpo desenterrado em Portugal


28/10/2023 04:00 - atualizado 28/10/2023 09:52
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Igrejinha de Almofala
Socorro Acioli em frente � igrejinha de Almofala (foto: Iana Soares/Divulga��o)


Bruno In�cio
Especial para o EM


A protagonista acorda enquanto � retirada de uma cova num pa�s que n�o � o seu. H� terra, ang�stia, desconforto, marcas de viol�ncia e, claro, confus�o. Esse � o ponto de partida de “Ora��o para desaparecer” (Companhia das Letras), novo romance de Socorro Acioli.
 
No enredo, uma brasileira � desenterrada por um homem e uma mulher em Portugal. N�o lembra seu nome, desconhece seu passado e n�o entende como chegou ao pa�s europeu, ainda mais nessas condi��es, repleta de cortes e hematomas. 
 
As primeiras explica��es v�m de seus salvadores. As mais importantes dizem que sua chegada j� estava prevista e que ela faz parte do que chamam de ressurrectos, “pessoas que iam morrer, mas que por um triz escaparam e voltaram � vida em outro lugar”.
 
Os portugueses Fernando e Florice cuidam de ressurrectos h� tanto tempo que encaram a situa��o – a princ�pio incomum – com bastante naturalidade. Afinal, j� faz d�cadas que o casal e sua fam�lia tratam de feridas, explicam sobre o passado revelado por meio de sonhos e ajudam na busca por uma nova identidade, se assim necess�rio, sempre seguindo � risca as orienta��es transmitidas por antepassados.
 
A protagonista, agora batizada pela fam�lia que a acolhe como Cida, tenta a todo custo reencontrar seu passado nos sonhos. No entanto, na maioria das vezes tudo que visualiza � um homem carinhoso que observa estrelas ao seu lado enquanto cantarola uma m�sica que a brasileira j� n�o reconhece. Vez ou outra tamb�m se lembra vagamente de uma igreja, pessoas enraivecidas, uma crian�a e a imagem de uma santa. 
 
Pouco a pouco, a personagem se aproxima da nova identidade, se sente cada vez mais pertencente �quele novo lar e at� se apaixona. Ainda assim, n�o deixa de lado o interesse pelo passado e a busca por respostas sobre sua vida e sua quase morte no Brasil. 
 
A partir da�, Cida vivencia uma esp�cie de reinven��o de si mesma enquanto tenta compreender quem � e o que significa ser brasileira. Paralelamente, � confrontada pela possibilidade de ter sido uma pessoa ruim e acuada pelo medo de perder sua nova vida. 

Hist�ria inventiva e tramas irresist�veis

 
Assim como fez em “A cabe�a do santo”, publicado em 2014, a escritora cearense, nascida em 1975 em Fortaleza, apresenta uma hist�ria das mais inventivas, em que as tramas e subtramas s�o costuradas de maneira assertiva e irresist�vel pelo realismo m�gico – vertente liter�ria que funde o universo fant�stico � realidade, popularizada por autores como Gabriel Garc�a M�rquez, Julio Cort�zar, Jorge Luis Borges, Silvina Ocampo, Adolfo Bioy Casares e Murilo Rubi�o.
 
Para isso, al�m de toda a pot�ncia narrativa que consagrou a autora como uma das mais importantes da literatura brasileira contempor�nea, h� de se destacar a constru��o cuidadosa dos personagens, a ambienta��o, as refer�ncias sutis � obra de Saramago, a criatividade ao introduzir na trama F�lix Ventura (personagem de Jos� Eduardo Agualusa em “O vendedor de passados”) e o evidente trabalho de pesquisa realizado pela escritora. 
 
Esse �ltimo aspecto � percept�vel ao longo de toda a obra (especialmente no que diz respeito aos Trememb�s e � geografia) e � capaz de proporcionar uma imers�o ainda maior por parte dos leitores. Um exemplo bastante interessante � o do fato que inspirou o romance: a not�cia sobre uma igreja no litoral do Cear� que ficou soterrada por 45 anos, ap�s uma duna m�vel se deslocar com a for�a do vento e encobri-la. Essa mesma igreja n�o s� aparece na hist�ria de Cida, como � essencial para a trama. 
 
J� os relatos de personagens d�o um ritmo pr�prio ao enredo, com informa��es reveladas pouco a pouco em um jogo que passa pelo subtexto, a omiss�o e a busca pela verdade. Nesse sentido, assim como fez em seu romance anterior, Socorro Acioli escolhe acertadamente momentos para utilizar recursos do jornalismo e, com isso, conferir ainda mais verossimilhan�a �s realidades estabelecidas pela narrativa.
 
J� os relatos de personagens d�o um ritmo pr�prio ao enredo, com informa��es reveladas pouco a pouco em um jogo que passa pelo subtexto, a omiss�o e a busca pela verdade. Nesse sentido, assim como fez em seu romance anterior, a autora – um dos nomes confirmados para a 21ª edi��o da Festa Liter�ria Internacional de Paraty (Flip), a ser realizada entre 22 e 26 de novembro – escolhe acertadamente momentos para utilizar recursos do jornalismo e, com isso, conferir ainda mais verossimilhan�a �s realidades estabelecidas pela narrativa.
 
N�o por acaso, “Ora��o para desaparecer” � um dos livros brasileiros mais interessantes e originais dos �ltimos anos, ao transitar com seguran�a e naturalidade pelos caminhos da religiosidade, da mem�ria e das possibilidades de recome�o. 
 
Aluna de Gabriel Garc�a M�rquez em oficina ministrada em Cuba, em 2006, Socorro Acioli reafirma aqui o seu lugar como uma das escritoras mais talentosas da nova gera��o do realismo m�gico e uma das vozes mais necess�rias para esse momento p�s-pand�mico, em que todos n�s pudemos vivenciar, de alguma forma, uma experi�ncia que se aproxima da ressurrei��o. 

“Despertei quando Florice bateu na porta e me chamou para tomar um ch� de t�lia, prometendo que acalmaria minhas ideias, sem que ela mesmo estivesse tranquila. Lembrei de sonhos confusos que tive, cenas cortadas com facas, um homem muito perto de mim, falando alto. Acordei assustada com os gritos dele, furioso dentro do sonho, misturados �s batidas dela, suaves. 
 
Enquanto demos quatro passos lentos at� a mesa, contou-me que descobriu um p� de t�lia no quintal e estava contente por isso, era seu ch� preferido. Tomamos muito em Portugal, ela explicou, abrindo espa�o para esse assunto sem qualquer interesse ou rela��o com a trag�dia que eu vivia, como se estivesse tudo bem.
 
Fernando me aguardava � mesa, com um caderno e uma caneta em m�os. Florice tamb�m. O dela era gasto, velho, uma capa de papel�o azul-marinho dobrado e desdobrado, com as pontas j� se desfazendo. O dele, um caderninho novo, de capa vermelha. Sua fala foi um percurso de coisas numeradas, organizadas, a �nica ordem que meus pensamentos conseguiram obedecer. Combinaram aquela conversa. Decidiram sobre o que cada um falaria e at� que ponto poderiam me dizer coisas, um evento ensaiado.”

Bruno In�cio � jornalista, mestre em comunica��o e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patu�) e “Desemprego e outras heresias” (Sabi� Livros). Escreve sobre literatura no Jornal Rascunho e na S�o Paulo Review. 
 

"Atendi ao pedido de Drummond"

 
Socorro Acioli, em depoimento ao Pensar, explica a g�nese do “Ora��o para desaparecer”:
 
“Ora��o para desaparecer” come�ou a nascer para mim em 2015 quando uma amiga me telefonou para falar da hist�rica foto da igrejinha de Almofala perto do seu desenterro, com homens, mulheres e crian�as � frente ao lado do Padre Ant�nio Tom�s, a cavalo, ao centro. Minha amiga Luciana contou que a igreja ficou 45 anos coberta por uma duna e isso j� era um fato a considerar como ponto de partida. Pesquisei o que pude sobre a igreja enterrada, mas n�o encontrava um fio poss�vel para desenrolar o novelo da fic��o. Decidi desistir. Fiz a �ltima busca, por desencargo de consci�ncia. Foi quando achei uma cr�nica de Carlos Drummond de Andrade no Correio da Manh� de 17 de novembro de 1946. Ele pedia que s�bios, poetas, artistas prestassem aten��o � igrejinha de Almofala. E contava a hist�ria da Labareda, dos Trememb�s, da disputa pela santa. E me deu de presente Joana Camelo, a prostituta que jogou um tamanco na cabe�a do padre. Depois disso, eu decidi atender ao pedido do Drummond, tantos anos depois. Recebi Joana Camelo de suas m�os. H� uma Almofala no Brasil, sete Almofalas em Portugal. Comecei uma pesquisa intensa, com v�rias visitas � igreja, �s casas de cura dos paj�s Trememb�s, ganhei um colar de prote��o, fui ao rio ver cavalos marinhos, conheci uma das Almofalas portuguesas e dediquei sete anos muito felizes ao ‘Ora��o para desaparecer’. Escrevi tr�s vers�es, joguei duas no lixo. A terceira � essa, que agora chega aos leitores, resultado da imensa paz de viver dentro deste livro de 2015 a 2023.” 


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